É naturalmente discutível
quando se utilizam hipérboles a declarar este ou aquele escritor,
esta ou aquela obra, como “uma das maiores de sempre”, quando não
existem qualificativos, contextos ou pelo menos uma qualquer inflexão
que explicite a emergência dessa hierarquização imediata. Se se
utiliza esse termo comparativo, quais os outros termos contra os
quais ele mesmo se estabelece? As mais das vezes, e é esse um
movimento perigoso, a ideia está em que essas declarações,
desprovidas desse mesmo contexto, apontam a uma espécie de consenso
cultural, em relação aos quais aqueles que não o partilham são
vistos como desmerecedores sequer de consideração. (Mais)
Dizer
que Julio Cortázar é um dos maiores escritores do século XX poderá
funcionar muito bem num determinado espaço, em que outros nomes se
esgrimiriam num palco de referencialidade quase puramente literária.
Kafka, Borges, Michaux, Lispector, Schwob, Kharms, Mrozek, Calvino,
são alguns dos escritores que se agregariam nesse grupúsculo,
autores que transformaram a coisa literária numa matéria friável,
passível de recombinação, em que cada parte poderá reflectir em
si mesma elementos cuja quantidade é paradoxalmente maior do que o
seu resultado. Uma literatura estimulante a um nível intelectual e
cultural elevado, mas que poderá colocar de lado muitos outros
factores usualmente mais procurados por um público alargado:
intrigas, emoções, posicionamentos políticos, comentários do
hodierno, filosofias prêt-a-porter, “lições” resumíveis
numa frase motivacional. Não quer dizer que não seja possível
analisar esses autores em busca dessas partes, mas não serão elas
as principais nem a recompensa mais profunda.
É
na Poética de Artistóteles que encontramos uma máxima
fundamental: “numa
só pessoa concentra-se uma infinidade de acontecimentos, alguns dos
quais não se podem reduzir a uma unidade”. Ora,
essa máxima torna-se ainda mais premente quando falamos de um autor
que, tal como aqueles outros escritores indicados,
possuía uma mestria absoluta sobre o conto, na sua acepção mais
técnica. A brevidade, que o próprio Calvino defendeu no seu supremo
ensaio Seis Propostas para o Próximo Milénio. É, então, um
exercício curioso encontrarmos uma tentativa de criar uma narrativa
longa – uma narrativa de uma vida: biografia! - a partir dos
fragmentos da vida do escritor argentino Julio Cortázar.
Todavia,
os autores deste livro, o escritor Jesús Marchamalo, que já havia
escrito Cortázar y los libros, uma das biografias do autor, e
o artista Marc Torices, optam por uma abordagem precisamente
fragmentária e poética. O livro é dividido por vários capítulos,
cada qual com títulos aparentemente enigmáticos mas que se
concentram numa faceta na formação de Cortázar enquanto homem,
pessoa, escritor e figura pública-política - “Os argentinos
declaram a guerra aos Estados Unidos”, “Ver Borges”, “As
vantagens do comboio” (um título particularmente “cortazariano”).
Além do mais, em vez do livro proceder com uma fluidez tipicamente
narrativa, estrutura as suas partes, por vezes cada prancha, como um
trecho auto-suficiente, em torno de um acontecimento, um gesto, um
encontro. Mais, a abordagem visual, inclusive as opções cromáticas,
figurativas e estruturais, do livro (quiçá fruto da colaboração)
não procura jamais uma posição naturalista, de representação da
“realidade histórica”. Há uma clara aceitação de construções
ora simbólicas ora surrealistas, assim como a fabricação de
efeitos de mais impressionismo do que de real. Nada disso se desvia
da matéria literária do autor argentino, que sempre explorou os
territórios em que essas supostas fronteiras se dissipavam.
O
jovem Marc Torices é um autor que se inscreverá na escola de um
Olivier Schrauwen ou Brecht Evens, em que a cor ganha uma presença
de linha representativa e não é somente embelezamento do desenho
prévio, e onde a composição de páginas navega pelas mais díspares
opções de maneira a, a um só tempo, criar a estrutura necessária
ao que se conta como também chama a atenção para a sua própria
natureza.
Em
suma, enquanto biografia de banda desenhada, não estamos perante um
trabalho “didáctico”, que permita uma consulta distraída,
rápida, para nos providenciar com um conhecimento enciclopédico e
reduzido sobre a vida do escritor. Mas uma espécie de possível
experiência da vida de Cortázar, sob o signo da sua própria
escrita.
Uma
nota pessoal. Há ausências em relação à obra literária algo
descoroçoante. Para o autor da “Ilha do meio dia” e “Todos os
fogos o fogo” - dois dos nossos contos favoritos, de tal forma que
integraram enquanto mise en abîme na nossa escrita, com Marta
Teives, de Os Regressos - , uma maior exploração dos níveis
hipodiegéticos, o cruzamento ou contaminação fértil de “temas”
aparentemente díspares no texto literário, está algo ausente. Não
é apenas não haver uma referência a Prosa do Observatório,
mas tampouco seria desejar que houvesse uma combinatória mimando O
Jogo da Macaca (por melhores que sejam as traduções recentes da
Cavalo de Ferro, que têm permitido redescobrir este autor e dar a
conhecer escritos até agora ausentes nas prateleiras dos
portugueses, recuso-me a pensar na Rayuela com o
gongórico e pedante título O jogo do mundo), mas é uma
certa pressa, digamos assim, em apresentar uma narrativa que começa
no seu nascimento e termina na sua morte. Há uma espécie de
prólogo, que apresenta uma narrativa absurda e surpreendente, de
coincidências mágicas, mas esse tom não regressa mais, arrancando
a vida literária de Cortázar da vida circunstancial do seu corpo.
Assim, por mais cronópio que se teça, há sempre um peso de
fama a não permitir que o livro desabroche nessa direcção.
Nota: cópia lida da Tinta nos Nervos.
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