Não se tratando propriamente de
um dicionário, ou enciclopédia organizada, fêmea está
organizado de uma maneira que permitirá usos idênticos ao desses
objectos livrescos: uma consulta, em vez da leitura linear, e
uma descoberta, abrindo a maior pesquisa pontual. As secções
são claras e reveladoras: a primeira é dedicada a “artefactos”,
ou objectos e invenções que, de uma maneira ou outra, vieram,
alterar as possibilidades dos movimentos sociais da mulher, para bem
ou para mal, e as mais das vezes, para ambos; a segunda reúne
“manifestos”, no sentido do que é manifestado, encarnado, que
ganha corpo, por entre personagens histórias ou papéis colectivos
que poderão servir de modelo maximal ao esforço feminino na
História, ainda muitas vezes escrita no masculino; a última focando
“territórios”, isto é, campos profissionais que vieram a ser
ocupadas de uma maneira especial por mulheres, ou por pressões
sociais que as confinavam a esses papéis, ou por pressões sociais
que as impediam de ocupar esses papéis e que acabaram por ocupar de
modo especial. (Mais)
Depois,
cada capítulo, texto, cada “entrada”, por assim dizer, 12 por
secção, vai exemplificando-a: fala-se da lixívia e do vibrador,
dos véus e das máquinas de lavar roupa, das revistas femininas e do
diário; arrolam-se os nomes de Nina Simone, Anaïs Nin, e Sara
Baartman, dita a “Vénus Hotentote”; exploram-se as classes das
freiras, costureiras e enfermeiras, de bailarina e operária fabril,
de atleta, juiz e professora.
Não
será este o livro que pesquisa de forma profunda e balizada
histórica e sociologicamente um papel específico da “mulher” -
da pluralidade dessa categoria – em cada sociedade determinada –
a “mulher” da Antiguidade grega não é a mesma da “Cristandade
Europeia pós-medieval”, nem elas são as sufragistas de ontem ou a
mulher de hoje. E mesmo hoje, há muitas diferenças, de classes
sociais, profissionais, étnicas, culturais, sexuais, e por aí
adiante. Aliás, o livro em si admite precisamente a potencialidade
da pluralidade desse descritivo, não apenas alcançando mulheres
não-ocidentais e de outros tempos, como ainda personagens ficcionais
(a mulher “balzaquiana” e a Mafalda de Quino) como categoriais
colectivas (as bruxas, as pitonisas).
Os
textos em si não procuram ser, de forma alguma, secos e directos e
objectivos (num sentido de “objectualidade”), mas antes abertos a
cruzamentos cronológicos, mostrando os ecos que perduram nos nossos
dias de algo da Antiguidade, solidariedades de lutas anciãs com as
que hoje se mantêm, elos comunitários entre mulheres de culturas
distantes entre si mas pertencentes à mesma sororiedade por alguma
razão.
E
os desenhos de Ana Biscaia tentam sempre criar uma respiração
paralela ao texto, criando laços narrativos ou aberturas de
intepretação, que deverão pouco à âncora do texto. É assim que
o baú de noiva arde por dentro e destila sonhos lúbricos por fora;
que a criada se vê isolada num tabuleiro de xadrez mas mesmo assim
votada à inércia e a costureira se erga como uma máquina
desconstruída de Léger; que a exuberância da prosa de Nin se
apresente como fiapos de linhas a grafite, aguadas de café, e
fantasmas de sombras; que cores ocres e térreas e composições
africanistas componham o friso das atletas mas a Khoisan que serviu
de “peça de zoológico” surja contra um glorioso salmão vivo.
Os desenhos não encerram, nem esclarecem, reduzem ou explicam:
abrem. Desabrocham. E quase sempre celebram, com uma alegria
inerente à figuração, de linha nervosa mas suave, de cores poucas
mais vívidas.
Uma
última parte é reservada a “testemunhos” (as aspas são de
citação, não de reservas à natureza dos textos): relatos na
primeira pessoa de 6 mulheres, numa linguagem despojada, cheias de
traços de oralidade e urgência em não esquecer, uma linguagem
descontraída que revela memórias fugazes, subtis, de alegrias e
dores, revelando experiências que têm tanto de individual como de
repetível, pela sua própria comunalidade merecedora de recuperação
e de transformação em texto perene. De várias estações sociais e
momentos da nossa história colectiva, estas mulheres portuguesas
mostram um retrato feito pelos seus corpos e almas, por vezes a um
ponto insuportavelmente comovente. Sobretudo para que não esqueçamos
(não peço desculpa de me meter nesse número, como homem), nós que
aqui estamos e não estivemos lá, num tempo e espaço em que a luta
era maior, que a luta foi
maior. Não terminou, decerto, mas é feita na sombra de outras
conquistas entretanto já havidas. fêmea assinala-as.
Nota
final: agradecimentos à artista, pela oferta do livro.
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