19 de agosto de 2019

Verões felizes. Vol 1. Zidrou e Jordi Lafebre (Arte de autor)


A fórmula é sustentável. Cada livro desta série é dedicado a um Verão da família Faldérault, que parte “rumo ao sul” na sua 4L – um clássico – comme il faut, com mudanças no tablier. Há frases repetentes e canções que se alteram, pontos de passagem obrigatórios e variações aventurosas, piadas recorrentes e transformações significativas na vida de todas as personagens. A propósito de Finalmente o Verão havíamo-lo dito: o Verão é em si mesmo uma narrativa bem contida. Ei-la transformada em série. 

Cada Verão tem um princípio e um fim definidos, mesmo que neste caso o momento da partida e de chegada possa ser ditado, de forma aleatória, pelo ritmo do trabalho do pater familias, autor de banda desenhada comercial. Depois, há a chegada ao ponto de partida, que poderá ditar em si mesmo as diferentes aventuras, os aliados e inimigos, o tesouro e o dragão. Todavia, nas mãos de Zidrou e Lafebre, apesar se poder ler cada “aventura”, o leitor terá de estar atento para recriar os sentimentos mais fundos e perenes desta saga familiar.

Um aspecto importante de notar é que o primeiro volume começa com uma moldura introdutória de duas páginas, com o casal Faldérault, já em idade avançada, e sozinhos, a visitar o que depois se descobrirá ser um canto predilecto na viagem até ao sul de França. Não regressamos a este ponto cronológico nem nesse nem no segundo volume, o que faz imaginar que, putativamente, o fecho de toda a série se poderá encontrar novamente nesse mecanismo narrativo, criando a ideia de que todas as histórias por álbum são memórias do casal. Mais, isso ajudará a compreender ainda mais a razão pela qual os autores apresentam e apresentarão os Verões fora da ordem cronológica, e com um grande intervalo a preencher (pelo menos, do que é dado ver, teremos o relato dos Verões entre 1962 e 1980).

Portanto, o que isso nos dá a entender é que para os autores é menos importante considerarmos a série como sendo o reconto ordenado da vida de uma família, do que percebermos a maneira como a memória, a nostalgia, a ponderação do passado, cria novas narrativas de identidade. Não sendo propriamente uma obra interessada em graus de complexidade e sofisticação narrativa mais adequados a outros géneros ou explorações autorais, ainda assim esta série “leve” implica um trabalho de associação e arqueologia da parte dos leitores, que vai tecendo as informações de cada página para tentar compreender todos os não-ditos, os segredos, os pormenores da história familiar e, acima de tudo, a fortuna das relações entre os membros. Afinal de contas, testemunhamos, para já, como se evitou um divórcio, que escolhas profissionais se fizeram, que possíveis crises pessoais se cultivam, que sonhos foram gorados e que felicidades conquistadas.

O livro é construído, numa primeira fase, a partir de uma acumulação de referências ao passado da cultura belga, que servirá como estímulo da nostalgia junto aos seus leitores. Um pouco como a série Stranger Things, o número de referências vai sendo multiplicado quase até à agonia, mas os clin d'oeil mantêm-se suficientemente equilibrados. Objectos, marcas, canções, até mesmo práticas, de papel de parede a meias altas, tudo contribui para esse efeito de referencialidade. E apesar de tudo, há toda uma série de referências que os leitores portugueses eventualmente apanharão igualmente, mesmo que haja diferenças ou adaptações a fazer. Desde as canções de Joe Dassin, uma forma particular de tortura em viagens de carro, às referências aos raviolis em lata aquecidas em banho-maria. Aliás, não é apenas essa ligação à famosa série de televisão alemã que é possível de se fazer, como inevitavelmente ao Verão azul. A própria “caça” às revistas de banda desenhada, se no caso de Pierre é movida por interesse profissional, por muitos dos leitores terá sido feita genuinamente por prazer e necessidade.


O desenho de Jordi Lafebre tem aquele sabor de equilíbrio excelente entre o realismo – a que as cores, com apoio de Mado Peña, segue regras de iluminação exímias, mesmo nas paletas limitadas – e a caricatura, recordando a grande tradição na qual Albert Uderzo terá sido um dos maiores cultores, mas que a escola da revista Spirou, onde o jovem autor espanhol trabalhou, também fez medrar no mundo franco-belga. Isso permite que a expressividade das personagens aumente a intensidade quer dos episódios mais patetas quer os momentos em que se procuram genuinamente explorar sentimentos menos felizes, ou traços subtis de reacção.

A edição portuguesa reúne os dois primeiros volumes num só tomo, e planeaia fazer o mesmo no segundo e hipotético terceiro volume. Desviando-se um pouco da oferta do seu catálogo, Verões felizes é uma série menos bombástica que as restantes desta editora, mas por isso mesmo com talvez maior capacidade em conquistar um público mais alargado e que procure ritmos e temas mais humanos e comuns na sua literatura desenhada.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.

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