Um é um pequeno
apontamento, talvez autobiográfico, sobre pêras verdes comidas e
deixadas na infância. O outro uma pequena ficção, um fado, sobre
uma personagem patética e trágica. Em termos de género, de tom e
humor, não haveria nada em comum. O desenho tem afinidades, claro,
mas Patrícia Guimarães lança mãos de várias técnicas na forma
como constrói o desenho, persegue as linhas, fecha os contornos e
preenche o espaço com aguadas mínimas, quase ríspidas. (Mais)
Se num momento a autora
precisa de demonstrar a explosão de sangue de um insecto, ou o vapor
a água contra os azulejos de uma banheira, a escuridão dissipada
por um grito, ou as sombras por entre as folhas das árvores, poderá
utilizar uma técnica que não se repetirá nas restantes páginas.
Mais pictoral que gráfica, Guimarães não está preocupada com uma
espécie de coerência interna, ou melhor dizendo, homogeneidade
gráfica, dos seus projectos, no que na mais precisa correcção do
que quer “dizer”, verbo que abarca a figuração, o pormenor do
traço, o enquadramento, a composição, a convivência com a matéria
verbal.
Ambas as histórias estão
na primeira pessoa, mas é quase natural que, como leitores, façamos
escolhas diferentes dos enquadramentos narrativos e,
consequentemente, emotivos, ao associá-los à autora. Dizer
“autobiografia” ou “ficção” implica posicionamentos
diferentes, e é com algum esforço que os dispensamos para poder
apreciar a matéria textual por ela mesma. Mas é isso a que a autor
obriga. Esquecer essas distinções e absorver as “histórias”
como se de um poema, ao qual nos aproximamos, ou devemos aproximar,
totalmente livres, se tratasse.
Outra afinidade se
estende. Se no caso de Manuel inútil
o tema das mãos, desmesuradas do protagonista, é absolutamente
central, não perde a sua presença em Pêra
Verde, nas mãos da jovem rapariga que
se estende para apanhar os frutos, ou nas da avó idosa ligando a
Renascença. Estes dedos todos tocam nas superfícies sedosas dos
frutos, o plástico duro dos manípulos, a terra húmida, ou a pele
retráctil do coração de uma velha prostituta. E ao mesmo tempo são
as mãos que deixaram estas imagens e palavras no papel que as nossas
vasculham, à procura de um momento em que compreendemos o que
significa uma verdadeira sensação humana. Com sorte, alguns
leitores descobrirão e não a perderão com estas publicações.
Nota final: publicações
oferecidas pela Bedeteca de Beja e pela própria autora, agradecendo
a todos.
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