Esta nota breve serve para
falar de um livro que foi, originalmente, publicado pela casa Le
Terrain Vague, parte do projecto editorial de Eric Losfeld, que nos
daria também Emmanuelle, as obras de Sacher Masoch e De Sade,
no campo da literatura dita “erótica” (que vocábulo mal
empregue e confuso nestes três casos), e todo um rol de bandas
desenhadas de expressão francesa dos anos 1960 que introduziriam,
para nunca mais se alterar, o erotismo e um certo grau de
sofisticação intelectual e visual.
Todavia,
estamos longe de uma obra com o peso literário de um Mishima,
Bataille, ou Renault na sua capacidade de descrever as forças
subcutâneas e tectónicas do desejo e as esplendorosas formas como
explodem cintilantes no momento da libertação expressiva a que
acedem. Tampouco estamos perante os malabarismos frásicos de um
Ubaldo Ribeiro ou até à desfaçatez, sarcasmo genuíno de um Luiz
Pacheco. Apesar de se titular uma “confissão”, não há aqui
espaço para a intimidade e proximidade desse género, mas tão
somente um tom quase documental, jornalístico e, passe o paradoxo,
seco. Todavia, a promessa desse percurso permite, digamos assim, um
acesso directo às questões principais. (Mais)
Não
é nosso papel discutir o valor social ou antropológico do livro, no
que diz respeito ao papel que terá tido no seu tempo ou que teria
agora. Há aqui muita matéria para celebração e debate,
seguramente, no que diz respeito às questões de representação do
que se entende por “feminino”, o “papel social feminino”, a
definição de género/sexo, a expressão da sexualidade, as esferas
do privado e público, a aparente homofobia do autor, etc. Num
momento em que em Portugal ainda há muito que aprender….
A
nosso ver, se nos for permitido, a única “perversão” sexual
será aquela que medra onde os outros sofrem, fora do consenso. A
questão da fragilidade literária deste livro nada tem a ver com o
facto de ser “esquisito” ou “diferente”, já que nunca o
desejo e a satisfação sexual nos deixa incólumes ou tranquilos. A
relação diametral entre desejo e nojo é sempre relativa, e os
momentos mais autênticos são aqueles em que o autor anónimo
demonstra que não está livre de um profundo sentimento de culpa, de
abjecto, de “grotesco” (palavra do autor) no instante imediato ao
êxtase físico.
A
razão de trazermos à colação este volume é o facto de conter
ilustrações exclusivas de João Maio Pinto, todas elas ocupando
páginas inteiras, como “plaquetes” de luxo, em folhas a quatro
cores, vivíssimas, no recto e verso. E o número de ilustrações –
18, num livro de 96 páginas – é significativo. Estas ilustrações
não são narrativas, mas apresentam-se de uma forma simbólica. A
sua distribuição pelo livro, “interrompendo” o fluxo textual
num ritmo regular, poderá ancorar passagens específicas, mas o seu
propósito é relançar os elementos fantasmáticos discutidos pelo
autor, e concatená-los.
As
estratégias compositivas de Maio Pinto seguem linhas construtivistas
no sentido em que se apresentam como um fundo homogéneo e aberto
contra o qual se destacam objectos heterogéneos num equilíbrio
aparentemente periclitante: objectos puramente geométricos, pedaços
de tecido livres, planos de cor independentes, formas abstractas
flutuando, e claro, “coisas” reconhecíveis, mesmo que
apresentadas de forma parcelar. Inclusive partes do corpo humano, ou
corpos humanos vislumbrados parcialmente.
É
discutível onde está a fronteira, ou sequer se existe, entre o
transvestismo e o fetichismo mais modular. Não nos admiramos,
portanto, que certas peças surjam isoladamente, como presenças
adoradas no que Maio Pinto constrói como “tronos”. Aliás, esta
forma de composição tem sido assinatura do artista, em vários
contextos – o que poderá por vezes levar-nos a perguntar se a
pesquisa específica de cada texto não deveria convidar a modos
distintos de construção; no livro sobre Saramago, numa capa de
jornal, encontramos o mesmo tipo de concatenações gráficas. Porém,
em Confissões parece-nos a escolha acertada, pela maneira
fragmentária, parcelar e recombinatória com que o autor vai
escolhendo as “peças íntimas” e alterando as suas práticas
conforme as circunstâncias e fortunas: ora por vezes concentrada tão
somente numa cueca Pompadour (que uma das ilustrações demonstra
desfraldada como uma “freak flag”) ora na glória possibilidade
da farpela completa (que Pinto traduz num perfil de uma “figura
feminina” que deverá algo a Rrose Sélavy).
Algumas
das escolhas fazem inflectir esboroamentos do que distingue o
orgânico do inanimado, ou o puramente gráfico do representacional.
O que, por sua vez, nos obriga a reler o texto sob esse foco, isto é,
em que o ilustrador nos convida a perseguir uma sua interpretação e
atenção. Os tijolos que serviam de aquecimento ao narrador, por
exemplo, surgem com formas ligeiramente naturais, e passíveis de
sexualização: o texto não revelava essa dimensão, mas ela surge
aqui. Um conjunto de chave e fechadura enquadra uma erecção: o
fetiche do autor é dirigido às peças escondidas nas gavetas, mas é
como se fosse essa passagem (uma “violação” no sentido de
“transgressão da regra/propriedade”) agora o combustível dessa
reacção física. E a culpa advinda do acto mastubatório surge-nos
como um estilhaçar de espelho, acto tão violento como as têmporas
a latejar a convidar ao súbito nojo de que falávamos acima. São
por estas traduções imagéticas que nos parece ganhar o livro uma
força que, francamente, no seu modo literário isolado, fora a
curiosidade, não teria.
Uma
pequena nota sobre a materialidade do livro. O seu formato,
composição do texto e gramagem do papel não convida à leitura
mais suave e flexível. É um livro de “má mão”, e mesmo que o
texto não seja tão titilante que convidasse à exploração
onanista do leitor, acompanhando a narração e visualização por um
acto de auto-amor, o facto dessa possibilidade estar gorada logo à
partida derrota um pouco a potencialidade erótica a que devia dar
azo.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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