23 de agosto de 2019

Ilustrações de João Maio Pinto para «Confissões de um travesti». Anónimo (Orfeu Negro)


Esta nota breve serve para falar de um livro que foi, originalmente, publicado pela casa Le Terrain Vague, parte do projecto editorial de Eric Losfeld, que nos daria também Emmanuelle, as obras de Sacher Masoch e De Sade, no campo da literatura dita “erótica” (que vocábulo mal empregue e confuso nestes três casos), e todo um rol de bandas desenhadas de expressão francesa dos anos 1960 que introduziriam, para nunca mais se alterar, o erotismo e um certo grau de sofisticação intelectual e visual.

Todavia, estamos longe de uma obra com o peso literário de um Mishima, Bataille, ou Renault na sua capacidade de descrever as forças subcutâneas e tectónicas do desejo e as esplendorosas formas como explodem cintilantes no momento da libertação expressiva a que acedem. Tampouco estamos perante os malabarismos frásicos de um Ubaldo Ribeiro ou até à desfaçatez, sarcasmo genuíno de um Luiz Pacheco. Apesar de se titular uma “confissão”, não há aqui espaço para a intimidade e proximidade desse género, mas tão somente um tom quase documental, jornalístico e, passe o paradoxo, seco. Todavia, a promessa desse percurso permite, digamos assim, um acesso directo às questões principais. (Mais)

Não é nosso papel discutir o valor social ou antropológico do livro, no que diz respeito ao papel que terá tido no seu tempo ou que teria agora. Há aqui muita matéria para celebração e debate, seguramente, no que diz respeito às questões de representação do que se entende por “feminino”, o “papel social feminino”, a definição de género/sexo, a expressão da sexualidade, as esferas do privado e público, a aparente homofobia do autor, etc. Num momento em que em Portugal ainda há muito que aprender….

A nosso ver, se nos for permitido, a única “perversão” sexual será aquela que medra onde os outros sofrem, fora do consenso. A questão da fragilidade literária deste livro nada tem a ver com o facto de ser “esquisito” ou “diferente”, já que nunca o desejo e a satisfação sexual nos deixa incólumes ou tranquilos. A relação diametral entre desejo e nojo é sempre relativa, e os momentos mais autênticos são aqueles em que o autor anónimo demonstra que não está livre de um profundo sentimento de culpa, de abjecto, de “grotesco” (palavra do autor) no instante imediato ao êxtase físico.

A razão de trazermos à colação este volume é o facto de conter ilustrações exclusivas de João Maio Pinto, todas elas ocupando páginas inteiras, como “plaquetes” de luxo, em folhas a quatro cores, vivíssimas, no recto e verso. E o número de ilustrações – 18, num livro de 96 páginas – é significativo. Estas ilustrações não são narrativas, mas apresentam-se de uma forma simbólica. A sua distribuição pelo livro, “interrompendo” o fluxo textual num ritmo regular, poderá ancorar passagens específicas, mas o seu propósito é relançar os elementos fantasmáticos discutidos pelo autor, e concatená-los.

As estratégias compositivas de Maio Pinto seguem linhas construtivistas no sentido em que se apresentam como um fundo homogéneo e aberto contra o qual se destacam objectos heterogéneos num equilíbrio aparentemente periclitante: objectos puramente geométricos, pedaços de tecido livres, planos de cor independentes, formas abstractas flutuando, e claro, “coisas” reconhecíveis, mesmo que apresentadas de forma parcelar. Inclusive partes do corpo humano, ou corpos humanos vislumbrados parcialmente.

É discutível onde está a fronteira, ou sequer se existe, entre o transvestismo e o fetichismo mais modular. Não nos admiramos, portanto, que certas peças surjam isoladamente, como presenças adoradas no que Maio Pinto constrói como “tronos”. Aliás, esta forma de composição tem sido assinatura do artista, em vários contextos – o que poderá por vezes levar-nos a perguntar se a pesquisa específica de cada texto não deveria convidar a modos distintos de construção; no livro sobre Saramago, numa capa de jornal, encontramos o mesmo tipo de concatenações gráficas. Porém, em Confissões parece-nos a escolha acertada, pela maneira fragmentária, parcelar e recombinatória com que o autor vai escolhendo as “peças íntimas” e alterando as suas práticas conforme as circunstâncias e fortunas: ora por vezes concentrada tão somente numa cueca Pompadour (que uma das ilustrações demonstra desfraldada como uma “freak flag”) ora na glória possibilidade da farpela completa (que Pinto traduz num perfil de uma “figura feminina” que deverá algo a Rrose Sélavy).

Algumas das escolhas fazem inflectir esboroamentos do que distingue o orgânico do inanimado, ou o puramente gráfico do representacional. O que, por sua vez, nos obriga a reler o texto sob esse foco, isto é, em que o ilustrador nos convida a perseguir uma sua interpretação e atenção. Os tijolos que serviam de aquecimento ao narrador, por exemplo, surgem com formas ligeiramente naturais, e passíveis de sexualização: o texto não revelava essa dimensão, mas ela surge aqui. Um conjunto de chave e fechadura enquadra uma erecção: o fetiche do autor é dirigido às peças escondidas nas gavetas, mas é como se fosse essa passagem (uma “violação” no sentido de “transgressão da regra/propriedade”) agora o combustível dessa reacção física. E a culpa advinda do acto mastubatório surge-nos como um estilhaçar de espelho, acto tão violento como as têmporas a latejar a convidar ao súbito nojo de que falávamos acima. São por estas traduções imagéticas que nos parece ganhar o livro uma força que, francamente, no seu modo literário isolado, fora a curiosidade, não teria.

Uma pequena nota sobre a materialidade do livro. O seu formato, composição do texto e gramagem do papel não convida à leitura mais suave e flexível. É um livro de “má mão”, e mesmo que o texto não seja tão titilante que convidasse à exploração onanista do leitor, acompanhando a narração e visualização por um acto de auto-amor, o facto dessa possibilidade estar gorada logo à partida derrota um pouco a potencialidade erótica a que devia dar azo.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

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