Serão hoje mesmo lançados três
novos títulos pela Sapata Press, cujo papel não é tão somente
criar a possibilidade de publicar fanzines de novos “autorxs”
(que me perdoem, mas não domino ainda esta novilinguagem), como a de
proporcionar um importante espaço público para todo um debate
complexo em torno das questões da identidade, que não se reduz de
forma alguma apenas ao sexo, sexualidade, género ou outras
categoriais sociais. (Mais)
Dirão
os detractores de muitos destes combates que existirá uma “ideologia
de género”, dito de maneira a que ambas as palavras ganhem um tom
pejorativo, e jogando como que a responsabilidade de um suposto
“outro lado” da barricada, não enxergando como se inscrevem, as
mesmas pessoas que empregam tais termos, também elas num campo
ideológico. Não faz mal repetir até à exaustão: o primeiro passo
das ideologias dominantes é apagarem-se enquanto tal, e
revestirem-se de apodos tais como os de “naturalidade”, “normal”,
“são assim as coisas”, “foi sempre assim”, e por aí
adiante. Para assim criar a ideia de que a radicalidade de um
movimento que tenta conquistar mais liberdade, mais individualidade,
mais empatia, mais abertura, acabe por ser retratado de forma
negativa. Mas como não compreender a “militância”, se é um
gesto de defesa contra inúmeras violências que – nem sempre, mas
quase sempre disfarçadas pelo menos – surgem “pequenas”,
“invisíveis” (aos olhos da normal, não de quem a sofre), e que
se disfarçam de palavras, gestos, olhares, disponibilidades,
atitudes, escolhas, campos e condições mesmo de possibilidade?
É
assim que o trabalho de Cecília Silveira, editora da Sapata Press,
lança bases inabaláveis de um novo e mais alargado “campo e
condições de possibilidades”.
As
três publicações são Tom Boy, de Vitorelo, Plexo Lunar,
de Félix Rodrigues e Salomé Honório, e Jacaré, de Sara
Tanganho. Objectos bem distintos entre si, entre o desdobrável (Tom
Boy) e o pequeno livro (Jacaré e Plexo Lunar),
entre a estrutura mais ortogónica da banda desenhada (Jacaré),
a da tira (Tom Boy) e o texto ilustrado (Plexo Lunar),
entre o tom confessional e autobiográfico (Tom Boy), o
fantástico-humorístico-metafórico (Jacaré) e o poético
(Plexo Lunar), esta súbita oferta é um bom retrato da
diversidade material, tonal e estilística que a Sapata escava.
Jacaré
é um relato sem texto que cria uma metáfora divertida, mas ao mesmo
tempo acutilante, do mênstruo mas cuja interpretação pode ir bem
além da anedota, com implicações de descrição física, sensação
fisiológica, sugestão anímica e, claro, até questões simbólicas
e sociais.
Plexo
Lunar dá palavra a uma pessoa, que sente na pele as violências
de que falámos acima, e descreve um mecanismo de defesa, mas ao
mesmo tempo de resistência, resposta e combate. Num tom íntimo,
poético, desincrustar os sentidos deste texto (isto é, o conjunto
imagem-textual) estará nas mãos do leitor.
Tom
Boy, de uma forma desarmante, responde à pergunta que os
não-binários enfrentam repetidamente: “você é menino ou
menina?”. Não nos subtraímos ao número de pessoas que ainda
batalha com a compreensão de que certas categoriais se esboroam, e
mesmo que não tenhamos uma resposta cabal neste projecto de
Vitorelo, é um começo feliz.
E
livros de banda desenhada entrarem na esfera pública enquanto esboço
de respostas felizes é um óptimo voto.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta dos títulos.
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