13 de dezembro de 2019

Encantados e arruinados ante os restos do banquete. José Feitor (Imprensa Canalha)


É hoje lançado o volume que reúne a trilogia de José Feitor de livros com imagens e textos que perfazem um contundente "Fia-te na Virgem e não corras" a toda a humanidade. São esses livros dois que foram publicados anteriormente e de que demos conta, a saber, Uma perna maior que a outra e Pimenta no cu dos outros para mim é refresco. e um inédito, intitulado Ainda que fosses capaz, não o farias (Notas esparsas e incoerentes sobre aquilo que tem corrido mal), . Juntos, ganham título-mor: Encantados e arruinados ante os restos do banquete. Muitos dos desenhos originais destes livros, serigrafias associadas e fontes estiveram expostas na Tinta nos Nervos, entre 19 de Setembro e 16 de Novembro: A Mercadoria é Medonha, vai vender que nem ginjas. Nessa altura, produziu-se um texto para a folha de sala, que poderá servir igualmente de resenha ao novo capítulo e à obra em geral. Aqui o recuperamos e publicamos para toda a gente. O lançamento é hoje, às 18h30, na livraria-galeria Tinta nos Nervos.

Desculpem-me as grandes questões pelas respostas pequenas.
Wislawa Szymborska

Após vários anos enquanto editor do influente e agregador fanzine Zundap, ali pelos anos 2000, e um trabalho esporádico mas aguçado de ilustração editorial de cariz político (Combate) e alguns trabalhos em círculos mais comerciais ou em prol de projectos alheios (publicações periódicas, capas de disco, chegando mesmo a ilustrar projectos de cariz infanto-juvenil, como os livros de Francisco Duarte Mangas, inclusive O Noitibó, a Gralha e Outros Bichos, pela Caminho: 2009), José Feitor deu início a um projecto de publicações literário-artísticas que se viriam a revelar uma trilogia, sem nome englobante até à data, e que são o cerne da presente exposição.
Tratam-se de objectos heteróclitos, que não obedecem às muitas categorias inventadas para balizar quando temos livros onde os textos e os desenhos coabitam sem criar claras hierarquias de primazia, quer de origem quer de valorização, amalgamando-se numa possível e verdadeira co-criação. A concorrência da poética, entre aquilo a que chamaríamos texto e aquilo a que chamaríamos imagem, desagua num equilíbrio.
Feitor parece levar o seu apelido à letra, não apenas num sentido criativo, ou até como administrador de outrem, mas enquanto actor e facilitador dos esforços dos outros na construção de uma comunidade. Os mundos da edição independente, da ilustração livre, da serigrafia, e do quase simples, mas fulcral, convívio entre os fazedores de imagens, devem-lhe – nunca de forma isolada, mas contextualizada e integrada com outras plataformas e agentes, como é natural – as bases de muito o que ainda hoje ocorre e pode ocorrer nesses círculos. Os seus esforços de colectivização foram sempre mantidos ao corrente do que se passava com a organização de várias exposições, acções ou publicações que reuniam um punhado de artistas de círculos similares. É assim que se montam as exposições Zurzir o Gigante e Furacão Mitra (apresentadas ambas no espaço Interpress, a primeira em 2005, a seguinte em 2008), e as várias Feiras Laicas, ao longo de muitos anos (cujo legado foi continuado pela Feira Morta). É assim também que se encontra na fundação da Oficina do Cego, Associação de Artes Gráficas, fundada em 2009, a qual também influenciaria muitos outros projectos.

Enquanto editor, após o zine Zundap, Feitor fundaria a Imprensa Canalha, um pequeno selo editorial independente que daria espaço a vários projectos, sobretudo editoriais, de ilustração, banda desenhada, mas também vídeo e música. Por esse selo publicaria autores tais como Pedro Lourenço, Filipe Abranches, José Cardoso, Luís Henriques, Ana Mendes, Nuno Sousa e Carlos Pinheiro, Tiago Baptista, entre outros. E o seu próprio trabalho, claro. Pela Imprensa Canalha sairiam os colectivos Derby (o qual, jogando com cinco ilustradores de Lisboa e cinco do Porto, de certa forma servirá de semente às associações Oficina do Cego e Oficina Arara) e Cabeça de Ferro (ambos de 2007).
É mais recente, então, a entrada de Feitor na lavra de um conjunto de livros onde assume maiores poderes, e concentrados, nas suas ferramentas criativas. Uma perna maior que a outra sai em 2014, podendo considerar-se como tendo contornos autobiográficos, apresentando-se como colecção de micro-ficções ou memórias que retratam um Portugal social de há umas décadas, ruralizante e rude, cabisbaixo e resignado à tradição, envergonhado mas incapaz de lhe dar solução. Pimenta no cu dos outros para mim é refresco, já de 2019, acaba por assumir contornos mais alargados, atentos à própria espécie humana, e no modo como ela tanto despreza o próximo como sustenta a besta que se nutre no nosso interior. O terceiro passo deste percurso será a publicação Ainda que fosses capaz, não o farias (Notas esparsas e incoerentes sobre aquilo que tem corrido mal), a ser lançada durante o período desta mesma exposição, na própria livraria Tinta nos Nervos. Do “si” (Perna) à “espécie” (Pimenta), chegamos, em Ainda que fosses capaz, de foco maioritariamente social, atento à vida na polis, ao “cidadão”, mas a besta mantém-se na mesma, número ao qual o autor não se subtrai.
Para além da flutuação de géneros, tivemos portanto igualmente uma expansão, concêntrica, do escopo da atenção. Em primeiro lugar, uma autobiografia disfarçada, depois um tratado ensaístico sobre a natureza humana (revelada como essencialmente selvagem e ególatra), e agora uma contenda, nos seus sentidos etimológicos mais antigos, de diatribe (dia + tribein, “esbanjar”, “gastar”) ou polémico (polemos, “guerra”).
As tradições de Kathe Kollwitz, de George Grosz and Otto Dix, Ben Shahn, Saul Steinberg, de Topor e Blutch, digladiam-se para ganhar maior peso na assinatura gráfica de José Feitor, mas sem vencedor à vista. Erguendo-se no negro sólido da tinta-da-China, com o pincel mais gestual e meio-seco ou a caneta que permite maior controlo dos contornos fechados, a aguada com sombras de meios-tons ou a ecoline vibrante, a serigrafia planeada ou o célere apontamento, o artista lança mão de técnicas de variada índole, mantendo, ainda assim, com a força da gravidade, uma afinidade entre os desenhos pela sua acutilante, até severa, natureza. Se a figuração parte sempre de uma matriz humana, ela vai-se escapando em várias direcções, pelo cruzamento da animalidade ou da carga desviante que as máscaras permite (fará sentido falar de máscara num desenho estilizado? Não é próprio da figuração que ali está? Que direito teremos de imaginar que há algo “por trás” desses rostos que não a sua própria superfície?). Mas a atitude teatral, hierática, mantém-se.

Apesar do foco aparentemente autobiográfico em Uma perna, a centralidade egotista sofre um desvio pelo emprego (“apropriação”, no parlatório das artes) de modelos advindos do espólio fotográfico de António Gonçalves Pedro. Todavia, as escolhas compositivas e relacionais entre as personagens de Feitor, em todos estes projectos, têm sempre um tanto de iconografia católica, em que cada objecto nas mãos, ângulo do pescoço, corte da batina ou menino ao colo são como os atributos dos santos.
Munido de uma escrita parabólica, para não dizer epigráfica, e onde a fraseologia, o vocabulário e as cadeias hipotácticas seguem filigranas tão centrifugamente sugestivas como centripetamente elegantes, Feitor assume um saber e labor literário que se abre a enquadramentos sociais e de acções maiores do que imediatamente descrevem.
Os temas esgrimidos no terceiro tomo ou passo, Ainda que fosses capaz, são hodiernos, mas Feitor abstém-se de empregar termos como fim da história ou sociedade do espectáculo, necropolítica, capitalismo zombie. Não é necessário, pois o tecido sofrido da única possível comunidade humana, a estética, já se rompeu há muito, ou foi reaproveitado como pano de assoar ou lenço ostensivo de bolso. O autor retorna a modos mais crus de nos mostrar as coisas, com as suas personagens, monstros no verdadeiro sentido da palavra (“mostrar”), erguendo-se em posições hieráticas que mimam os antigos emblemas. O princípio da analogia, juntando aquilo que se julgava distinto, incomparável, numa só imagem – o homem e o animal, por exemplo –, preside a esta espécie de Danse macabre: procissão de diversas e multiplicáveis personagens na única, a um só tempo, inevitabilidade e certeza humana, recortando em potência prometida todas as estações sociais e anímicas do homem. Não há traço identitário que escape. Não há justificação de comportamento, “posicionamento”, que os salve. Vai tudo a eito.

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