De
novo, temos pelas mãos deste autor uma pequena grande obra
auto-editada que, existisse maior fortuna e justiça nas letras, nas
imagens ou mesmo nas letras-com-imagens nacionais, teria seguramente
uma maior circulação e recepção, ainda que suspeitemos que jamais
ao alcance das massas, no seu sentido mais social e também
pejorativo. Se nós, símios, gostamos de ver espelhos, somos mais
movidos ora pela facécia (em relação ao outro) ora pela soberba
(em relação ao próprio), raras vezes pelo desejo de uma escavada
introspecção. Que é o que se leva a cabo aqui. Não se tratando já
de uma prosa cujos instrumentos revelam da autobiografia, como o caso
de Uma perna..., mesmo assim o autor não se escusa de se
incluir no “macaco nu” que pinta nestas páginas, pelo uso de
pronomes na primeira pessoa como fórmula de pertença a esta
espécie.
A
prosa de Feitor é de um requinte de joalheiro. É pelo vocabulário,
a sintaxe e o sarcasmo fino que o escritor mostra a sua lavra e
distância do uso diário da linguagem, elevando-a a exercício de
uma mais contundente razão. As pequenas prosas, dactilografadas sob
as imagens, como se se tratasse de um arquivo antigo, bebe (é citado
no fim) de obras díspares como Hobbes e Freud, Elias Canetti e
Stephen Jay Gould, entre outros. Existem trechos reconhecíveis, ou
temas repetentes e sobejamente conhecidos da lavra desses autores, e
aquilo que a psicanálise, a economia, a sociologia, a biologia, têm
em comum é a maneira como interrogam o bicho humano. As lições
colhidas e arranjadas neste ramalhete entrelaçam-se em torno da
ideia do que significam as comunidades humanas, seja a pátria seja a
família, e como nenhuma delas é suficientemente forte, ainda assim,
para apagar a besta que se nutre no nosso interior. Ou pior ainda,
são essas mesmas comunidades quem alimenta a bestialidade pronta a
ser redistribuída pelos outros. O verniz estala a qualquer momento e
por dá cá aquela palha, e nem na morte encontraremos sossego dos
falsos moralismos e hipocrisia. É aí que Pimenta no cu
dos outros para mim é refresco discorre.
A
beleza desta prosa parece ter afinidades, ainda que não directas,
mas de tradição, com autores tais como Augusto Abelaira ou M.S.
Lourenço. Cada palavra um acerto, obrigando a uma leitura pausada e
em voz alta. Não se trata de avançar rapidamente para o desenlace
de um conceito, mas a degustação de um pensamento articulado.
Se
nas palavras há um afastamento da autobiografia – enquanto género
literário – nas imagens há também uma deriva do projecto
anterior. Do registo mais realista e baseado em fotografias de foro
antropológico de Uma perna, Pimenta abandona-se a
composições mais fantasiosas. A assinatura gráfica do autor
mantém-se, com as suas linhas de contorno grossas, em alto
contraste, e uma composição central, quase de citações clássicas,
das personagens, em momentos pregnantes de um qualquer drama cuja
causa e desenlace apenas podemos imaginar. Mas o cruzamento entre o
humano e o animal, ou o vegetal, o monstruoso, o dilacerado, aumenta.
Os rictos e máscaras ganham cidadania modelar. O fantástico e o
absurdo tomam conta da cena. A realidade humana não é feita somente
de realidade.
“O
homem não é aquilo que aparenta ser, apesar da atmosfera
prevalecente de altos pensamentos e nobres aspirações.” Esta é
uma frase de Ralph Steadman a propósito das ditas caricaturas de
Leonardo da Vinci, cuja colecção de desenhos de fácies
tremendamente grotescas e distorcidas são provavelmente menos fruto
da hipérbole física que os irmãos Carracci transformariam numa
disciplina específica do desenho humorístico do que parte da
contínua pesquisa da realidade humana. Sentimos algo similar nestes
“retratos” de seres humanos: por detrás de mecanismos
científicos avançados, mantêm a mesma face embevecida senão
imbecil; perante o desconhecido, o estranho ou o mais fraco, colocam
caretas de fúria; junto aos seus pares, haja hierarquia, esvaziando
o brilho dos olhos; apanhados sozinhos e sem lei, encontram-se maçãs
do rosto e punhos.
Podemos
revelar, parcialmente, que o terceiro volume se encontra em produção,
e cujo lançamento terá lugar no seio de uma exposição
significativa que reunirá os trabalhos destes três títulos. Ensaio
sobre a espécie humana, o gesto final fará ver em que medida se
articulam estas três partes. Para já, ficamos com estas ofertas
sobre o fechamento da cultura local e agora sobre a universalidade do
bestial. Um gesto literário e imagético, que age como um álbum
sobre o humano, demasiado humano, pateta alegre e criatura triste,
esboçada na terrível franqueza das palavras e nos distorcidos
reflexos de Pimenta no cu dos outros.
Nota
final: agradecimentos ao autor-editor, pela oferta do volume.
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