26 de agosto de 2019

Pêra Verde & Manuel inútil. Patrícia Guimarães (C. M. Beja & fanzines e martelos)



Um é um pequeno apontamento, talvez autobiográfico, sobre pêras verdes comidas e deixadas na infância. O outro uma pequena ficção, um fado, sobre uma personagem patética e trágica. Em termos de género, de tom e humor, não haveria nada em comum. O desenho tem afinidades, claro, mas Patrícia Guimarães lança mãos de várias técnicas na forma como constrói o desenho, persegue as linhas, fecha os contornos e preenche o espaço com aguadas mínimas, quase ríspidas. (Mais)

Se num momento a autora precisa de demonstrar a explosão de sangue de um insecto, ou o vapor a água contra os azulejos de uma banheira, a escuridão dissipada por um grito, ou as sombras por entre as folhas das árvores, poderá utilizar uma técnica que não se repetirá nas restantes páginas. Mais pictoral que gráfica, Guimarães não está preocupada com uma espécie de coerência interna, ou melhor dizendo, homogeneidade gráfica, dos seus projectos, no que na mais precisa correcção do que quer “dizer”, verbo que abarca a figuração, o pormenor do traço, o enquadramento, a composição, a convivência com a matéria verbal.

Ambas as histórias estão na primeira pessoa, mas é quase natural que, como leitores, façamos escolhas diferentes dos enquadramentos narrativos e, consequentemente, emotivos, ao associá-los à autora. Dizer “autobiografia” ou “ficção” implica posicionamentos diferentes, e é com algum esforço que os dispensamos para poder apreciar a matéria textual por ela mesma. Mas é isso a que a autor obriga. Esquecer essas distinções e absorver as “histórias” como se de um poema, ao qual nos aproximamos, ou devemos aproximar, totalmente livres, se tratasse.

Outra afinidade se estende. Se no caso de Manuel inútil o tema das mãos, desmesuradas do protagonista, é absolutamente central, não perde a sua presença em Pêra Verde, nas mãos da jovem rapariga que se estende para apanhar os frutos, ou nas da avó idosa ligando a Renascença. Estes dedos todos tocam nas superfícies sedosas dos frutos, o plástico duro dos manípulos, a terra húmida, ou a pele retráctil do coração de uma velha prostituta. E ao mesmo tempo são as mãos que deixaram estas imagens e palavras no papel que as nossas vasculham, à procura de um momento em que compreendemos o que significa uma verdadeira sensação humana. Com sorte, alguns leitores descobrirão e não a perderão com estas publicações.
Nota final: publicações oferecidas pela Bedeteca de Beja e pela própria autora, agradecendo a todos.

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