Confessemos
que não somos alheios a todo um complexo de nostalgia, que muitas
vezes suspende a razão, a aprendizagem e o desenvolvimento dos
conhecimentos, e se prende tão-somente a memórias de um tempo
diverso, protegido, de regressão infantil, no qual apenas os
prazeres epidérmicos e imediatos contavam. A banda desenhada, sendo
uma linguagem ou forma artística cuja presença era garantida desde
um primeiro momento, teve um papel absoluta e naturalmente
fundamental. Ora, dessas leituras primárias, existirão muitos
textos que foram sendo abandonados, esquecidos ou apagados
precisamente pela maturação cultural e intelectual, mas outros
deixaram os seus fantasmas. E a série Blake & Mortimer
faz parte do pequeno grupo de fantasmas que sobrevivem. (Mais)
Tal
não significa que tenhamos acompanhado os desenvolvimentos
pós-Jacobs com particular interesse ou prazer. Na verdade, a
esmagadora maioria tem sido pouco satisfatória a vários níveis,
quer gráfica, quer literária ou narrativa, quer mesmo em relação
aos modos de composição originais de Jacobs. E por vezes, pior do
que isso: quando se tenta “corrigir” Jacobs, quando se tenta
revisitar uma certa ingenuidade política ou paternalismo que hoje
não se coadunam ao nosso grau de exigência, quando se tenta mimar a
elegância gráfica do autor original, quando se tenta sexualizar a
série, etc.
Com
efeito, quando se tem uma assinatura individual e uma tal ancoragem
histórica e circunstancial, qualquer tentativa de aproximação
tomba no pastiche e esta estratégia raramente sobrevive a si
mesma. E das duas uma, ou se assume a sátira ou é preferível a
“versão”. Daí que, no âmbito que separava a esmagadora maioria
produção da banda desenhada mainstream franco-belga (banda
desenhada de autor único) e a norte-americana (personagens-marcas
refundadas por cada novo criador-funcionário), o surgimento de
trabalhos associados a personagens como Spirou, Tif & Tondu,
Lucky Luke, etc., na mão de novos autores, era mais salutar quando
se afastavam da matéria original. (Em breve, visitaremos o Blueberry
de Sfar e Blain).
Por
outro lado, falamos já num punhado de ocasiões naquela também
fantasmática e estimulante reacção face a potencialidades de uma
personagem ser desenhada por determinado auteur, prometendo
algo muito feliz e surpreendente: um Bilal desenhando um Tintin numa
perigosa intriga internacional, um Super-homem místico nas mãos de
Moebius, muitas das pranchas de Cent pour Cent, ou o magistral
Variations de Blutch... Portanto, o anúncio de uma versão de
Blake & Mortimer pelo artista François Schuiten fazia
adivinhar menos um seguimento do programa da editora do que um
“crossover”, balizado por uma equação potente entre esses graus
de nostalgia, uma expectável obsessão pela desconstrução da
arquitectura, um qualquer grau de realismo mágico. Na verdade, em
termos materiais, todos esses elementos estão presentes, mas com uma
deselegância constrangedora.
O
livro repesca muitos dos materiais do Mistério da Grande
Pirâmide, sobretudo a amnésia causada sobre as duas personagens
pelo Xeque Abdel Razek. Há múltiplos elementos que são um piscar
de olhos a outras aventuras, claro está, mas o ponto de partida é o
fecho da abóboda, por assim dizer, desse díptico clássico. Esse
segredo será então revelado neste novo livro, que tem lugar décadas
mais tarde, numa espécie de Europa cinzenta e burocrática da década
de 1970, paralela à histórica, mas que se permite flexível em
termos plásticos. Em muitos aspectos, é como se este álbum fosse
uma fantasia de um Chernobyl “positivo”. Ancorado no realismo, a
fantasia tem início quando se faz uma descoberta inusitada na
própria estrutura interna do Palácio da Justiça de Bruxelas,
verdadeiro bastião de uma arquitectura supra-humana, esmagadora em
termos de escala, kafkiana em termos de reacção, e obsessão de
Schuiten (revisitada noutros trabalhos). Repescando pormenores da sua
construção, decoração e motivos e mesmo a biografia intelectual
do seu arquitecto, Joseph Poelaert, descobrir-se-á que existe nas
suas catacumbas uma pirâmide egípcia invertida, construída pelos
próprios egípcios, séculos atrás, e mantido como segredo de uma
sociedade oculta.
Infelizmente,
estes mecanismos são algo banais e já empregues até à exaustão,
tornando algo adolescente a sua organização. O problema não está
apenas no uso de banalidades, é a sua coerência interna, jamais
consolidada e apenas avançando por se revelar mais um segredo e
outro, tornando a estrutura episódica e desconexa. Mais uma vez se
repetem as ideias das linhas de Ley (não nomeadas como tal), da
suposta fraternidade entre as pirâmides egípcias e as
meso-ameríndias, independentemente dos períodos históricos,
empregos sociais e papéis políticos, e estados tecnológicos, e da
existência de energias misteriosas e o diabo a sete. Sem qualquer
esforço, todavia, de uma criação sofisticada de razoabilidade,
integração e fluxo temporal, consequência e desenvolvimento. Nada.
As coisas são apresentadas como tal, e o leitor que as engula.
A
partir dessas premissas, o livro divide-se em duas partes. Uma
primeira lidando com o primeiro “desastre” energético que vai
isolar Bruxelas do resto da Europa, transformando o Palácio numa
espécie de farol, e uma segunda, anos mais tarde, quando essa esfera
de “impotência” ameaça alastrar por toda a Europa, e Mortimer,
sozinho, se arrisca a procurar no interior do Palácio o mistério e,
dentro da medida da possibilidade, garantir uma solução para o
resolver. Aqui, vem envolver-se a questão da utopia ecológica,
imediatamente implicando a resolução igualmente da agressividade
militar, dos desequilíbrios económicos e agrários, da emigração
terceiro-mundista, da dependência tecnológica, do consumismo
desenfreado (combatido por um álbum com várias versões de capas
diferentes para coleccionadores) e, quem sabe, das desigualdades de
género, sexuais e outras “questões fracturantes”. Só está
ausente a maldita música que os miúdos ouvem hoje em dia e as modas
sem-vergonha. Sempre, claro, mantendo a ideia de que é o sexagenário
– que salta de paraquedas! - anglo-saxónico, representante da
lógica racional pós-Iluminista, branco, civilizador, que une na
perfeição a junção de todas as sapiências da cultura mundial e
que literalmente tem a chave dos problemas na mão. Abdica-se de
consequências verdadeiramente intelectuais, psicológicas e emotivas
em torno de uma intriga linear, simplista e mecânica.
Schuiten
não tenta, de forma alguma, imitar a linha clara de Jacobs. Nem
tampouco, como outros autores, de “retraçar” vinhetas do mestre
da ligne claire original. Se nas suas mãos a representação
detalhada dos cenários ganha uma corporealidade ainda mais presente,
e vincada de forma superior pelo uso das cores, gradientes, e
perspectivas atmosféricas, infelizmente a figuração humana
continua a ser particularmente tristonha, perra e inexpressiva. O
abuso das tramas torna porém mais pesada a ambiência do trabalho. A
opção de envelhecer as personagens – não uma estratégia nova,
tentada antes por Convard e Juillard – poderá ser superficialmente
interessante, mas acaba por simplesmente reforçar a ideia de
nulidade das personagens. Blake é secundarizado a um ponto quase de
inacção total, e Mortimer aparece como uma espécie de caricatura
de si mesmo, piorando então o seu emprego enquanto “white saviour”
e potencial objecto amoroso da personagem feminina, bem mais jovem
que ele (uma fantasia recorrente na obra de Schuiten, na verdade –
aliás, as fantasias que havíamos discutido a propósito de LaDouce estão aqui presentes, até porque se incluiu essa
locomotiva como objecto de combate e resistência neste mesmo álbum).
Mais, Blake é apagado por, possivelmente, poder estar aqui a
representar o poderio militar – ele diz “seguir ordens” a dado
momento – e não é “bem-pensante” nem “liberal” termos
militares como personagens principais e significativos hoje em dia...
(esta secundarização também não ocorre somente aqui: a série
deveria antes chamar-se As aventuras de Mortimer e, vá, de quando
em vez o Blake aparece).
A
personalidade mais forte destes autores está assegurada quando não
tentam fazer uma continuidade, insustentável, da série original nos
nossos dias, mas antes uma apropriação autoral. Infelizmente, a
matéria literária não é sofisticada e a parte da arte, se
apresenta algumas imagens memoráveis ou algumas composições
competentes, como é de esperar, não são de forma alguma o rasgo de
génio que se esperaria deste conjunto de autores experientes.
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