5 de janeiro de 2020

Blake & Mortimer: Le Dernier Pharaon. François Schuiten, Thomas Gunzig, Jaco Van Dormael e Laurent Durieux (Blake et Mortimer)


Confessemos que não somos alheios a todo um complexo de nostalgia, que muitas vezes suspende a razão, a aprendizagem e o desenvolvimento dos conhecimentos, e se prende tão-somente a memórias de um tempo diverso, protegido, de regressão infantil, no qual apenas os prazeres epidérmicos e imediatos contavam. A banda desenhada, sendo uma linguagem ou forma artística cuja presença era garantida desde um primeiro momento, teve um papel absoluta e naturalmente fundamental. Ora, dessas leituras primárias, existirão muitos textos que foram sendo abandonados, esquecidos ou apagados precisamente pela maturação cultural e intelectual, mas outros deixaram os seus fantasmas. E a série Blake & Mortimer faz parte do pequeno grupo de fantasmas que sobrevivem. (Mais) 

Tal não significa que tenhamos acompanhado os desenvolvimentos pós-Jacobs com particular interesse ou prazer. Na verdade, a esmagadora maioria tem sido pouco satisfatória a vários níveis, quer gráfica, quer literária ou narrativa, quer mesmo em relação aos modos de composição originais de Jacobs. E por vezes, pior do que isso: quando se tenta “corrigir” Jacobs, quando se tenta revisitar uma certa ingenuidade política ou paternalismo que hoje não se coadunam ao nosso grau de exigência, quando se tenta mimar a elegância gráfica do autor original, quando se tenta sexualizar a série, etc.

Com efeito, quando se tem uma assinatura individual e uma tal ancoragem histórica e circunstancial, qualquer tentativa de aproximação tomba no pastiche e esta estratégia raramente sobrevive a si mesma. E das duas uma, ou se assume a sátira ou é preferível a “versão”. Daí que, no âmbito que separava a esmagadora maioria produção da banda desenhada mainstream franco-belga (banda desenhada de autor único) e a norte-americana (personagens-marcas refundadas por cada novo criador-funcionário), o surgimento de trabalhos associados a personagens como Spirou, Tif & Tondu, Lucky Luke, etc., na mão de novos autores, era mais salutar quando se afastavam da matéria original. (Em breve, visitaremos o Blueberry de Sfar e Blain).

Por outro lado, falamos já num punhado de ocasiões naquela também fantasmática e estimulante reacção face a potencialidades de uma personagem ser desenhada por determinado auteur, prometendo algo muito feliz e surpreendente: um Bilal desenhando um Tintin numa perigosa intriga internacional, um Super-homem místico nas mãos de Moebius, muitas das pranchas de Cent pour Cent, ou o magistral Variations de Blutch... Portanto, o anúncio de uma versão de Blake & Mortimer pelo artista François Schuiten fazia adivinhar menos um seguimento do programa da editora do que um “crossover”, balizado por uma equação potente entre esses graus de nostalgia, uma expectável obsessão pela desconstrução da arquitectura, um qualquer grau de realismo mágico. Na verdade, em termos materiais, todos esses elementos estão presentes, mas com uma deselegância constrangedora.

O livro repesca muitos dos materiais do Mistério da Grande Pirâmide, sobretudo a amnésia causada sobre as duas personagens pelo Xeque Abdel Razek. Há múltiplos elementos que são um piscar de olhos a outras aventuras, claro está, mas o ponto de partida é o fecho da abóboda, por assim dizer, desse díptico clássico. Esse segredo será então revelado neste novo livro, que tem lugar décadas mais tarde, numa espécie de Europa cinzenta e burocrática da década de 1970, paralela à histórica, mas que se permite flexível em termos plásticos. Em muitos aspectos, é como se este álbum fosse uma fantasia de um Chernobyl “positivo”. Ancorado no realismo, a fantasia tem início quando se faz uma descoberta inusitada na própria estrutura interna do Palácio da Justiça de Bruxelas, verdadeiro bastião de uma arquitectura supra-humana, esmagadora em termos de escala, kafkiana em termos de reacção, e obsessão de Schuiten (revisitada noutros trabalhos). Repescando pormenores da sua construção, decoração e motivos e mesmo a biografia intelectual do seu arquitecto, Joseph Poelaert, descobrir-se-á que existe nas suas catacumbas uma pirâmide egípcia invertida, construída pelos próprios egípcios, séculos atrás, e mantido como segredo de uma sociedade oculta.

Infelizmente, estes mecanismos são algo banais e já empregues até à exaustão, tornando algo adolescente a sua organização. O problema não está apenas no uso de banalidades, é a sua coerência interna, jamais consolidada e apenas avançando por se revelar mais um segredo e outro, tornando a estrutura episódica e desconexa. Mais uma vez se repetem as ideias das linhas de Ley (não nomeadas como tal), da suposta fraternidade entre as pirâmides egípcias e as meso-ameríndias, independentemente dos períodos históricos, empregos sociais e papéis políticos, e estados tecnológicos, e da existência de energias misteriosas e o diabo a sete. Sem qualquer esforço, todavia, de uma criação sofisticada de razoabilidade, integração e fluxo temporal, consequência e desenvolvimento. Nada. As coisas são apresentadas como tal, e o leitor que as engula.


A partir dessas premissas, o livro divide-se em duas partes. Uma primeira lidando com o primeiro “desastre” energético que vai isolar Bruxelas do resto da Europa, transformando o Palácio numa espécie de farol, e uma segunda, anos mais tarde, quando essa esfera de “impotência” ameaça alastrar por toda a Europa, e Mortimer, sozinho, se arrisca a procurar no interior do Palácio o mistério e, dentro da medida da possibilidade, garantir uma solução para o resolver. Aqui, vem envolver-se a questão da utopia ecológica, imediatamente implicando a resolução igualmente da agressividade militar, dos desequilíbrios económicos e agrários, da emigração terceiro-mundista, da dependência tecnológica, do consumismo desenfreado (combatido por um álbum com várias versões de capas diferentes para coleccionadores) e, quem sabe, das desigualdades de género, sexuais e outras “questões fracturantes”. Só está ausente a maldita música que os miúdos ouvem hoje em dia e as modas sem-vergonha. Sempre, claro, mantendo a ideia de que é o sexagenário – que salta de paraquedas! - anglo-saxónico, representante da lógica racional pós-Iluminista, branco, civilizador, que une na perfeição a junção de todas as sapiências da cultura mundial e que literalmente tem a chave dos problemas na mão. Abdica-se de consequências verdadeiramente intelectuais, psicológicas e emotivas em torno de uma intriga linear, simplista e mecânica.

Schuiten não tenta, de forma alguma, imitar a linha clara de Jacobs. Nem tampouco, como outros autores, de “retraçar” vinhetas do mestre da ligne claire original. Se nas suas mãos a representação detalhada dos cenários ganha uma corporealidade ainda mais presente, e vincada de forma superior pelo uso das cores, gradientes, e perspectivas atmosféricas, infelizmente a figuração humana continua a ser particularmente tristonha, perra e inexpressiva. O abuso das tramas torna porém mais pesada a ambiência do trabalho. A opção de envelhecer as personagens – não uma estratégia nova, tentada antes por Convard e Juillard – poderá ser superficialmente interessante, mas acaba por simplesmente reforçar a ideia de nulidade das personagens. Blake é secundarizado a um ponto quase de inacção total, e Mortimer aparece como uma espécie de caricatura de si mesmo, piorando então o seu emprego enquanto “white saviour” e potencial objecto amoroso da personagem feminina, bem mais jovem que ele (uma fantasia recorrente na obra de Schuiten, na verdade – aliás, as fantasias que havíamos discutido a propósito de LaDouce estão aqui presentes, até porque se incluiu essa locomotiva como objecto de combate e resistência neste mesmo álbum). Mais, Blake é apagado por, possivelmente, poder estar aqui a representar o poderio militar – ele diz “seguir ordens” a dado momento – e não é “bem-pensante” nem “liberal” termos militares como personagens principais e significativos hoje em dia... (esta secundarização também não ocorre somente aqui: a série deveria antes chamar-se As aventuras de Mortimer e, vá, de quando em vez o Blake aparece).

A personalidade mais forte destes autores está assegurada quando não tentam fazer uma continuidade, insustentável, da série original nos nossos dias, mas antes uma apropriação autoral. Infelizmente, a matéria literária não é sofisticada e a parte da arte, se apresenta algumas imagens memoráveis ou algumas composições competentes, como é de esperar, não são de forma alguma o rasgo de génio que se esperaria deste conjunto de autores experientes.