Aparentemente, Fraga apresenta-nos uma
adaptação directa (ainda que não esteja indicada de quem é a
tradução/edição empregue). Não existem propriamente introduções
ou contextualizações desta peça, quer diegéticas quer textuais.
Pelas primeiras, entenderíamos a hipótese de criar um episódio
adicional que explicaria a razão pela qual as mulheres de Atenas
sentiriam a necessidade de tomar o poder político (que não tinham),
e maneira a tentar resolver as crises económicas, militares e
sociais do seu tempo. Pelas segundas, imaginaríamos uma
contextualização da própria peça no seu tempo, isto é, uma
representação dos concursos de teatro e esta peça sendo levada à
cena nas condições históricas, começando pelo facto de que não
haveria uma única mulher na trupe de actores nem na assistência. No
seu tempo, teríamos actores homens a passar-se por mulheres que se
passavam por homens... O autor pura e simplesmente apresenta-nos as
cenas propostas peça peça, directamente como a história, ganhando
ela uma pátina de “verdade histórica”.
Um dos aspectos mais curiosos estaria
na possibilidade de ler este texto hoje, à luz dos direitos
entretanto conquistados pelas mulheres, como um discurso positivo e
cada vez mais qualitativo e equalitário desses mesmos direitos e
condições. Mas é preciso ter e conta, da forma mais
contextualizada possível, que grande parte do humor está
precisamente no absurdo social proposto pela peça: mulheres a
imiscuirem-se no funcionamento governamental de Atenas! Inconcebível!
Esta peça, tal qual os casos de Lisístrata e As Mulheres
que celebram as Tesmofórias, são comédias em que Aristófanes
coloca as mulheres como protagonistas para pôr sob o olhar público
as fragilidades políticas da sua sociedade e grande parte do humor
está, logo à partida, serem mulheres a tomar tais decisões. E o
resultado é uma inversão carnavalesca, que tem repercussões na
organização do trabalho público e doméstico, nos modos económicos
da cidade (uma espécie de comunismo proposto), e até uma
redistribuição da sexualidade (todos têm direito à sua
quota-parte, até os feios, velhos e desfigurados). A patina de
“teatro grego da Antiguidade” poderá dar uma ideia de
elevadíssima cultura intelectual, mas não se enganem, estamos
perante uma patusca comédia na linha do “Carry On”.
Não há dúvida de que o “pai da
comédia” criou muito dos mecanismos mais elevados do teatro de
humor, como a sátira política, o demolir das figuras públicas no
poder, mas não dispensava piadas obscenas, escatológicas e até
trocadilhos jocosos. Isto para não falar da parte do “espectáculo”
das peças, que envolveriam danças, canções, e até adivinhas que
envolveriam o público de uma forma particularmente interactiva. Esta
dimensão mais popular é trazida para a linha da frente pelo autor
da adaptação, até mesmo pela sua figuração se estender num
registo caricatural, exagerado e que procura efeitos dramáticos e
ridículos nos rosto das personagens, por vezes mesmo em
“transformações mágicas” (rosto alterados para apenas uma
cena, simbólica), nas suas posições impossíveis, gestos e
enquadramentos. Isto não é uma encenação da Cornucópia, mas dos
Malucos do Riso.
Um dos grandes problemas em adaptar
textos dramáticos tem a ver com o facto de que a dinâmica teatral –
texto dito por actores/corpos num palco – não se presta às mais
fortes valências de meios visuais ou também visuais como a banda
desenhada. Se não se optarem por escolhas de cenografia, gestão de
espaços, planos, “desvios”, o resultado está numa cadência
regular e repetente de “talking heads”. Infelizmente, é o que
sucede neste texto de Nuno Fraga. Com a excepção de meia-dúzia de
vinhetas que mostram os espaços em que a acção tem lugar, a
esmagadora maioria das cenas concentra-se tão-somente nas cabeças
ou mesmo rostos das personagens, e bastas vezes sem qualquer objecto
contextualizador, mas somente aguadas coloridas para manter alguma
coerência lumínica. Porém, as opções cromáticas, com tons
pesados, escuros, mesmo nas cenas diurnas, não ajudam à
legibilidade elegante das páginas.
O que Zé Nuno Fraga consegue fazer é
devolver-nos a possibilidade de ler Aristófanes outra vez pela
primeira vez, e sublinhar a sua contínua importância, impacto e até
capacidade de diversão. A “devolução” do texto de Aristófanes
neste registo poderá dar a redescobrir o valor satírico e quase
bufo destas peças, tirando-lhe todo o “pó” suposto (mas
errado) da Antiguidade, afastado das nossas preocupações
contemporâneas. Em muitos sentidos, haveria – com as devidas
distâncias – que compreender qual o problema dos consensos moles
da política dos nossos dias que fazem resvalar os valores da
democracia e até a democratização da democracia. E o que A
Assembleia das Mulheres, apesar do seu regimento de valores não
ser compatível com os nossos, ainda nos tem a ensinar.
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