Perdoar-nos-ão os autores colocar num
mesmo texto a apreciação dupla dos seus últimos títulos, apesar
de tamanha disparidade. Queremos acreditar, ainda assim, que tal como
as respirações criativas, partindo do mesmo ponto, se podem depois
consubstanciar em ventos tão diferentes, que novamente esses
movimentos se possam vir a unir numa força comum, a da leitura
conjunta. (Mais)
Antes de mais, gostaríamos de
assinalar que Planície Pintada é assinado por Diniz Conefrey
e Maria João Worm, sem qualquer indicação da distribuição das
tarefas nem de grau de responsabilidade em cada página. E, em Floema
Dorsal, uma das peças, “Cigarra”, é também indicada
como sendo assinada por ambos em todos os elementos. Fazer
exercícios, portanto, de identificação do traço, técnica,
palavra ou estratégia, é não apenas inglório como algo
desrespeitoso dessa decisão. Incorreremos, ainda assim, na péssima
educação, ao puxarmos a atenção para alguns aspectos, como a de
que adivinhamos a abordagem da técnica de alto contraste, raiada,
texturada, de gravura – sobretudo xilogravura e linogravura – em
Planície, como sendo uma assinatura mais permanente de Worm, ao
passo que, em relação aos “temas” ou assuntos, nos parece
estamos mais próximos dos recursos recorrentes de Diniz Conefrey.
Sem querer reduzir de forma alguma a
prática de Conefrey a “tons” repetidos, estamos perante dois
livros que salientam sobremaneira duas das linhas mais fortes das
suas permanentes pesquisas e que podemos evocar, não sem estar a
exercer a típica violência da destrinça entre “forma” e
“conteúdo” - como se uma não existisse sem o outro, de uma
maneira implicada num modo. Compreendendo que se trata de um
espectro de interesses e intensidades, e não dicotomias exclusivas e
excludentes, ainda assim poderemos, sem grande dificuldade, indicar
que Planície Pintada está no seguimento do aturado trabalho
do autor em torno de temáticas ameríndias pré-colombianas (visto
em O livro dos dias, Nagual))« e que Floema Dorsal
sublinha sobretudo a busca por um cada vez mais apurado sentido
de criar banda desenhada abstracta (Os labirintos da água,
Meteorologias). Alerte-se,
sempre, que existem canais de passagem, sobretudo em Nagual,
nada displicentes. Em relação a Maria João Worm, todavia, há o
modo como a matéria verbal parece ser burilada, o abandono de
supostas regras de convivência de plasticidades diferentes, que
passam a habitar o mesmo espaço, e os interesses em criar formas
entre o orgânico e o padronizado, a imagem reconhecível e a
textura, e a permanente tensão entre o pictórico e o gráfico.
Ambos
os livros coligem relatos curtos, que ganham uma consistência no
interior de cada um dos seus volumes. Sempre numa musical oscilação
entre tema e variação. Planície
Pintada apresenta-nos
quatro relatos, todos eles em torno das culturas dos nativos
americanos, sobretudo dos territórios a norte, na fronteira –
conceito que não faria sentido, ou da mesma maneira, para estes
mesmos povos – com o Canadá (Lakota, Lushootseed, Iroqueses, entre
outros), repescando escritos e testemunhos da sua história.
Partilham todas as histórias uma estrutura genericamente clássica,
de composições narrativas e lineares, com a presença de texto,
sobretudo legendas, ainda que nenhum balão de fala, se bem que
muitas vezes na primeira pessoa e associado às acções que vemos
(sempre “no presente”, como qualquer imagem).
Apesar de poderem
ser vistos como “adaptações” de textos previamente estruturados
como tais, a própria escolha destes textos, os seus “géneros”,
e depois o seu agenciamento como no livro, é significativo em si
mesmo. Começamos com um texto, sub-dividido em curtos capítulos,
que traduzem um mito iroquês. Depois segue-se um relato de um sonho
por Alce Negro, figura proeminente do povo Lakota (antigamente
designados por “Sioux”), em que ele tem o que parece ser a sua
primeira experiência xamânica, viajando pelos domínios superiores
ao mundo humano. “A sabedoria” é um lindíssimo conto dentro de
um conto, em que um caçador, unindo-se à sua presa no acto de matar
e ser morto, recorda um episódio à escala humana, mas que espelha
precisamente a necessária empatia para a convivência no mundo entre
todos os entes vivos, e que papel a morte pode ter, activa mas
apartada. Finalmente, “Memória” [página aqui ao lado] põe em cena o famoso discurso,
ainda que controverso, dada a sua dúbia veracidade histórica –
que os autores discutem – de Seattle, ou Seathl, conhecidíssimo
chefe dos povos de língua Lushootseed.
O significado da
ordem destes textos, no livro, deve-se ao facto de que criam uma
espécie de arco descendente e melancólico dessas mesmas culturas.
Começamos com um texto glorioso, epopeico, da constituição da
cultura, atravessamos outro momento de génese de um trânsito por
entre mundos, expandindo a existência humana, depois inflectimos num
breve episódio do quotidiano algo triste, real, condoído mas ainda
esperançoso, e terminamos como a “carta” de um representante dos
nativos americanos aos poder central da jovem nação dos E.U.A., e
cujo conteúdo pode ser interpretado de muitas, muitas maneiras – e
tem-no sido – mas que sobretudo tinge tudo num tom elegíaco e
inevitável de que “todas as coisas sólidas se dissolvem no ar”...
A prestação da
imagem, porém, tenta recuperar a solidez da presença dessas mesmas
culturas. Em “Alce Negro Sonha”, por exemplo, os autores abrem um
espaço para composições visuais e materiais que “invadem” o
contrato de representação que leremos como realista, da vigília,
histórico, para as visões de Alce Negro através de efeitos
pictóricos que recordam os padrões do papel marmoreado [ver ao lado]. Essa
sequência faz lembrar por demais, independentemente das distâncias,
das estratégias de disrupção visual que Breccia rasga nas suas
adaptações de Lovecraft, e se não há aqui “horror”, há
seguramente “cósmico”. Depois, a sequência de “Memória”
mostra aspectos materiais – esculturas, arquitectura, máscaras,
trajes e instrumentos e danças, dos povos dessas regiões, se bem
que nos podem recordar a cultura Makah, tal como surge no acto final
de Dead Man, de Jim Jarmusch. Em ambos os casos, ou em todo o livro,
os desenhos “por escavação” demonstram em si mesmos o esforço
que é regressar a uma inscrição cultural que, ainda que
sobrevivendo como pode, persiste mais nas suas distorções do que na
sua plena identidade, tentada aqui e reconstituída por estes
autores.
Floema Dorsal,
cujo título enigmático esconde termos perfeitamente tangíveis e
até prosaicos, é uma colecção de banda desenhada abstracta, no
directo seguimento de Meteorologias.
Floema apresenta-nos
5, digamos, “peças”, unidas pela vontade de abstracizar, mas
lançando mão de muitas e diversas metodologias: presença ou não
de texto, preto-e-branco vs. cores, abordagens de desenho a
linha/tinta a texturizações de grande materialidade, manutenção
de um “estilo” mais ou menos coeso vs. a mais total das
heterogeneidades gráficas, exploração de metamorfoses internas às
formas tentadas ou irrupção da figuração, suavidade ou
anguloso/anfractuoso, orgânico e mineral, animal e humano. É a sua
leitura atenta que revelará os momentos de
oposição/diferenciação/complementariade e os de suave transição
e desdobramento. Ainda assim, há uma estrutura comum entre elas, já
que as composições de página seguem regras de alguma unidade
ortogonal, com ora pranchas de uma só vinheta, ou então duas ou
quatro em grelha regular, não havendo grandes desarranjos retóricos.
A pausa em cada uma destas peças
revelará os sentidos bem distintos que cada uma delas pretenderá
explorar. “Nas rajadas de um sono” [ver em cima] deve ser lido página a
página, compreendendo os movimentos de metamorfose das formas que
apresenta, num momento lentas e claras, noutras súbita mas ainda
assim lógica, mesmo que signifique a fusão ou quebra das estruturas
usuais da composição de página. Mantemo-nos aqui no domínio
sobretudo do mineral, mas a irrupção do vegetal é também
simbólico de outras existências, inclusive antropomórficas.
“Impermanência” [spread em baixo] tem algo de erótico, ainda que seja a peça
mais heterogénea de toda a colecção, atravessando registos
distintos de traços, cores e materialidade: mas é sobretudo através
das tessituras que cria, como as próprias texturas das colagens
iniciais, os veios debruados pelas formas dos “ramos” (?), a
presença de rostos humanos em diálogo longínquo-próximo, que se
vão revelando travessias dos planos visuais e formas que podem
perseguir linhas de interpretação sexuais. “Onde estão as
borboletas”, que deve ser lido enquanto afirmação, apresenta-nos
um percurso que parte e regressa a formas anfractuosas e minerais, se
bem que atravesse um figura humana, um canguru e árvores,
possivelmente querendo mostrar-nos uma perspecvtiva não-humana, ou
pós-humana, ou supra-humana (difícil escapar a todos este
antropocentrismo) que une precisamente todas estas categorias
existenciais (e criando assim um possível elo com alguns dos
assuntos ecofilosóficos explorados nas culturas visitadas em
Planície). “Cigarra”, criado com Maria João Worm, e
muito próximo da sua prática da colagem/sobreposição de papéis
texturados recortados, recupera a ideia do erótico, até de uma
maneira explícita, dada a presença de texto, que vai narrando a
proximidade e mútua implicação ou imitação das mais diversas
espécies vivas e a aventura entre dois corpos humanos,
aproximando-se nas palavras, deixando às imagens explorações de
círculos mais amplos da vida. “O lugar sem espera” também nos
apresenta uma história contada por palavras, quase banal, de um
quotidiano burguês-capitalista, mas estabelecendo no plano visual
uma série de paisagens talvez intepretáveis como figurativas, mais
especificamente o fundo do mar, habitado por corais, como se esses
invertebrados marinhos, de formas dúbias e moventes, pudessem ser
igualmente o fundo no qual os sonhos e pausas dos humanos “ocupados”
se pudessem alguma vez encontrar, houvesse vontade e capacidade.
Conefrey e Worm, seja através das explorações de como muitos dos povos nativos das Américas entendiam as alianças entre os humanos e o mundo de que nasciam (e não apenas “habitam” ou, muito menos, “usam”) seja através das junções heterogéneas de materialidades, estruturações e abordagens estilísticas tão distintas nas peças abstractas, vão ao encontro do que Deleuze entendia por “assemblagem”, no pleno sentido desse termo na sua filosofia. E, acima de tudo, aquela que é cumprida pela união do papel de ambos os criadores enquanto criadores, escritores, artistas, editores e, quem sabe, pessoas individuais na sua convivência (mas que não é já província do crítico). Como explica Deleuze a Parnet, a assemblagem “é uma multiplicidade que é feita de muitos termos heterogéneos e que cria ligações, relações entre eles através de eras, sexos, reinos – naturezas diferentes. Assim, a única unidade da assemblagem é a do co-funcionamento: é uma simbioso, uma “simpatia”. A importância não está nas filiações, mas antes nas alianças, nas ligas. Estas não são sucessões, linhas de descendência, mas antes contágios, epidemias, o vento.”
Já o repetimos
aqui várias vezes. Uma das questões mais vexantes de ver repetida é
um certo discurso desatento mas que se quer disfarçar de informado,
que busca pelas “potencialidades” da banda desenhada. Não é
preciso procurar. Basta ler aquelas já existentes que as cumprem,
respiram e sustentam.
Notas finais: as nossas desculpas pela falta de qualidade das fotografias dos livros; agradecimentos aos autores-editores, pela oferta de ambos os volumes.
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