São estes gestos editoriais que
garantem ainda alguma felicidade de uma verdadeira contribuição
para a diversidade de vozes e acessos à banda desenhada em Portugal.
Já o repetimos em várias ocasiões, e aqui mesmo neste espaço, que
atravessamos um momento relativamente estável e interessante de
editoras especializadas que vão alargando o leque de vozes. Mas a
meu ver, seria ainda mais feliz se editoras generalistas abrissem um
pequeno espaço à banda desenhada que fosse ao encontro dos
assuntos, abordagens e tratamentos estilísticos que lhes interessam
nos seus catálogos – por hipótese, o romance contemporâneo, a
ficção historiográfica, a reportagem política, a poesia, a
literatura para jovens ou para a infância, o diário de viagem, etc.
Não tem de ser necessariamente uma colecção especial (se bem que a
coerência ajudaria à consolidação de um corpus, o que a
Bertrand/Contraponto não conseguiu fazer, apenas a título de
exemplo), tem de ser coerente com um programa.
Independentemente das questões económicas, cruciais e basilares, há
também o esforço e o conhecimento e a sensibilidade. Ora, a Planeta
Tangerina, enquanto plataforma quase de auto-edição, ou
cooperativa, já havia com Finalmente, o Verão, das primas
Tamaki (recentemente re-publicado) feito uma aposta num projecto de
banda desenhada internacional que fazia falta na oferta em língua
portuguesa. Agora, com dois livros, um de autores portugueses e esta
tradução de uma autora francesa, arranja novamente um espaço
fulcral. (Mais)
Poderei estar enganado, mas Rosigny sur
Seine, o local onde se passa a acção desta novela, não sendo um
lugar real, é um reflexo o mais real possível dos variadíssimos
banlieus franceses, sobretudo de Paris. Todo um “mundo” se
coalesce nesses espaços dadas as tensões do que aparentemente se
entenderão como culturas diferentes, experiências económicas,
sociais, étnicas, religiosas, e, consequentemente, políticas.
Terreno de clivagens, por mais cliché a que isso soe. E essas
negociações têm levado a todo um género de textos, sobretudo
cinematográficos, podendo citar, sem grande fineza analítica, desde
o agora clássico La Haine, de Kassovitz, aos mais recentes
Les Misérables, de Ladj Ly, e Banlieusards, de Key
James e Leïla Sy, ou até mesmo aos videoclips dos The Blaze em
torno do álbum Territory, que deslocam, em parte, a atenção
para a nostalgia da diáspora argelina e uma forte atenção para com
a amizade masculina.
O que há em comum nesses textos
fílmicos apontados é precisamente uma certa concentração na ideia
do conflito entre forças antagónicas, externas, e perspectivas
masculinas. Assim, a acção é o centro nevrálgico da
construção da narrativa. E o que sucede se se deslocarem as
perspectivas no eixo dos sexos? A banda desenhada também trouxe à
baila as tensões domésticas que se vivem nesses espaços de
negociação dos subúrbios franceses, e que se passam igualmente
noutros locais, europeus, portugueses, de outros pontos do mundo,
cada qual com as suas especificidades culturais. Autores como Farid Boudjellal, Kamel Khélif, Yvan Alagbé, Riad Sattouf são alguns dos
criadores dessas histórias. Chloé Wary inscreve-se na linhas dessas
ficções ancoradas no realismo, talvez mais próxima de Boudjellal
pela sua atenção “novelesca” a histórias no rés-da-vida, do
banal quotidiano, na atenção maximal para o microscópio das vidas
vividas. Há poesia, como em Khélif, há humor, como em Sattouf, há
uma dimensão crítica sócio-política, como em Alagbé, mas há
sobretudo uma franqueza desarmante.
Realmente, há todo um retrato social
criado pela autora em A Época das Rosas. A representação
étnica e os próprios nomes das personagens espelha a diversidade de
origens da população dos grandes centros urbanos franceses. Não
apenas “gauleses”, mas pessoas de origens magrebinas, africanas,
italianas, árabes, etc. Esses traços identitários servem, todavia,
simplesmente para se diluírem nos elos da amizade, cooperação e
alianças da adolescência que os une. As escolhas de como passam os
tempos livres – a fumar narguilé sob uma passagem de nível, uma
festa com música a bombar em casa de um deles, a decoração dos
quartos, as roupas escolhidas, e, no original francês mas que a
tradução portuguesa consegue manter um aroma, o próprio calão –
também cria uma massa de referências que reforça essa ideia de
retrato. E até um breve passeio com a cadela, olhando para a varanda
do apartamento onde a protagonista costumava viver, quando o pai
ainda andava por ali,é bem mais revelador do que qualquer outro
tratamento. A autora quer, contudo, tecer outros caminhos e sentidos
emocionais a partir desses elementos.
O livro centra-se em Barbara, uma
protagonista adolescente que é ponta de lança numa pequena equipa
de futebol desse subúrbio representativo. Depois, os problemas são,
a um só tempo, encostados uns aos outros, criando um fragilíssimo
castelo de cartas, como imbricados uns nos outros, em que qualquer
movimento em falso num território tenha repercussões no outro. A
importância que na sua vida toma o seu papel no seio da equipa, e os
problemas na administração do clube, a relação com uma mãe
amargurada e algo inflexível com a sua falta de compreensão do
mundo da filha (uma prerrogativa dos pais?), um crescente caso
amoroso com o jovem Bilal, que é também “rival” na equipa
masculina do seu clube, as picardias com o treinador, já para não
falar de como a vida de todos os dias cansa, com as notas, os ténis
novos, as festas, isto e aquilo.
Barbara é apenas o eixo de uma
narrativa maior. Numa primeira instância, trata-se de um óptimo
romance de desporto, utilizando muitos dos elementos recorrentes
desse género, como a centralidade de um desafio importante, do modo
como um jogo tem como resultado algo mais do que os golos no
marcador, e como a dinâmica de equipa é uma lição humana que
extravasa o companheirismo desportivo. Depois a questão social já
abordada. O mais importante, porém, é aquilo que é sublinhado pela
sua integração nesta colecção da Planeta Tangerina, e que
a torna companheira de Finalmente, o Verão, e o mais recente
Desvio, de Ana Pessoa e Bernardo Carvalho, de que falaremos. É
um guia descomplexado para a vida do adolescente.
A Época das Rosas é um diário
dramático, mas não melodramático. É uma narrativa cheia de
desafios claros, mas não é um épico. É um conjunto de questões
sociais, mas não é um ensaio programático e muito menos
panfletário. E, mais importante, reduzi-lo a “temas femininos”
só faria sentido se excluíssemos o “feminino” da constituição
de toda a nossa sociedade. Independentemente do que disse acima sobre
perspectivas, masculinas e femininas ou outras, pois elas existem,
conformadas que são por expectativas, oportunidades, obstáculos,
modos de nutrir caminhos, e que são tema recorrente no livro, nada
disso diminui a capacidade que um texto, quanto eficaz, forte e belo
como este, tem de chegar ao âmago de todos os que forem capazes de
ler. E, seja como for, é mais importante a vivência adolescente –
essa tempestade entre a confusão da infância e a dúvida da idade
adulta – que Wary explora do que qualquer outra categorização
possível.
É incrível a capacidade que os
adolescentes têm em lidar com tudo o que se passa nas suas vidas. Em
vez de pensar nesta fase da vida como uma espécie de negociação
difícil em “abandonar” a infância e “compreender” a idade
adulta, veja-se como um momento tenso de conseguir fazer malabarismo
com demasiadas questões, entre certezas e dúvidas, planos e
desilusões, vontades e proibições, cuidados e desalinhos. Barbara
tem de enfrentar várias injustiças, todas elas embrulhadas umas nas
outras, por vezes com denominadores comuns, por outras vezes
misturando prioridades e até, como sucede tantas vezes, magoando
quem a procura ajudar.
Um livro franco, directo, genuíno na
sua recepção, tem a verve da adolescência, o seu melhor domínio.
A própria técnica do desenho e colorização, que recorre a canetas
de feltro e revela os efeitos das zonas de sobreposição, e que não
correspondem a um efeito de representação de dobras de tecidos,
diferenças de iluminação ou tez da pele, tem algo de
“adolescente”, “amador”, “imediato” que reforça toda a
cadência da narrativa. Se a composição é classicamente retórica,
e usualmente ortogonal, o uso de ângulos mais oblíquos nas divisões
das vinhetas é empregue ora para cenas mais dinâmicas – as cenas
das partidas – ora para momentos de maior tensão dramática e
emocional. Veja-se a página em que Barbara a e mãe entram em casa,
subindo pelas escadas (o elevador não funciona, outra vez). Uma
composição simples, criando duas vinhetas com uma forma associada à
estrutura do próprio edifício, mas em que a separação criada
entre as duas personagens é muito mais que meramente espacial.
Tudo isso continua no campo da clareza
diegética. Tudo isso para mostrar várias derrotas. E, depois, como
as vitórias que se atingem são muito mais duradouras que as do
desporto.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do volume.
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