Será inevitável que todos os autores de banda desenhada, ilustração, literatura, música, teatro, ou empadas de galinha, no momento em que se tornam pais e começam a enfrentar a necessidade de participarem na educação de uma criança quer para a cidadania quer para a liberdade da imaginação, sentem a responsabilidade de criarem algo nesse sentido? Haveria muitos exemplos a apontar, uns movidos por uma certa capacidade em encontrarem caminhos comuns entre um território e as suas disciplinas de trabalho, outros talvez até por um certo egoísmo e egotismo, julgando-se capazes de fazer algo melhor do que aqueles que se dedicam a essa mesma tarefa. E haverá projectos que, nutridos por um movimento ou outro, trazem um contributo indelével a esse campo, mas muitos mais em que há um claríssimo falhanço, alimentado por uma pífia compreensão do que é preciso fazer, ou pior, empurrado pela tal arrogância cega aos demais exemplos. (Mais)
André Carrilho é um autor que, acima de tudo, tem angariado a atenção pela sua inteligência gráfica. Não é apenas uma questão de domínio técnico – algo provado nos seus “retratos” (bem mais que “caricaturas”) - ou de beleza a partir do entorno do mundo (veja-se o seu Inércia ou os desenhos que faz en plein air, seja de paisagens naturais ou urbanas) – mas pela capacidade de transmitir uma ideia através das suas composições e personagens, ideias muitas vezes iluminadoras, surpreendentes, sarcásticas, fortes, e, tantas vezes, politicamente necessárias. Através de metáforas visuais que depois se tornam óbvias (não o eram, é Carrilho que nos faz aprender que assim passam a ser) ou metonímias que tornam claríssima a questão, são os conceitos que se tornam a sua arma forte, colocando-o num mesmo patamar que outros ilustradores intelectuais, como Daumier, Steinberg, Topor e poucos outros. Como Saul Steinberg, um dos maiores “artista dos artistas”, Carrilho é também um autor que preenche aquilo que o crítico Harold Rosenberg havia chamado de “um desenhador de reflexões filosóficas”.Não é surpreendente, portanto, que este livro ilustrado para a infância, ainda que tenha uma intriga central, uma protagonista com familiaridade suficiente para ser seguida como modelo, e a clareza e humor imperativos nestes projectos, o que fica é sobretudo a noção central que nos apresenta. A de uma ideia que se estende pela gestão que faz de cada episódio, ou parte, que toma o lugar dos spreads. Uma criança sem nome passa todo o tempo com o rosto enfiado no ecrã do telemóvel, mergulhada no incessante rio de apps e conteúdos que lhe são oferecidos, mas aos quais não temos acesso. Isto leva a que ela esteja distraída ao que se passa à sua volta que, se num primeiro momento parecem ilustrações de ideias espatafúrdias e de géneros clássicos de aventuras que mereceriam sub-títulos - “no mar”, “no circo”, “no espaço”, “com os piratas”, etc. - , descobrimos depois que são com efeito factos palpáveis e acessíveis, e que se tornam finalmente abertos à menina.Não deixa de haver aqui um certo moralismo, expectável, que coloca a tecnologia de um lado, como algo que isola, aliena, e afasta de uma suposta “verdadeira” experiência e, por outro, essa interacção directa com os objectos do mundo. Essa forma maniqueísta é algo simplista, mas funcionará decerto com uma leitura pedagógica, senão didática, potencial, do livro. Uma alternativa atenta aos modos como somos seres sociais por seremos tecnológicos poderia ter levado a um caminho diferente, talvez. Mas entende-se a urgência nesta chamada de atenção. Os textos, apresentados em pequenas estrofes com esquemas de rimas diversos, tenta criar um ritmo contínuo por entre essas cenas, e consegue-o. Mas a grande força está, naturalmente, nas imagens.
Mais do que desenhado, o livro é pintado com aguarelas e outros instrumentos riscadores, e muito provavelmente montagens e edição digital, que tornam as personagens mais dinâmicas e apelativas, e, precisamente por essas matérias promissoramente friáveis, passíveis de se virem a misturar, fundir, encontrar-se de uma forma profunda e íntima, que é o que está prometido. Há momentos em que o autor sublinha os contrastes cromáticos para fazer efeitos espectaculares (como é o caso do episódio “espacial”), noutros procura uma verificação das continuidades/afinidades entre os elementos (no “circo”), e ainda outros onde as aguadas coloridas torna os animais (o urso, os golfinhos, o magnífico spread dos cães perseguindo a protagonista, deixando o branco da página agira como o espaço a ser ocupado, parte importante da narrativa) confundíveis ou parte do cenário do qual partem.
A composição de todo o livro é uma lição, corroborada por esta dança de cores que é de uma elegância magistral, quer nos momentos de maior contraste quer nas páginas de tons sobre tom. Nesse frenesim está a verdadeira aventura, afinal, que todos os pequenos e grandes leitores terão atravessado com este livro nas mãos.Nota final: agradecimentos à editora, e ao autor, pela oferta do volume.
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