22 de abril de 2006

Manifesto (revisto) do “Romance Gráfico”, de Eddie Campbell.


Muito diferentemente do que se tem apresentado neste espaço, tenho o grato prazer de vos ofertar a tradução portuguesa do "Graphic Novel Manifesto", de Eddie Campbell, de 2004. Reservando o espaço do post para o texto, procurem-se nos comentários algumas considerações e, espero, uma discussão continuada sobre os princípios aqui indicados. Boa leitura.

Há tanta discordância – entre nós – e mal-entendidos – no grande público – em torno do “romance gráfico”, que já é tempo de assentarmos uns quantos princípios.
1. “Romance gráfico” é um termo desagradável, mas utilizá-lo-emos seja como for, para compreendermos que gráfico não tem nada a ver com design gráfico e que romance não tem nada a ver com os romances (tal como “Impressionismo” não é um termo verdadeiramente aplicável pois foi utilizado em primeiro lugar como um insulto, e depois adoptado a modo de provocação).
2. Como não nos estamos a referir de maneira alguma ao tradicional romance literário, não defendemos que o romance gráfico deva ter as mesmas dimensões nem o mesmo peso físico. Assim, termos suplementares como “novela” ou “conto”, etc., não serão aqui empregues, e só servem para confundir os públicos em relação ao nosso fito (ver abaixo), levando-os a pensar que é nossa intenção criar uma versão ilustrada de um determinado nível de literatura, quando na verdade temos bem melhor para fazer, a saber, estamos a criar uma arte completamente nova que não será limitada pelas regras arbitrárias de uma outra velha arte.
3. O “Romance gráfico” representa mais um movimento do que uma forma. Por isso podemos falar de “antecedentes” do romance gráfico, como os livros de xilogravuras de Lynd Ward. Porém, não nos interessa utilizar o termo retrospectivamente.
4. Apesar do romancista gráfico considerar os seus vários antecedentes génios e profetas, sem o trabalho dos quais não poderia ter criado o seu próprio trabalho, não deseja colocar-se permanentemente à sombra do Rake’s Progress de William Hogarth sempre que ganha algum grama de publicidade, quer para si quer para a sua arte em geral.
5. Uma vez que o termo se refere a um movimento, a um evento contínuo, mais do que a uma forma, não há nada a ganhar com uma sua definição ou “medição”. O conceito tem cerca de trinta anos, apesar de tanto este como o nome terem sido utilizados casualmente desde uns dez anos antes. Uma vez que se encontra ainda em crescimento, é bem possível que se tenha alterado totalmente por este mesmo período do ano que vem.
6. O fito do romancista gráfico é pegar na forma da revista de banda desenhada [comic book], que agora apenas nos envergonha, e elevá-la a um nível mais ambicioso e mais significativo. Isto implica normalmente aumentar-lhe o tamanho, mas devemos acautelar-nos para não entrar em disputas sobre quais são os tamanhos aceitáveis. Se um qualquer artista apresentar uma colecção de pequenos contos como o seu novo romance gráfico (tal qual Will Eisner fez com A contract with God, por exemplo), não devemos entrar em picuínhices. Devemos apenas examinar se esse romance gráfico é uma boa ou uma má série de histórias. Se o artista ou a artista utilizar personagens que apareceram noutro sítio, como a presença de Jimmy Corrigan (Chris Ware) em títulos que não o principal, ou as de Gilbert Hernandez, etc., ou até mesmo outras personagens que não desejamos que façam parte da nossa “sociedade secreta”, não os desconsideraremos por essa simples razão. Se o seu livro já não se parecer de modo algum com banda desenhada, também não entraremos em picardias. Basta que nos perguntemos se esse trabalho aumenta ou não a totalidade do conhecimento humano.
7. O termo romance gráfico não será empregue como indicativo de um formato comercial (tal como os termos “brochado” e “cartonado”[“trade paperback”, “hardcover”, “prestige format”]). Poderá tratar-se de um manuscrito inédito ou apresentado em episódios ou partes. O mais importante é o intuito, mesmo que este surja após a publicação original.
8. Os temas dos romancistas gráficos são toda a existência, inclusive as suas próprias vidas. Os artistas desprezam os “géneros” e todos os seus clichés horrorosos, apesar de conservarem uma perspectiva alargada. Ressentem particularmente a noção, ainda prevalecente em muitos sítios, e não sem razão, de que a banda desenhada é um subgénero da ficção científica ou da fantasia heróica.
9. Os romancistas gráficos jamais pensariam em empregar o termo romance gráfico quando se encontram entre os seus pares. Referir-se-iam mais normalmente ao seu “último livro” ou o seu “trabalho em curso”, ou “a mesma treta de sempre”, ou até mesmo “banda desenhada”, etc. O termo deve ser empregue como uma insígnia ou uma bandeira velha que se vai buscar ao ouvir o apelo de batalha, ou quando se o tartamudeia ao perguntarmos pela localização de uma certa secção de uma livraria que não conhecemos. Os editores poderão utilizá-lo as vezes que assim entenderem, até que signifique ainda menos do que o nada que já significa.
Mais, os romancistas gráficos têm bem a noção de que a próxima geração de artistas de banda desenhada escolherão formas o mais pequenas possível e que farão pouco da sua arrogância.
10. Os romancistas gráficos reservam o seu direito a retratar-se de todas as alíneas anteriores, se isso os ajudar a vender mais.
Nota: este texto foi traduzido por Pedro Moura e revisto por Domingos Isabelinho. Podem utilizar esta tradução à vontade, copipastá-la, reapresentá-la, em regime de copyleft, mas agradecia que indicassem quem fez a tradução.

2 comentários:

Pedro Moura disse...

COMENTÁRIOS
Há muitas formas de fazer história, crítica, ensaística sobre a banda desenhada. É uma pena que uma grande parte do público pense que apenas Scott McCloud é que fez um livro de banda desenhada sobre banda desenhada. Mas, além de falso, nem sequer as ideias de McCloud são as mais consensuais ou mais surpreendentes; bem pelo contrário, é mais conservador que outra coisa. Eddie Campbell é autor de um dos mais bonitos livros jamais feitos sobre banda desenhada em banda desenhada: Alec. How to be an Artist (Eddie Campbell Comics 2001). Pouco veladamente autobiográfico, e fazendo convergir todo o seu historial enquanto autor, pessoa, e autor novamente, é um livro não só pejado de conselhos, de humor, de avisos à navegação, de um pensamento-em-acção a que poucos se dedicam, como ainda um manancial de informação sobre como é que se pode estabelecer uma possível rede de ligações e de aprendizagem no seio da banda desenhada (mas que, como qualquer outro discurso e prática artística, não pode viver somente enclausurado em si mesmo, ou morrerá de asfixia). Mais, essa rede, que é a da memória, é fulcral à sobrevivência, desenvolvimento e pujança da arte. “A imortalidade não é para sempre. ‘Se os grandes já foram esquecidos, que hipóteses teremos então nós?’” (Alec. Pg. 99). Este manifesto é uma outra forma.
1. Este primeiro parágrafo, associado ao termo central do manifesto, aponta também um problema linguístico entre os anglófonos e os herdeiros, como nós em Portugal, das nomenclaturas francófonas. É quase um problema de nominalismo, em que “banda desenhada”, “livros aos quadradinhos”, “romance gráfico”, etc., fazem parte da mesma problemática... De facto, a esmagadora maioria das “graphic novels” não apresentam um trabalho elaborado em termos gráficos, mas aproximações relativamente simples de desenhos – o próprio Campbell, Chester Brown, Marjane Satrapi -, nem se podem chamar “romances” a partir do congénere literário, pelo seu número de personagens, estratificação de tempos, vozes e modos narrativos, etc. – salvo excepções, mas que excepções? Como diria Ockham, as “graphic novels” são como os universais, com existência somente na alma [anima, ou mente], e não em objectos concretos?
2. Este é um aspecto importante, de que já Rodolphe Töpffer falava no seu Ensaio de Fisiognomonia (o primeiro ensaio sobre banda desenhada, de 1849), e que muitos outros teóricos, estetas, filósofos e verdadeiros e livres-pensadores pugnam ainda hoje: as regras de uma arte só são por ela mesma criadas, para simplesmente serem colocadas em causa logo a seguir no passo seguinte.
3. Esta expressão faz recordar a preposição 4.112 do Tratactus de Wittgenstein: “A Filosofia não é uma doutrina, é uma actividade”. O que procura sublinhar toda a singularidade do pensamento e de cada acto e, assim, não estar com preocupações de erguer sistemas ou teorias, mas antes deixar vir as obras tal qual elas se nos apresentam. No entanto, algo é estranho nesta acepção: se não interessa propriamente o termo (um nominalismo, um mal menor, uma necessidade de comunicação, que pode levar a mal-entendidos e deve ser explicitada a cada emprego), porque não o poderemos empregar em relação a trabalhos anteriores? Mais, sofrendo a banda desenhada, enquanto arte, de uma gravíssima falta de memória (de um mais amplo e mantido discurso crítico, autotélico, de uma contínua implicação, etc.), seria bem-vinda essa acção retrospectiva, de um ponto de vista teórico, mas sem que isso pudesse admitir dogmatismos ou selvajarias culturais ou antropológicas (ex.: “A tapeçaria de Bayeux é a mais importante graphic novel da França do séc. XI).
4. & 5. O mesmo... É preciso manter viva uma consciência da história desta arte. Pois é precisamente através desse conhecimento que se vai, aos poucos, modularmente, com variações necessárias, estabelecer linhas de desenvolvimento e pontos de contacto concretos entre os artistas: a associação de um nome a outro, de uma obra a outra, é necessária, mas sem com isso ser obrigatório explicar a sua origem, a sua história, muito menos uma sua (impossível) “definição”. The Cage, Watchmen, L'Ascension du Haut Mal, Jimbo in Purgatory, por exemplo, não têm nada a ver uns com os outros, mas poderão, eventualmente, ser abrigados sob esse termo. Já a colecção dos comic-books do Batman nos anos 50 cai fora desse âmbito criativo e “ambicioso” (V. 6).
6. A última frase é fulcral. Mas Campbell não está preocupado, pois sabe-o ser impossível, em encontrar “critérios de avaliação”. As obras falam por si mesmas, argumentam com as suas forças próprias. T.N.T. en Amérique, de Jochen Gerner, pode estar num limiar estranho, mas não deixa por isso de nos fazer repensar a sua relação com as bandas desenhadas, com as artes visuais, com os gestos experimentais, com a sua história e linguagem. Enriquece. Mas o Wolverine/Hulk, de Sam Kieth, por mais que se goste da cinética e dos desenhos, não traz nada de novo a esta arte.
7. Não entendo muito bem o que será este “intuito”. O Inferno é que está cheio de “boas intenções”. São mais interessantes os trabalhos concretos, apresentados (mesmo que não completos: Big Numbers, de Moore et al., continuam a ser uma série memorável). Mas, sim, formatos, tamanhos, tudo isso é inconsequente em termos da aplicabilidade de uma visão estética, o que importa é a força do gesto real.
8. Esta frase pode surgir de repente muito judiciosa, e até um apriorismo perigoso. Afinal, Watchmen é sobre super-heróis, mas é magistralmente construído, Arzach é de uma estranha variação da high-fantasy, mas ainda hoje uma série de trabalhos observáveis nas suas consequências; por outro lado, Si J’ai Bonne Mémoire de Alexis Robin é sobre as relações humanas, a memória, o amor... não se pode dizer ser de “género”, mas é pejado de “clichés horrorosos”... É por isso que o problema dos géneros é mais uma via de mal-entendidos que qualquer outra coisa.
9 & 10. Não sem humor, mas é uma excelente atitude a de nos – isto é, nós, vivos neste presente – preocuparmos mais com uma busca contínua e honesta por aquilo que de facto desejamos expressar e os modos como as desejamos expressar, do que em “modas”, “vendas”, “fama” ou “truques fáceis”.

Anónimo disse...

Quando falas que há muitas formas de abordar a BD, concordo, mas concordo ainda mais quando, dizes, a propósito de Töpffer, que as regras de uma arte “só devem por ela mesma criadas”. Nesse aspecto, acho as teses de Töpffer muito mais actuais, do que as daqueles que querem ver a BD apenas como um aglomerado de outras artes e como tal depende dos instrumentos críticos dessas mesmas (caso de McCloud). Assim, nessa medida, na literatura, um autor como Seth, poderia ser comparado a John Updike ou J. D. Salinger ou Alex Barbier, pictoricamente a Bacon. E no entanto, em ambos os casos, há mais qualquer coisa que os diferencia: A começar, há textos junto as imagens, mas há também entidades criativas que sobressaem: Seth tem coisas que Updike não tem, e vice-versa.
Acho que nesse sentido, a BD tem de se "construir" com o que vem das margens (não necessariamente) para desse modo, chegar e fixar o seu próprio centro, sem medo de assumir como arte. Quem a ache menor, que leia. Que se informe.
Isto para chegar à conclusão que "Graphic Novel" é um termo tão falacioso quanto era o termo "livros aos quadradinhos" (como chamar "quadradinhos" a Gus Bofa, a Feininger, a “He Done her Wrong”? ou contrariamente, apelidar de “novela gráfica”, “Savage Dragon”?), mas continua a ser, e continuará, o termo que precisa para se caucionar junto das outras artes; e pouco importa aqui que seja a 7ª, 8º, ou 9º arte: é um meio único, de possibilidades únicas, aberta ainda a tantas linguagens quanto as que possamos imaginar.

Nuno F.