2 de maio de 2006

Cuentos de la Estrella Legumbre. Javier Olivares (Media Vaca)


Parto de um dos contos desta antologia. Traduzo o texto livremente: “Acabado de chegar a este mundo, Nubless Nilssen, húmido e amniótico, como todos, resvalou dos braços da enfermeira a 6 de Março de 1939. Nubless escapou da queda graças ao cordão umbilical, que ainda não tinha sido cortado, e que o susteve com um suave balanço a uns escassos centímetros do solo. Alguns quiserem ver nele o percursor do bungee jumping. Em 1968, Nubless teve um acidente ridículo que lhe cerceou o pé. A meio da operação, Nubless despertou da anestesia e viu, a um palmo do rosto, o seu próprio pé cosido ao ventre pelos médicos, para que se mantivesse o fluxo sanguíneo no membro amputado. Isto foi o suficiente para proclamá-lo ‘contorcionista do ano’. Nubless morreu numa Quinta-feira de 1988. Enterrado num cemitério contíguo a um rio problemático, uma cheia inesperada inundou o sagrado recinto, levando o ataúde de Nubless num imprevisto funeral fluvial até ao mar. Depois, graças às correntes, deu a volta ao mundo. Isto fê-lo recipiente da Grande Cruz Naval, a título póstumo, assim como fonte de inspiração da famosa ópera ‘O Navegador Defunto’. Ah, eis aqui a cruel burla do devir humano. Foi célebre sem o querer! Por que é que isso não se passa comigo, que também não ponho empenho algum?”
Esta história parece-me ser uma imensa lição de Javier Olivares a todos os seus colegas artistas que iniciem ou prossigam uma carreira de criação. Aprendi há pouco tempo, de uma maneira sucinta e clara, que as dicotomias são sempre falsas, e que só há dois tipos de pessoas: as que fazem dicotomias e as que não fazem. Uma dessas dicotomias é a que se estabelece entre o “génio” e o “artista”, o que Camões explicita na sua famosa fórmula “engenho e arte”. A primeira faz parte da natureza, é subcutânea, está para além ou fora da razão, ultrapassa a pessoa. São raros os génios, não obstante o abuso que da palavra se faz. A arte (“técnica”, segundo a etimologia) aprende-se, insiste-se, persevera-se nela, é fruto de muito trabalho e dedicação, de uma atitude aturada, sensível, alerta.
Estes “contos” ocupam um mesmo dispositivo formal: uma página/prancha, ao princípio com umas poucas vinhetas flutuantes, para mais tarde se consolidar ma estrutura mais livre, com um único ou vários desenhos, ora sequenciais ora não, explorando os eixos espaciais e a sua consonância com a acção narrativa de várias maneiras. Um texto usualmente atribuível a um narrador externo, com uma linguagem buscando algum nível de “estranheza”, para contar pequenas histórias absurdas, por vezes ilógicas, mas que mais não são do que um retrato da incongruência que perfaz a condição humana: apaixonamo-nos por quem não devemos, odiamos fantasmas, temos medos de nadas, irritamo-nos com pouco, desperdiçamos palavras cruéis por razões ocas. A esmagadora maioria das histórias são escritas e desenhadas por Olivares, cuja carreira é sobretudo estabelecida no mercado da ilustração (infantil e editorial), ainda que se dedique à banda desenhada também, como aqui, mas há casos onde o desenho é de outro artista (Max é o mais famoso, creio) ou a história é de outra pessoa (Mauro Entrialgo é exemplo). São 77 “contos da estrela leguminosa”, publicadas ao longo de 14 anos (1990-2004), em várias publicações (está tudo isto indicado no fim do volume) e agora coleccionados neste belo objecto, como sempre o são da Media Vaca, filha de Vicente Ferrer e Begoña Lobo Abascal. Algum do trabalho deste artista esteve exposto no Festival de Beja deste ano 2006), mas o próprio não pôde estar presente.
Um dos pontos de interesse destes “contos” é o facto de estabelecer-se como “série”, num seu sentido derivado das artes visuais. Isto é, a força da obra ganha-se ao longo do tempo e com a presença de vários exemplos que começam a construir um “modelo médio”, alterando-se cada história pelas outras, num exercício de vaivém da percepção e do nosso juízo de gosto. Mais do que pelos exemplos individuais, é a série toda que nos surge como significativa, se bem que alguns sejam de uma excelência gráfica notável (29, 31, 33) e outros de uma profundíssima agudez, parábolas que nos servem a todos (5, 44, 49, 59, 60, 68).
A personagem que se queixa da glória de Nubless não tem razão, já que não participa do génio, nem tem nenhuma estrela que lhe brilhe particularmente (mesmo que leguminosa). Javier Olivares, pelo menos neste livro, mostra-nos uma das possibilidades que o “esforço” providencia, que é a de se aproximar senão de uma celebridade, pelo menos de um sucesso que apenas a si lhe pertence.

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