22 de abril de 2007

Labyrinthe 25. La Bande Dessinée. Ce qu'elle dit, ce qu'elle montre (Maison des Sciences de l'Homme)

Uma revista interdisciplinar francesa dedicada a abordagens filosóficas de vários temas, a Labyrinthe, dedica o seu último número (25) à banda desenhada. Tal como o último título de Groensteen, é mais um título sobre a banda desenhada que nos poderá ajudar a aportar não propriamente a uma metodologia, mas através de uma ou várias delas, ao objecto de estudo que queremos abordar, continuamente.
O artigo mais importante será obviamente o de abertura, que explana longamente sobre as várias espécies de discurso construídos em torno ou pela banda desenhada. Este é já um certo hábito de várias obras, que se desejam fonte de reconsideração, de um profícuo acto de repesar e repensar o seu objecto. Antes de soerguer o seu próprio propósito, apresentam uma breve súmula do que já foi feito (e senão enquanto diatribe, fazem-no pelo menos sempre com laivos de um “até agora, foi-se incompleto”). Que esta nova abordagem vem, obviamente, completar. Entenda-se a manobra de retórica básica: isto foi feito, isto também, mas tudo apenas levou até aqui; agora, connosco, vamos mais longe. Nada de novo, nada de grave.
Mas há problemas de caminho. O primeiro problema, a meu ver, é que não obstante a constante e bem situada citação dos trabalhos feitos, a visão de conjunto é algo enviesada e pouco estruturada, criando-se assim uma ideia de que de facto houve uma meia dúzia de pessoas que escreveram algumas coisas sobre banda desenhada, mas quase que ao acaso, geração espontânea, espanto. É verdade que citam Thierry Groensteen, Benoît Peeters, Harry Morgan, a Critix, a Éprouvette, e de raspão Jan Baetens, mas não lhes acordam a importância que me parece lhes é devida, mesmo que se julgue serem discursos sobre os quais se avançou (graças à sua existência primeira, como deveria ser manifesto). Os discursos em torno da banda desenhada, e sobretudo aqueles que querem de facto construir uma visão mais englobante – já que global é difícil ou impossível -, navegam pelas mais díspares águas, atravessando disciplinas, umas mais adentrada outras mais cercemente, rebatendo fronteiras e divisões geográficas, cronológicas, estéticas, de género, de escopo até. É uma espécie de fraqueza, pois revela que não tendo cristalizado ainda determinados sectores do seu saber não pode ser um saber – uma definição dicionarística, um ponto consensual de origem, um cânone universal, uma fronteira disciplinar, etc. Mas nessa mesma contagem de desaires, pulsa a sua máxima força: não é cristalizável. É redefinida, sempre.
Atenção. Estes autores do artigo – Laurent Dubreuil e Renaud Pasquier, assinando “Dusquier e Pabreuil” como se num tolo exercício de mimar as mais óbvias confusões autorais da banda desenhada - não se demonstram defensores de um qualquer tipo de cristalização, de fechamento. Bem pelo contrário, querem balançar precisamente entre os dois pólos discursivos que apresentam no título: “dos putos reguilas aos críticos”. O que me parece é que, tal como a primeira frase de David Carrier em The Aesthetics of Comics, se faz demasiado rapidamente tábua rasa dos esforços anteriores para se apresentar a salvação da pátria. Fica-me uma sensação final de que haveria que estruturar de forma mais clara o edifício sólido que os autores anteriormente citados (e outros) elevaram e a partir dos quais poderemos partir para outras paragens. Mais ou menos felizes, é essa a responsabilidade dos novos pensadores. Essa sensação de incompletude confirma-se por exemplo na insistência do emprego da ridícula expressão “9ª arte” entre aspas, como aqui, mas sem a desmontar directamente.
Exploremos mais o artigo. Entenda-se que os putos reguilas (voyou, em francês) do título são os fãs, os amadores da bd, os coleccionadores completistas e plastificadores, os nerds, os bedéfilos, que multiplicam as discussões sobre uniformes, o fetiche das capas, os selos das suas personagens favoritas, que cultivam a capacidade “surreal” ou “de sonho e fantasia” da banda desenhada, e que a última coisa que desejam é que os obriguem a pensar sobre este seu inocente (?) prazer. Há depois outros graus, que passam pelo sábio: o historiador (angariador de dados e arquivista, melhor dizendo, o erudito do ajuntamento de informação) ou o semio- ou anti-semioteórico, que “faz fogo de toda a lenha, a questão do [juízo de] valor não sendo pertinente sobre o [seu] olhar científico”; por outras palavras, aqueles que mais rapidamente querem provar a sua capacidade discursiva ou teoria ou perspectiva, através de toda a banda desenhada, qual cilindro imparável. E finalmente, o crítico. Este é “o único a olhar no rosto da banda desenhada”, aquele que “torna evidente a existência de obra através de uma confrontação directa”. Concordo com este ponto, pois creio que a razão verdadeira se instaura não por fora – a partir do pontificado da autoridade (pois o discurso crítico é também um arrogar-se de uma capacidade ulterior sobre a obra) e através da imposição de um saber disciplinar ou de uma aferição de conhecimentos – mas por dentro – o que implica, em primeiríssimo lugar, uma leitura íntima da obra (não um conhecimento íntimo de outras obras ou do autor em pessoa, por exemplo), e ainda um estar-se ou ser-se alerta à especificidade em questão.
Aqui surge o problema seguinte. Os autores deste ensaio chegam a dizer que “o próprio estatuto da ‘especificidade’ é, com efeito, raras vezes objecto de discussão entre os investigadores”. Mas logo a seguir explicitam que esta “especificidade” não pode participar da mesma natureza da literariedade que os teóricos literários “procuram identificar” no seu objecto de estudo. A razão, segundo ainda os autores, deve-se ao facto dos investigadores da banda desenhada se centrarem sobretudo nela enquanto um medium, ao invés de uma arte, como os da literatura. Will Eisner e Scott McCloud são apontados, por exemplo, como dois autores que se concentram sobretudo num saber relativo à arte da banda desenhada mas no sentido etimológico da “arte”, ligando-a à teknhé grega, “técnica”. A “arte” neste seu sentido mais contemporâneo versa antes a estruturação (agencement em francês), um equilíbrio entre toda uma série de elementos, uma disposição desses elementos que levará a efeitos particulares, os efeitos particulares, dessa arte. No fundo, é aquilo que repetidamente designo por modo, síntese por cima da errónea divisão – salvo momentos de análise específicos – entre a “forma” e o “conteúdo”. Só que estes autores dizem que é o crítico quem opera um “gesto cirúrgico” crucial, o “golpe de bisturi que dissocie a arte e o medium”. O trabalho do crítico, portanto, para fechar o círculo, é confrontar directamente a obra para permitir essa dissociação, com o instrumento de um “pensamento que circula através dos saberes, que o informa e os desloca, figurando a obra no ponto em que ela escapa aos saberes”. O facto de não se fechar numa só disciplina, mas livremente e filosoficamente (no sentido original da palavra) as experimentar faz todo o sentido, encerra em si todos os sentidos. Mas não entendo. Como é que o crítico distingue o que é arte ou não no interior do medium? Não me parece que isso seja tornado claro neste texto. Voltamos ao cerne do problema, que penso ser uma mistura entre uma crença essencialista e ainda uma arrogância adâmica, em que o crítico – de acordo com esta ideia – ganha contornos de uma autoria máxima, de indicador hirto e declamando “ecce arte”.
Já que essa discussão não teve lugar no nosso campo, aproveitemos umas considerações generalíssimas, um fraco esquisso por outro campo. Se voltarmos à noção de literariedade, portanto, talvez possamos ser informados de alguma maneira para podermos com mais pujança retornarmos ao nosso campo. Em primeiro lugar, essa noção nasce de uma comparação ou contrastação com textos de outra natureza: de ordem informativa, ou publicitária, ou científica, etc. Terá a ver com um aspecto funcional. Não se fica, todavia, por aí: é preciso mergulhar no uso, ou melhor no modo em como a linguagem é usada. Aí entramos no que no formalismo russo (por Shklovsky) se chamaria de “estranhamento”. Mas a cada passo dado em direcção à captura dessa noção, ao sermos confrontados com textos específicos, obras supreendentes, desvios e rupturas e rasgares totais, o caso, como soe dizer-se, muda de figura... Que dizer dos textos de Deleuze? É somente filosofia? Ou uma criação metafórica, pela metáfora, da filosofia, ou pela filosofia, de criar metáforas? Ao lermos Heródoto, estaremos somente a beber de um texto histórico, ou procuramos aí um certo grau de beleza criativa da linguagem? Ao ler Tomai isto, é o meu porco de Alberto Pimenta, como é possível que me esqueça da apropriação que faz de textos não-literários, de frases banalíssimas e repetidas à exaustão por qualquer televisor ou revista de sala de espera? Seremos assim tão surpreendidos se descobrirmos algum grau de literariedade fora da literatura? As pessoas dizem “fio de azeite”... Haverá um infalível literametro para medir o grau de literariedade dos textos com que nos confrontamos? Esse conhecimento, para além de ser imediato, é-o por filtros sociais e históricos. Não haverá nenhum acto adâmico em curso que altera a natureza de um objecto. Mesmo se uma autoridade da narratologia como Carlos Reis dissesse que a lista telefónica da região de Viseu de 1988/89 era um magnífico romance de costumes, mais ninguém concordaria, ou pelo menos exigiriam uma explicação que atravessasse as regras do campo literário. Pelo contrário, pegar num livro como O Escritor de Ana Hatherly e dizer “isto só são gatafunhos” será uma ignorância que nega a inscrição dessa mesma publicação em todo o seu contexto sócio-cultural e histórico, e como um dos mais maravilhosos expoentes da poesia concreta portuguesa (ou até como um dos mais vanguardas livros ilustrados, sequência de imagens!, feito em Portugal)... a menos que apresentasse uma explicação que atravessasse as regras do campo histórico-literário. Há sempre um perigo inerente a estes exemplos ad hoc. Abandonemo-los e escolhamos algo mais consolidado. Até um determinado período, o uso que se deu a composições escritas como O Trabalho e os Dias de Hesíodo ou as Geórgicas de Virgílio levaria a que se entendessem estes dois textos como tratados pragmáticos, e não como fazendo parte do corpus da Literatura. Hoje são merecedoras da mesma atenção e esforços de tradução de que outros poemas tout court. Usualmente, há uma maior incidência no fenómeno da inclusão do que da exclusão (não valendo o simples esquecimento de uma determinada obra), e parecerá que encontrar um exemplo de algo que tenha sido já considerado literatura e posteriormente o tenha deixado ser é mais difícil. Mas se tomarmos o Cântico dos Cânticos como exemplo, veremos um texto que num momento da História foi “ilibado” da sua qualidade estética para somente passar a ser encarado de uma perspectiva analógica e metafórica. Podemos ser levados a pensar que algo poderá pertencer à literatura, isto é, possui “literariedade” se compartilhar esses elementos com outros textos anteriores.
O facto de dada obra particular se inscrever formalmente num território reconhecido também não é um argumento sólido. Se o fosse, estaríamos a dar razão àquelas pessoas que dizem numa exposição de pintura “a minha filha de sete anos faria igual” (então, faça) ou a aceitar como conclusivos e exactos as experiências que se fizeram de chimpazés e elefantes pintores... Ergue-se assim o fantasma da intencionalidade. Mas, hélas!, eis que essa também não pode ser uma razão última, pois não basta um autor querer criar uma obra artística para ela se tornar necessariamente numa obra artística. Fosse assim, éramos de facto todos artistas num momento ou outro das nossas vidas, o que alguns afirmam ser possível, reapropriando-se da famosa frase de Joseph Beuys (mas descontextualizando-a do seu pensamento reformador em relação a toda a atitude perante a cultura e o acto do fazer e do criar), roçando assim o perigo da banalização total do acto criativo ou, pior, o do puro niilismo. É preciso que ela, a obra, seja aceite e fruída por um grupo exterior... Todavia, adivinhem. Não é o fim do caminho. Apelar para uma “comunidade interpretativa” é uma espécie de mistura entre uma “fuga para a frente”, “fugir com o rabo à seringa” e “cara ou coroa”, tudo num nó. É como quem diz, “estas pessoas dizem isto assim, logo...”. Pois, mas basta um exemplo: 1913, Teatro dos Campos Elísios, Paris. Estreia da Sagração da Primavera, de Stravinsky e Diaghilev. Uns que sim, outros que não. Qual deles tinha razão? Deixem-me ser um pouco arrogante: 50 milhões ou mais de pessoas leram o Código da Vinci. Cerca de 2o mil (no mundo inteiro) terão lido Robert Walser. Ganha a maioria em relação a um ser “melhor livro” que o outro? Poder-se-á apelar de imediato para “o tempo o dirá”. Outro beco sem saída. É o mesmo que dizer, “calemo-nos por agora, não há que discutir pois não há que descobrir”. Temo que este exercício, para além de ser já longo, não ter nenhum fim... é uma cobra infinita, se não for antes uma ourobouros que em vez de se engolir, se vomita a si mesma perpetuamente.
Nestes casos, sei que não existe uma resposta definitiva, mas isso não significa que a discussão deva terminar ou sequer descansar. Uma boa pista é apresentada pelo filósofo contemporâneo norte-americano Noel Carroll em Philosophy of Art. A Contemporary Introduction (Routledge). O último capítulo é dedicado exclusivamente à questão da definição e identificação da arte. Depois de atravessar as teorias anti-definição, o neo wittgensteinianismo, e as mais próxima teoria institucional da arte, Carroll não encerra a discussão mas aproxima-se de uma tentativa mais global de a tornar clara e esclarecida através do que se chama a “definição histórica da arte”, isto é, um modo de recontar narrativamente a maneira como a arte, a ideia de arte, se foi formando ao longo do tempo informada pelas novas obras de arte, as novas atitudes, as novas teorias e filosofias, e as várias ênfases que foram dadas às múltiplas dimensões que uma obra de arte costuma tomar. Isto é, é um entendimento que dá conta dos vários olhares que existiram em relação à arte. Por isso, entenda-se a arte como forma de expressão, de representação, de jogo do formas, de articulação de ideais, ou uma reflexão da natureza da arte (simplifico das suas palavras), estaremos sempre a considerar como obra de arte algo que se plasma a um olhar anteriormente desenvolvido sobre outras obras de arte. Não se poderá esperar a criação (ou emergência) de uma definição que tome somente os elementos internos (formais) da obra, mas associá-los a um fio vermelho que as ligue, às obras, a outras. Isto permite a que se possa passar considerar algo como uma obra de arte mesmo quando ela não tenha sido construída como tal pelo seu produtor (o exemplo dado são os sílexes neolíticos); ou que simplesmente declarar – mesmo que por um artista, um comissário de exposições ou um filósofo da estética – um sofá como um ready-made não seja condição suficiente, e que esse olhar sobre uma obra de arte seja “sério, de longa vida e deliberado”. Carroll não considera esta teoria final. Bem pelo contrário, apresenta argumentos, que se prendem com a intenção do criador, a propriedade da obra de arte, ou a função (!) da obra de arte, que a impede de fechar o ciclo de debate. No entanto, onde Carroll quer chegar é que quando somos confrontados com uma obra de arte, já teremos certamente uma ideia do que é a arte, mesmo que seja uma ideia fantasmática, impossível de capturar numa definição gelada. À questão “o que é arte?” não encontraremos seguramente uma resposta final, mas a “isto é arte?”, começaremos sem dúvida por contar uma história que nos tentará ajudar a encontrar uma possível resposta.
E quando contamos uma história, falamos de personagens precisos, isto é, indivíduos. Voltemos mais uma vez atrás, para podermos avançar um pouco mais. Como afinal de contas debater a especificidade (da banda desenhada, no nosso caso) através de um debate da/de generalidade? Todas aquelas questões anteriores levantadas apontam para que desconfie de uma espécie de crença na essência da parte dos autores do ensaio. A essência da banda desenhada. O ingrediente misterioso, a bandadesenhidade. Aqui estamos então contra o pensamento escolástico: o preceito Scientia non est individuorum (“a ciência não cuida de casos individuais”) não nos é útil. O problema está, muito provavelmente, em querer imitar o saber científico em tudo o que ele tem de programático, regrado, disciplinar, controle das eventuais excepções confirmatórias. A crítica não é uma ciência, muito menos exacta (seja o que for que isso signifique). O que se debate, o que se pode debater, o que se deve debater e discutir é, de facto, a obra individual. Se se a colocar num espaço de discussão que traga à colação outras obras, tanto melhor, criando-se um espaço virtual de corpora que instaurará então o pensamento possível sobre a banda desenhada. Contamos uma história de uma personagem na qual há lugar para outras tantas.
E é esse o nosso esforço desejado: continuar a ler obras específicas, trazê-las à luz de outras, colocá-las a disposição de um diálogo ora inerente à banda desenhada, ora de um contexto maior da produção dos modos visuais e/ou narrativos, da arte, da cultura, da existência humana. Enfim, pegar nestes objectos específicos que se chamam livros (ou revistas, fanzines, etc.) de banda desenhada – vê-los ou prevê-los como tal – e encontrar neles os elementos que lhes são próprios e que nos permitem pensar sobre eles mesmos, nós mesmos, e o mundo.
Notas finais: a revista Labyrinthe apresenta ainda mais cinco artigos, algo desiguais, mas merecedores de leitura, sobre autores/obras específicas: Gipi, Watchmen de Moore e Gibbons, Boilet, Fabrice Neaud, Dupuy e Berberian, David B. (e ainda a secção de comptes rendus típicas destas publicações, já não sobre o tema central). Para mais informações, aqui [http://www.revuelabyrinthe.org/]. Usualmente, não faço publicidade, mas alguns exemplares encontram-se à venda na livraria francesa, no Instituto Franco-Português, em Lisboa.

3 comentários:

Anónimo disse...

Ainda não li a bendita revista e estou um pouco afastado destas questões. Suponho que sou mais um neowittgensteiniano que outra coisa. Dito isto tenho também de acrescentar que sinto falta de Nelson Goodman nesta discussão. É que, sem negar a importância de Carroll (lá terá a sua), na linha dele (a saber: a filosofia analítica) Goodman é fundador e fundamental quando se fala de estética. Não estará a pergunta "isto é arte?" próxima da pergunta "when is art?" de Goodman? Por outro lado esta passagem: "onde Carroll quer chegar é que quando somos confrontados com uma obra de arte, já teremos certamente uma ideia do que é a arte, mesmo que seja uma ideia fantasmática, impossível de capturar numa definição gelada"; ... parece-me descrever o problema da indução discutido por Hume e também por Goodman (o qual a colocou em questão de forma brilhante).
Anyway, parabéns por mais um mais que excelente texto.

Pedro Moura disse...

A primeira coisa que devo assegurar, e é extremamente importante, é que não posso senão reduzir a argumentação de Carroll num texto desta natureza. Não o quero tornar numa autoridade última para a qual apelar, naturalmente, mas há uma espécie de linha condutora do pensamento dele que tenta mostrar como as ideias se cristalizam ou se formam continuamente numa mistura de casos individuais que vamos conhecendo como de sínteses repentinas com que somos confrontados. Por isso é difícil (senão impossível) responder a uma pergunta como "o que se diria a um marciano se ele nos perguntasse o que é arte?" (pergunta de De Duve). E também me parece ser difícil responder, no campo da banda desenhada, quais as marcas de regra que nos ajudam a distinguir os artistas dos não-artistas... Temos de mergulhar logo em casos individuais. Tal como Goodman (ou por causa de Goodman), e conforme a lógica, sem dúvida, Carroll segue a ideia de procurar como argumentos fortes as noções necessárias e suficientes para se falar disto ou daquilo. Mas descobrir-se-á que o que é necessário e suficiente é por vezes fluido demais... Na banda desenhada há quem diga que é "necessário" haver balões de fala, e nós sabemos que isso não é verdade, ou que a existência de uma sequência de vinhetas é "suficiente" (daí a inclusão de tanta coisa da História Humana na da Banda Desenhada), quando também desconfiamos não ser assim... Onde começar e onde parar? Não tenho resposta. Não sou feliz em sínteses. Continuarei a tentar ser o caça-borbotos do costume...
Abraços e obrigado.
Pedro

Anónimo disse...

Já li o tal artigo e devo dizer que me surpreendem os teus comentários. Também me surpreenderiam os comentários de Thierry Groensteen na revista que dirige se não soubesse o que o apoquentou: deve ter sentido suores frios (em sentido figurado, naturalmente) ao ver o fantasma de Bruno Lecigne (salvo seja, que ele está vivo e bem vivo) a rir-se por detrás dos nossos novos amigos "Dusquier et Pabreuil". Cá p'ra mim todos os 3 acertaram na mouche: o problema por resolver na crítica de banda desenhada é o problema do autor não é o problema do medium. Para quem não se está a borrifar para a legitimação social da banda desenhada (crucial para a simples sobrevivência desta "linguagem" enquanto forma de arte, na minha opinião) é aí que bate o ponto. Se os _Cahiers du Cinéma_ não tivessem existido, onde estaria ainda hoje o processo de legitimação do cinema? Apesar do nome e da qualidade inegável, os _Cahiers de la Bande Dessinée_, era Groensteen, naturalmente (da outra não vale a pena falar), nem tentaram resolver tal coisa, como ficou demonstrado pela polémica publicada na revista _Controverse_ e pela infeliz acusação (!) de Groensteen a Schwartz e Kaplan (do fanzine _Dorénavant_) de serem, imagine-se, ultracríticos.