Durante algum tempo, devo confessar que olhava o trabalho de Marco Mendes como pequenas peças disjuntas de um grande projecto que se adivinhava. Isto é, pecava eu naquela visão de que uma legitimação – seja esta cultural, artística, literária e, pasme-se, banda desenhística - tivesse necessariamente de passar por aquela medida que se diz “de maior fôlego”, “mais conseguida”, “mais acabada” e a que se chama livro (ou “novela gráfica” ou termos quejandos, todos eles tolos e vazios). No entanto, é até mesmo graças ao nome de série que o autor desenvolveu (presente nos fanzines, nos títulos de algumas pranchas, e no seu blog e desenhos que vai produzindo noutros circuitos, ditos “artísticos”, como se o resto não o fosse) que atingimos o verdadeiro tom e ponto de justiça do seu trabalho: Diário Rasgado.
Se a palavra “diário” nos remete a uma espécie de prova de esforço, ritmada, que se pretende como uma capacidade de remeter toda uma série de eventos para a sua possibilidade de escrita, de merecimento dessa transformação e transmissão, já o qualificativo de “rasgado” faz-nos pensar numa revisão dessa mesma ideia. Poder-se-á referir a páginas que afinal não merecem ser recuperadas pela memória, excepções a esse merecimento, e logo são sacrificadas, arrancadas do corpo maior. Mas também poderemos entender que foram rasgadas precisamente como forma de resgate, isto é, o diário em si continuando inacessível – por não nos pertencer, por não ganhar corpo no mundo – e apenas são estas aquelas que ganham contornos de legibilidade. Mas o acto de rasgar, movimento manual de alguma violência, leva também a que se pense numa folha agora tornada (mais) imperfeita: não se trata de “cortar” ou “separar” ou “destacar”, mas “rasgar”: um dos lados ficará desigual, com várias curvas, esta frase e aquele desenho “magoados”, “incompletos”: a imperfeição é uma das características destas páginas, com estilos ligeiramente diferentes, vários graus de completude do desenho, textos corrigidos... Como se a dificuldade em nos vermos a nós mesmos, todos os dias, do mesmo modo, fosse expressa por essas diferenciações internas, e o acto de nos rasgarmos de nós mesmos, para permitir que nos possamos ver “de fora”, se tornasse possível.
Seria um erro tremendo não partirmos da ideia de que Marco Mendes conhece bem a tradição em que se insere. Apesar da banda desenhada viver numa crise da sua própria memória, em que cada nova geração parece desenvolver-se na ignorância do que veio atrás, Marco Mendes pertence a uma outra nova geração, que se ocupa de uma recuperação, quer directa quer indirecta, de todo um rol de criadores, assim como ao estabelecimento consciente de linhas de desenvolvimento artístico muito próprias, retrospectivamente, mas também projectivamente, nas quais depois se inserirão estes mesmos artistas. Julgo que é claríssima a “família” aqui eleita, e a que se poderia dar o nome de autobiografia, com todas as certeiras certezas e igualmente os frágeis defeitos que tal nome implica. Logo, o cotejamento do trabalho de Mendes com o da linha americana que se estende de Justin Green, Harvey Pekar até aos mais recentes autores, e da europeia desde Moebius (um punhado de histórias curtas) ou Gotlib a Fabrice Neaud, não é de todo displicente, e obriga-nos a encontrar a sua especificidade e valor. As afinidades de Marco Mendes aproximam-no mais de autores como Joe Matt, pela forma como o autor-enquanto-personagem nos aborda directamente (puxando-nos de uma forma poderosa a que respeitemos o papel de narratário que nos é destinado) para ofertar com uma franquíssima exposição dos seus defeitos de toda a ordem (física, económica, profissional, amorosa, sexual...). Mas onde Joe Matt o faz empregando um tom de humor excessivo, quase de absurda caricatura, e para o qual concorre o seu estilo gráfico fortemente estilizado e devedor de uma produção infantil, e para que, segundo as boas regras retóricas da captatio benevolentiae, “perdoemos” essas confessadas imperfeições de carácter, Mendes não parece procurar o mesmo tipo de reacção. É certo que também este autor num momento ou outro emprega o humor (veja-se a capa de Carlitos) ou a metamorfose como forma de escape ao peso “real” que essas confissões assumirão, mas além se serem excepcionais, servem como veículo de uma abertura mais sincera, despojada mesmo de uma suposta empatia que pudesse vir a desenvolver-se. Mesmo as recriações pela ficção (de variadíssimos tons e naturezas) acabam por reforçar um baixo contínuo em todas as bandas desenhadas, que se nos aventa pertencer à melancolia, na verdade.
Torna-se assim mais perigoso num aspecto, que é o da ulterior confusão entre a vida e a arte. O que, por sua vez, se expressa de dois modos. O primeiro é o dos leitores, com maior ou menor ou inexistente intimidade com o autor Marco Mendes, levarem os acontecimentos retratados nestas estórias por um seu valor predicativo: “isto foi mesmo assim?”, parece apetecer perguntar. Não há resposta possível a esta pergunta, e mesmo que o autor avançasse com uma resposta – uma conversa descomprometida – estar-se-ia perante um erro categórico ou uma falácia. O segundo tipo de confusão é um repetido mote que surge aquando das críticas à autobiografia (mormente na banda desenhada) e que já algumas vezes debati, que reza que se não há muito a dizer na vida desse autor não suscitará interesse ele ou ela expressar esse “pouco”. O problema está em colocar um peso maior na ontologia do autor real que na capacidade e eficácia estética da obra; de certa forma, é idêntico ao primeiro problema, mas com consequências mais lesantes para a sua interpretação. No entanto, é precisamente esse perigo o que torna aliciante a sua leitura e consequente interpretação estética.
Lígia Paz (sua colaboradora em Carlitos, v. abaixo) escreveu um excelente texto sobre o seu trabalho, por ocasião da sua apresentação na galeria Plumba, no blog de Marco Mendes, ainda que dissolva precisamente a barreira última entre a sua intimidade com o artista enquanto pessoa e a leitura do seu trabalho, obra, a arte. A meu ver, e esta é uma posição que, espero tornar cada vez mais apurada, o trabalho crítico não deve incorporar jamais elementos que tenham uma proveniência externa à da própria obra. Não é difícil aceder a elementos dessa natureza, para começar, graças ao convívio directo com o artista, que tanto pode surgir da amizade como dessa aproximação jornalística, essa criação de uma comunicabilidade ilusória, e que dá pelo nome de “entrevista”.
Esta palavra, neste seu sentido moderno, precisamente jornalístico, surgiu a meados do século XIX e pelo inglês, mas a existência da sua forma verbal anciã, entrever, é já atestada desde o século XVI, e possivelmente relacionada com o francês. O seu significado oscila por “ver por entre”, “ver brevemente” (“entrevista num rápido olhar”, lê-se algures em Poe), e até mesmo “encontrar-se directamente com alguém”. O sentido jornalístico, desvirtuado ou tornado explícito no verbo entrevistar, nada tem a ver com essa realidade:
Em todo o caso, o texto de Lígia Paz não se reveste, nem o pretende, de uma natureza crítica absoluta, e deseja antes revelar o que da intimidade se pode despedir como pista de leitura. As suas palavras não nascem de uma entrevista nem de um entre-vistar, mas de uma supervisão, i.e., um “ver por cima”, e “para dentro” do autor, desdobrando desse interior linhas que se tornam texto. Há duas características sublinhadas, nesse texto, de importância máxima na apreciação do trabalho de Mendes: uma “sujidade gráfica” e a assunção de “pseudo-histórias”. Isto é, a narrativa acaba por não se concentrar em torno de um nódulo de significados, mas antes formar-se por acumulação das notas que se propõem sedimentar nestas curtas bandas desenhadas.
Uma outra forma de entendermos esta estratégia – ao arrepio das “reais” condições de produção que, inanalisáveis e sem peso para uma interpretação estética – é aferir-lhe um valor espiritual ou, se tal vocábulo incomodar os que negam esse domínio inerente ao ser humano, existencialista. Existem variadíssimas tradições, um pouco por todo o mundo, de entregar ao mundo obras “imperfeitas” como forma de respeitar a transcendência ou, de novo desviando-nos por outros vocábulos, uma existência mais plena, mais profunda, mais acabada (que não nos é alcançável, que se torna fonte de angústia e movimento: fosse um cume atingível, não mais avançaríamos): ceramistas budistas, depois de tornearam um vaso perfeitamente redondo, impõem-lhe uma mossa ou curvatura antes da cozedura para que não seja “perfeita”; alguns dos povos ameríndios em torno do rio Amazonas chamam a esse canto do mundo “a parte que Deus não acabou”, revelando assim a um só tempo um contínuo work-in-progress e a presença divina, ainda; e quem sabe se as Capelas Imperfeitas não possuem um propósito mais exacto de perfeição tal como existem hoje, ou abrindo-se a outra natureza de perfeições (segundo uma lição de Fiama Hasse Pais Brandão)...
Abandonando Marco Mendes à sua sorte, e de quem cuja verve se espraia uma das mais definidas, malgré lui, e fortes vozes da banda desenhada contemporânea portuguesa, abordemos os seus colaboradores.
Janus é um autor sobejamente conhecido nos círculos mais alternativos, tendo sido o seu Macaco Tozé, publicado em volume pela MMMNNNRRRG (2000) [desculpem, havia confundido com a Chili com Carne, como de costume] talvez uma porta de maior acesso a um maior público: é assim como que uma espécie de assombroso e cáustico fantasma que assalta quem não o conheceria antes e de repente se apercebe de uma presença fortíssima, despertando-se as mais intestinas paixões, que nem sempre passarão pela empatia. No entanto, onde parece o autor criar histórias padecentes das mais proverbiais “vascas da agonia”, profundamente existencial e quase niilistas, as questões que coloca deveriam obrigar-nos a pensar: “Como é que tu aguentas viver todos os dias, Marco?”, pergunta Janus-desenhado-por Marco-Mendes na contracapa de Projecto. “A rir, Janus”, responde Marco-Mendes-personagem. Janus, fazendo jus a esse nome emprestado, obriga à capacidade de olhar em ambas as direcções (sejam elas quais forem, que amamos dicotomias em todos os planos da existência), e Marco, entretanto e no interior de Projecto (e mais além) mostra a capacidade de distância, não só pelo riso, como vimos, mas pelos sucessivos desdobramentos, que lhe serve de resposta, mesmo que momentânea.
Provavelmente é essa, dizíamos, a qualidade máxima de Janus, a de provocar um incómodo em certos sectores que preferem bem vincadas as dobras mas menos visíveis as varizes. O seu traço é usualmente carregado, de uma densa trama e um uso imenso de manchas negras, e onde a figuração orla o grotesco e o virtuoso anatómico (ou melhor, é por utilizar o virtuosismo numa fronteira com a caricatura e a mistura de figurações – macaco/homem – que se torna mais grotesco), mas as três páginas com que participa em Projecto são esboços leves e rápidos, como se se tratasse de facto de um “diário rasgado”, apontamentos breves e feitos in prasentia dos acontecimentos, a saber, uma peregrinação domingueira por tabernas e cafés. Uma espécie de périplo substantivo, criando-se um ambiente e uma linha de acção que construiremos nós a seguir.
Faz parte, portanto, da política de Marco Mendes esta convivência com os outros (já presente na sua acção de editor com Miguel Carneiro, nos vários fanzines do colectivo portuense A Mula), uma entrega total à amizade e à liberdade. Pode-se, de facto, fazer-se o que se quiser, e este diálogo estranho entre duas personalidades que partilham vidas (informações internas às história, não a um biografismo externo, no caso de Carlitos) ou afinidades (no caso de Projecto) faz com que se prove a certidão de um ditado como “o amor é cego”, permitindo-se que dois, três ou mais territórios se mesclem, que percam entre si as fronteiras, lá onde um outro tipo de policiamento – gráfico, temático, político, outros – preferiria delimitá-las claramente.
1 comentário:
O Macaco Tozé foi publicado pela MMMNNNRRRG: www.gentebruta.pt.vu
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esse teu avatar simpson está um bocado bronzeado... hum...
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