30 de junho de 2009

Publicações na Feira Laica


Se podemos, por um lado, dizer que Portugal não tem um mercado de banda desenhada e/ou ilustração condigno em relação aos seus autores de qualidade, quer comparativamente a países como a França ou Espanha, quer em termos mais gerais do mercado livresco e editorial, quer até em relação às plataformas que mais garantias económicas e de divulgação poderiam avançar, a verdade é que temos observado nos últimos tempos pequenas mudanças, sobretudo no que diz respeito a uma verdadeira estruturação de um mercado alternativo ou independente. Ambas as palavras aqui dizem respeito à inscrição, ou melhor, à não participação naqueles círculos mais comerciais, mas em nenhum caso dizem respeito aos propósitos das publicações em si, dos autores em particular, que podem muitas vezes almejar atingir o maior público possível, mesmo através de estratégias de clareza e tipologia narrativa e estilística, jogos de publicidade alargados, etc. Em grande parte, concorrem para essa situação uma crescente sinergia entre vários grupos de autores, editores, entusiastas, a criação de pequenos elos em cadeia de amizades, interesses comuns, etc. Penso que, actualmente, o Festival de Beja concorre para esse papel, tal como os certames organizados pelos ou em torno dos colectivos Laica (Lisboa) e Mula (Porto); a Bedeteca de Lisboa, no seio da sua modorra institucional, consegue ir mantendo alguma vida, sendo esta Feira um dos momentos altos (este ano coroado pela exposição e pela presença dos autores finlandeses da Boing Being). Mas concorrem para esta situação mais generalizada não só aqueles nomes que mais imediatamente se associam a estas acções (Imprensa Canalha, Chili Com Carne, A Mula, Opuntia Books, etc.), mas também outros círculos, como os livros El Pep, e uma mão-cheia de fanzinistas encartados (entre os quais José Lopes, Lucas Almeida, Paulo Lima, colectivo Hülülülü), já para não falar dos comparsas de outros círculos, sobretudo musicais (Thisco & Filipe Leote, sobretudo). Assim, esta é uma oportunidade para alguns dos mais activos e interessantes produtores de publicações fazerem alguns dos lançamentos mais importantes do ano. E para obtermos, frescos das prensas respectivas, os nossos exemplares.
Não nos demoraremos em demasia neles, por razões que se prendem sobretudo com espaço e tempo, mas sem quaisquer desejos de displicência para com as publicações em si... Muitos dos autores dão continuidade aos seus trabalhos e investigações individuais, e noutras oportunidades já havíamos falado dessas pulsões, aqui mantidas, infleccionadas, revistas... (havíamos feito o mesmo exercício na Laica anterior)
Da Imprensa Canalha cumpre-nos anunciar a edição do tão-esperado Derby, uma colecção de vinte desenhos de dez artistas portugueses (dois cada), criados através do método directo (um desenho directamente feito sobre a matriz, o ecrã de impressão da serigrafia): juntaram-se Filipe Abranches, José Cardoso, Miguel Carneiro, Jucifer, Luís Henriques, André Lemos, Marco Mendes, Carlos Pinheiro, João Maio Pinto e Nuno Sousa. A divisão dos artistas nos grupos “do Porto” e “de Lisboa” prendia-se com uma leitura desportiva, mas que acabou por não ser explorada, nem na factura da obra, nem no texto de aprensentação, deste vosso criado. Ainda vieram dois fanzines. Em primeiro lugar, As Raças Humanas, de José Feitor, cuja verve humorística de semblante sério se desvia pelos discursos ultrapassados em torno das razões últimas das diferenças culturais e étnicas entre os seres humanos. Empregando textos do contemporâneo Jared Diamond, Feitor cria uma curta banda desenhada antropológica, e com textos do mais vetusto Ernesto Granger, num português dos anos 30, cria como que ilustrações de enciclopédia jovem da mesma altura (aliás, a edição original de Granger, como informa Feitor, era de uma colecção dessa natureza), algumas cujos “erros” de interpretação se tornam hilariantes, outros procurando antes ganhar a força de comentário político. Em segundo lugar, Blues Control #1, de Pedro Lourenço, contendo alguns dos desenhos animalescos, totémicos, mandalescos e epifânicos que o autor publicara nos seus blogs (* e *).
Da Opuntia Books, três novas publicações. Dry and Free from Grease é uma colecção de variadíssimas colagens de André Lemos; esta é uma outra linguagem que o autor tem experimentado há algum tempo, e poder-se-á identificar duas vertentes, sendo a primeira “infantil”, digamos assim, no emprego de largos pedaços de folhas com cores primárias para a criação de criaturas minimamente antropomórficas, e a segunda a que aqui se cultiva, utilizando as mais díspares fontes de material, para a criação de pequenas estruturas de associações, que tanto têm de Ernst como de Baldessari, como de Kirby e de Dada. A legibilidade destas colegens não é o propósito de Lemos, mas o encerramento das figuras que compõe no interior de linhas geométricas faz pensar num qualquer desejo de circunscrever a sua acção. Cult Pump, do dinamarquês Zven Balslev, faz pensar no que teria sido se Philip Guston tivesse continuado na exploração da fragmentação das figuras da sua fase mais tardia. O martelo da capa parece ser não apenas m comentário mas uma explicação do que se encontra no seu interior: os restos de imagens anteriormente completas, as vítimas de uma qualquer violência que não conseguimos identificar e somente temos o prazer, ou o horror, de contemplar os resquícios deixados atrás, os quais, todavia, já prometem leituras diversas. A associação a nomes tão dispersos como os de Dice Industries ou Sue Williams é inevitável, na procura de uma cartografia de significado. Finalmente, Time Life Life Time, de Luís Henriques, na qual, por essa ordem consequente, o autor recria capas de ambas as famosas revistas norte-americanas numa técnica de pontilhados, linhas, tramas, manchas, que parecem “traduções” do material original através de uma maquinaria quaquer defeituosa, talvez um pantógrafo perro, ou uma lente distorcida e embaciante... Mas como me conta o artista, "no fundo a mão está lá sempre, um tanto autista, um pouco cega, um pouco hábil, um pouco bruta, um pouco subtil, entre uma coisa e outra". As suas re-interpretações remetem a uma espécie de interrogação ontológica sobre a validade do mundo que é veiculado por aquelas revistas, dúvida que acaba por escoar para o próprio mundo, levando a uma sua eventual dissolução. Algumas das superfícies criadas por Henriques recordam como que doenças possíveis do papel ou da visão. Perturbante.
Jucifer, com o seu selo Bela Trampa, providenciou duas pequenas publicações, A mãe de todos os agarrados e Heavy Metal. Se bem que esta segunda apresente duas a três curtas bandas desenhadas pós-surrealistas, ou onírico-punks, a autora oferta-nos sobretudo uma colecção heteróclita de desenhos de personagens e criaturas, parecendo como que um catálogo de teratologias, medos urbanos, comportamentos de desvio que cada vez menos são desvio mas padrão, num misto de violência e humor... É como se a família dos Barbapapa subitamente se rebelasse contra o seu delicodoce universo e se virasse para uma chacina sem fim. Por razões mais pessoais e de posse, fico contente em ver publicado o desenho do homem bebendo o mijo de um sagui como se de um odre de vinho se tratasse, original o qual ornamenta uma casa-de-banho, apropriadamente.
Mas a maior surpresa, a grande diferença, a palma de ouro, vai sem dúvida para Pepino. Esta é uma “revista feita por pais e filhos” e a eles devolvida. Na verdade, o corpo editorial é composto pelas “mães”, mas é uma publicação associada às famílias em crescimento das pessoas dos Ateliers de Santa Justa, e poder-se-á dizer que é uma revista infantil alternativa: tem desenhos (de miúdos e graúdos), passatempos, poeminhas e poemãos, reportagens e receitas, dicas e histórias. Encontrando aqui material de André Lemos e José Feitor, e crendo que virá a incluir outros trabalhos de mais autores, mas inflectindo na direcção de um público infantil, faz-nos pensar em toda uma série de outras experiências, desde os livros de ilustração de Taro Gomi a Pee-wee Herman’s Playhouse (na qual colaborou Gary Panter), passando por séries como Sardine de l’espace e Ariol... É curioso ver as transformações ou adaptações desses estilos familiares mas num contexto de divertimento relativamente simples e relativamente tolo. Mais importante, porém, é a inclusão real dos trabalho, ideias e pensamentos das meninas e meninos envolvidos. Uma das partes mais interessantes são precisamente os pensamentos deles. E se o Martim, de 5 anos, acredita que as dores de cabeça “servem para não pensarmos alguns pensamentos”, só se pode desejar que não tenham quaisquer dores para puderem aceder a todos os pensamentos possíveis. Acredite-se, e confirme-se junto ao blog do Pepino, que o que está aqui em causa é uma educação pela exposição a tudo (sem distinções do que deve ser para crescidos) e pela atenção às personalidades dos pequenos. Se a ilustração e a banda desenhada é ainda por vezes vista por muitos sectores como “coisas para miúdos”, será interessante ver a criação consciente de “coisas para miúdos” com algum grau de liberdade, frescura, originalidade e loucura.
Notas: agradecimentos a José Feitor e Mike Goes West pelo convite relativo ao texto, a André Lemos pelas ofertas, e tip’o the hat a Filipe Abranches pelo que fica visível no Derby.

3 comentários:

Anónimo disse...

o teu site é quase perigoso!
eu não fui à feira Laica mas depois de ler o teu artigo encomendei 4 livros (2 Opuntia X 2 Imprensa canalha) lá se vais o subsídio de férias :-D
Isabel

Viriato disse...

Boa noite.
Para além do bom gosto e da boa escrita, vejo (pelas fotografias) que tem gosto apurado na escolha de pavimento para o chão e de revestimento para as paredes.
Cumprimentos e continuação de bom trabalho!

Pedro Moura disse...

Caro Viriato,
Sempre julguei que um bom amante de livros tem de os proteger da melhor forma, por isso alguma expertise nos mercados e industrias de parquets, tijoleiras, mosaicos hidráulicos e tintas impermeabilizantes não são mais do que complementos fundamentais da crítica literária e estética.
Já no que diz respeito à fruição da leitura, como sabe, há que também optar por uma escolha primorosa de instalações sanitárias, e espero ter feito as opções certas...
Abraços,
Pedro Moura