Este pequeno grande livro deve ser aparentado não com os “livros de bolso”, mas com os “breviários”. A razão pela qual alertamos em primeiro lugar para a exclusão da primeira categorização deve-se ao facto de Stonecutter ser uma obra que Muth havia publicado em 1994 sob a forma de uma edição limitada, desta série de pinturas suscitada por um conto tradicional sino-japonês, sendo esta a sua primeira edição em livro. E num formato pequeno, daí a designação “livro de bolso”. Todavia, o cuidado desta edição, desde o tipo de papel à impressão ligeiramente em relevo dos pretos das tintas, passando pela distribuição das breve linhas de texto, uma ou duas curtas frases, a um leve cinzento no topo da página da esquerda, leva a querer colocar antes este livro nas mesmas estantes onde encontraríamos, por exemplo, os livros de horas medievais, o também pequeno Songs of Innocence and of Experience, de William Blake, e até mesmo o estranho e multímodo The New Sins, de David Byrne. Quer dizer, se bem que mais rapidamente se procuraria inscrever Stonecutter nos pequenos grandes livros ilustrados da classe de um Masereel ou mesmo Gorey, a verdade é que o propósito deste é bem mais espiritual, e não tanto narrativo, independentemente das vontades, humores e papéis ideológicos dos exemplos assinaláveis. Trata-se menos de um livro para ler somente (se “somente ler” for entendido enquanto uma acção física e perceptiva que se esgota rapidamente) do que para degustar lenta e repetidamente. No momento em que sabemos qual a história, passa a ser visitável em qualquer das suas páginas, fora de ordem, ou melhor, abertas numa qualquer ordem que nos diga respeito, a nível pessoal.
Pela figuração, estilização, o emprego das aguadas, o balanço entre as poses estáticas e as expressões mais dramáticas, e as ruborizações dos rostos, não é de estranhar que o seu estilo de desenho, aguarelas ou pintura seja aproximado do do seu colega e amigo Kent Williams, o que, provavelmente, leva até mesmo a contínuas confusões e enganos nas atribuições dos seus trabalhos, na qual, confesso, eu próprio incorro por vezes, apesar dos pormenores distintos entre os dois. Poder-se-ia aproximá-lo(s) ainda de Georges Pratt, outro colega, amigo e colaborador (também aluno do Pratt Institute como Williams, mas sem qualquer relação entre os nomes), mas com menos semelhanças imediatas; assim como de o aproximar das estilizações da História da Arte que poderiam recuar até ao movimento da Secession vienense, mas o que importa notar neste, como noutros trabalhos, é a sua requalificação através da pintura-caligrafia sino-japonesa zen. A sua obra no território da banda desenhada não é incomportável, mas compreende um trajecto que parte do pós-hippie Moonshadow (dos anos 80, escrito por J. M. DeMatteis) ao Meltdown (precisamente com Williams, numa história de super-heróis com o Wolverine e o Destrutor/Havok, escrita pelos Simonson, e que serviu de introdução a toda uma geração de portugueses e brasileiros a estes artistas), passando pelo excelente e infelizmente pouco debatido The Mystery Play (escrito por Grant Morrison) até a “Exiles”, um dos episódios “soltos” do último volume da saga de The Sandman, de Neil Gaiman. Esta última história interessar-nos-á na medida que em Muth emprega a mesma técnica pictural de Stonecutter (há uma coincidência do período de criação, igualmente).
Um outro conjunto de trabalhos do autor é na literatura gráfica infantil, no qual se destacam Stone Soup (sim, essa sopa de pedra!), Zen Shorts e The Three Questions, nos quais se destaca a inclinação do autor em, bebendo de fontes tão díspares quanto os contos tradicionais da Ásia Oriental ou Tolstoi, se entregar a uma busca profunda que se encontra na equação simplicidade-da-narrativa/profundidade-da-lição típicas da filosofia zen.
Pois é aqui que convergem os interesses de Muth e que levam a Stonecutter: a aliança entre o domínio de uma técnica e uma opção por uma certa natureza de narrativas. Por um lado, nota-se na sua carreira de escritor uma predisposição para estes singelos contos, aparentemente simples mas nada inocentes, surpreendentemente lineares na sua estrutura narratológica mas solevando as questões mais fundamentais da existência humana, sobretudo da possível felicidade de nós mesmos e da complacência para com os outros. Por outro, mas que não deixa de ser uma dimensão artística, de um fazer, dessa mesma predisposição, há este domínio de Muth pela pintura caligráfica chinesa, com os seus instrumentos típicos, pincel, papel e tinta-da-china. Desde já, aconselharia acompanharem parte da explicação deste projecto e mesmo a testemunhar parte desse trabalho no vídeo criado a propósito desta edição, aqui. Quando Muth afirma que “cada imagem é como se fosse uma exalação concentrada”, e do movimento das linhas e do emprego total do corpo e da mente, não está longe do pensamento estético filosófico que o artista chinês do século XVII Shitao deixou nos seus escritos. A distinção de pintura e de caligrafia é uma matéria típica da categorização disciplinar ocidental, já que no entendimento clássico chinês, ambas fazem parte, com a poesia, da acção holística da criação das “três perfeições”. Nas palavras de Shitao, que tanto tem de mantenedor das tradições que herdara como de revolucionário, “o Gesto Holístico do Pincel existe antes de tudo: a caligrafia e a pintura são as suas aplicações consequentes”. O “Gesto Holístico do Pincel” quer dar conta do termo de Shitao que pode ser traduzido de outro modo, por exemplo, “a linha primeva” ou “única”, e tem a ver com essa união espiritual, física, tornada patente nesta pequena obrinha em todas as suas dimensões. No Japão, essa união da caligrafia e da pintura é conhecida como sho, a qual Muth estudou, juntamente com escultura em pedra, nesse país (o título caligrafado em kanji, nas páginas iniciais do livro, é do autor).
Muth aplica sobretudo essa aprendizagem na gestão dos vazios. Pela figuração precisa e representativa, é óbvio que Muth é um artista ocidental, não seguindo as múltiplas técnicas da pintura clássica chinesa, com toda a sua tipologia de pinceladas e traços, cada qual correspondendo não apenas a um objectivo de representação como de conceptualização do mundo. Não obstante, a forma como emprega o pincel (veja-se com atenção o modo como, no vídeo, ele elabora um círculo) permite a emergência desses vazios ou “brancos” que concorrem em larga medida ao preenchimento da imagem (curiosamente, se bem que sem qualquer relação com as ideias propostas pela estética chinesa, Töpffer acaba por dizer o mesmo a propósito da forma como desenha, i.e., “incompletamente” na figura mas holisticamente na percepção, entendimento e fruição). O maior teórico no mundo ocidental desse conceito do vazio na arte chinesa continua a ser o escritor sino-francês François Cheng, sobretudo com Vide et Plein. Le langage pictural chinois. Uma forma de entendermos essa relação é aquela entre o wu, o “vazio”, e kong, o “espaço” (logo aqui entendemos que a dicotomia básica cheio-vazio ocidental não corresponde na totalidade àquela chinesa, ou sequer, mais próximo talvez da de nada-alguma coisa, como se se tratassem de duas classes ontológicas de “vazios”...): mas o que se procura não é uma oposição, mas antes a construção de um balanço harmonioso (tal qual no famossíssimo símbolo do yin e yang). Se bem que o vazio primordial, taoísta (note-se na insistência do círculo neste livro de Muth, represente algo ou não), tenha sempre uma predominância, como se se tratasse de um virtual sempre presente, anterior ao gesto da pintura, ou a qualquer gesto.
Em termos dos desenhos de Muth, isso é claríssimo nalgumas das suas instâncias em Stonecutter, como nas da cadeira, da lâmpada (o artista não se coíbe de construir uma amálgama ocidental-oriental na sua interpretação do conto), dos pombos, da chuva, dos blocos de pedra ainda por esculpir... Há uma técnica clássica nesta pintura: mergulham-se os pêlos do pincel apenas até metade na tinta, e quando se o aplica sobre a superfície a pintar, pressiona-se até quase ao cabo (a posição do pincel é sempre perpendicular à superfície na pintura chinesa) de forma a que quando se move o pulso acabem por surgir troços sem tinta, “buracos”, “vazios”, plenos de sentido. Muth cumpre-o.
O conto, tradicional, e que conhece muitas versões – das quais podem encontrar no youtube algumas em animação, inclusive a do animador e ilustrador infantil Gerald McDermott, e o qual é aparentado com algumas lenga-lengas ocidentais - foi reescrito por John Kuramoto num estilo austero, simples, sem grandes engalanamentos e acrescentos. As frases, separadas a cada folhear de página, e acompanhadas pelo ritmo das imagens, torna a sua leitura e releitura num exercício análogo ao da respiração, da recitação de um mantra, de uma oração.
E é esse, penso, ser o último propósito desta versão de Stonecutter, agora às mãos de todos.
2 comentários:
Olá Pedro!
Gostava que visses o livro escrito pelo Rui Caeiro chamado O carnaval dos animais.
Se te estás a referir ao Rui Caeiro da Etc., é uma vergonha que eu não o saiba já...
Caça!
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