Esta é, como se explica na introdução, uma “súmula alargada da dissertação de doutoramento em Literatura/Literatura Comparada/Literatura e Cinema, da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve”. A tese original intitulava-se “Eterno presente, o tempo na contemporaneidade”, e este livro, em termos simplificadores, constitui-se, à partida, num estudo comparativo entre o filme Taxandria, de Raoul Servais (1994), e Souvenirs de l’éternel présent, livro hors-série de As Cidades Obscuras, da dupla Benoît Peeters e François Schuiten, e que se associa directamente ao filme, para criar um corpus cujo foco principal é o conceito do tempo, numa sua propriedade muito específica – a sua suspensão – e sua relação com outras categorias conceptuais, sendo a do espaço a mais imediata, mas passando igualmente pelas noções de modernidade, corpo, velocidade, estrutura, simulacro, corpo-ciborgue... Essas duas obras, irmanadas em termos de produção e diegéticos (apesar da mútua independência), constituem o ponto de partida para a reflexão de Bruno Mendes da Silva, não só numa primeira instância procurando encontrar quais as pontes de contacto entre os meios do cinema e da banda desenhada, como numa mais central e desenvolvida camada, utilizá-los como ponto de partida de reflexão sobre a condição humana na contemporaneidade.
Não estamos aptos, de maneira alguma, em tecer comentários sobre o cerne da tese em si. As observações que o autor faz sobre a contemporaneidade, desde a forma de vivermos as relações interpessoais através das novas plataformas digitais (as redes sociais, os meios de comunicação, e até mesmo os jogos ou ambientes de avatares) até à forma como reinscrevemos os corpos na vivência diária, a própria “formatação” da personalidade e o modo como comunicamos na sociedade da informação, tudo isso é alvo das reflexões de Bruno Mendes da Silva, auscultando conceitos fundados por pensadores mais ou menos na “moda” dos discursos associados a esses temas: Baudrillard, Virilio, Deleuze, Lyotard, Pierre Lévy e Sherry Turkle, entre outros (de um mesmo modo, as ficções de Borges e Calvino são citadas num mesmo plano que essas obras teóricas o que, revelando liberdade intelectual, não constrói, a nosso ver, uma perspectiva equilibrada entre os conceitos empregues). No entanto, tendo em conta o subtítulo deste livro, “A questão do tempo nas relações entre cinema, banda desenhada e contemporaneidade”, que foi precisamente – confessemos – a razão imediata pela qual nos levou à sua leitura, estávamos à espera de encontrar um novo e bem-vindo estudo académico que trouxesse um contributo substancial ao diálogo possível entre este modo de expressão que é a banda desenhada e o pensamento contemporâneo, a arte e a cultura em geral. Digamos desde logo, sem titubeações, que essa expectativa saiu gorada.
O problema maior, em relação à banda desenhada, é, a uma só vez, a brutal generalização e a instrumentalização verificadas nesta obra académica, colocando de lado totalmente o facto de se tratar de uma disciplina artística com centenas de anos (ou se quiserem, com 150 anos) e uma amplitude considerável, ainda que não totalmente visível, de níveis de produção, impactos sócio-culturais, géneros, etc. Por exemplo, bastas vezes surge o contraponto entre a banda desenhada “ocidental” com a “Manga”, dita “banda desenhada oriental” (sic), sem quaisquer tipo de qualificações ou explicitações de maior. Aliás, chega-se mesmo a generalizar que há temas e formas recorrentes na banda desenhada “oriental”, inclusive a forma/direcção de leitura (jamais se procurando as especificidades que diferenciam o Japão, a China e a Coreia do Sul, já para não se falar de outros círculos, quer tão específicos como Hong Kong quer em termos de diferenciações nacionais, da Tailândia à Índia). Um outro exemplo é quando, a dado momento, se generaliza a banda desenhada como “sexista”. Não se trata de querer aqui dizer que não o é na sua maior parte, mas o mesmo argumento poderia ser utilizado em praticamente qualquer outra área criativa, e o facto de não se apontarem exemplos contrários aos que são avançados (Hergé, que apesar de recordar o trabalho de Ana Bravo, não é citado nesta tese, e de resto é tema sem grande desenvolvimento, e os Estrumpfes de Peyo, com a agravante de confundir as histórias originais) leva a temer por um equilíbrio final e digno de uma discussão académica a este nível.
Essas generalizações e a pouco desenvolvida análise estrutural em relação a essa área é explicada, em parte, pela quase ausência de literatura especializada apontada quer nas notas de rodapé (já de si em pequeno número para uma tese de doutoramento, mesmo simplificada, e também pouco claras, como veremos abaixo). Com a excepção do livro As Cidades Visíveis, esse fantástico exercício de João Ramalho Santos e João Miguel Lameiras em torno da série de Peeters e Schuiten, e que aborda questões que, fictícias, abrem espaço a um questionamento mais verdadeiro e desenvolvido, e de Understanding Comics, de Scott McCloud, o qual corre o risco de parecer a palavra final no estudo teórico da banda desenhada para muitos leitores, nada mais surge no panorama bibliográfico. Ora, mesmo não se esperando – e mesmo assim, porque não o desejar no círculo académico? – citações de ensaios e papers que se encontram disponíveis no meio académico especializado, e que abordam questões tangencial ou mesmo directamente relacionadas com aquelas abordadas por Mendes da Silva, a total ausência de outras fontes (para já, os livros teóricos do próprio Benoît Peeters) leva a crer que o estudo da banda desenhada se deixou por uma breve incursão, e não uma resposta continuada a muitos dos estudos existentes em torno do tempo e da banda desenhada, de Jan Baetens a Neil Cohn, passando por Groensteen, Morgan e Fresnault-Deruelle. Por exemplo, na página 36, citam-se “alguns estudiosos deste meio” sobre a forma como se “preenchem” os espaços intervinhetais, mas não há qualquer nota, nome, estudo citado, e também não é essa “ideia” identificável na bibliografia. Outra questão ainda, e aqui centralíssima, é a da relação entre o cinema e a banda desenhada, bastamente estudado, de formas mais ou menos interessantes, mas a ausência dos estudos fundamentais dessa relação não abona a favor de um trabalho bem conduzido (a última frase deste trabalho é “este fim das coisas surge, assim, como apanágio da condição pós-moderna (...), a condição temporal que Servais, Schuiten e Peeters arquitectam para Taxandria e que é, afinal, a condição temporal de toda a narrativa do cinema e da banda desenhada” (pg. 148, itál. orig., negrito nosso). Logo, apercebemo-nos do gesto de total generalização e instrumentalização da banda desenhada – neste caso exemplificada, modelada e presente em apenas um título (não-canónico, o que até poderia ser um aspecto positivo, mas é abordado muito superficialmente).
Existirá algum problema, à partida, nessa instrumentalização? Aqui, apenas as convicções poderão dar lugar a respostas. Se acreditarmos que o que importa é o avanço da exploração conceptual, e que qualquer corpus, por mais reduzido que seja, é espoletador desse mesmo instrumentário, aplicado e resultante, então tudo é permissível e conseguido. Se, porém, estivermos em crer que toda e qualquer área é digna da atenção do filósofo, como dizia Baudelaire, mas essa atenção deve ser pautada pelo rigor e a amplitude, então essa instrumentalização apenas cria metáforas, de breve e problemática aplicação, e que pouco contribui para um entendimento real dos seus objectos, e muito menos da área criativa a que pertencem numa primeira inscrição.
Dito isto, aquilo que é o cerne deste trabalho é explorado substancialmente, como não podia deixar de ser. Quais os modos de representação temporal neste filme e nesta banda desenhada, tendo em conta que na cidade (do mesmo nome, Taxandria, mas com pequenas diferenças entre cada texto, seja em termos estruturais, seja de focalização, seja de papel actancial) o tempo é um “presente eterno”, cidade cuja legislação obrigou o tempo a ser banido, ou pelo menos ter a sua passagem marcada. É nesse sentido que autores como Deleuze, sobretudo com os seus volumes sobre o cinema, se torna operacional. No entanto, ainda aqui parece-nos que a instrumentalização deste e de outros autores citados é feita sem que haja, em primeiro lugar, uma explicitação cuidada dos conceitos que se pretendem citar, transformar em ferramentas e empregar, nem, em segundo lugar, que haja uma procura por um requilíbrio desse mesmo conceito ao objecto em estudo. Ou seja, corre-se o risco de se pensar que há apenas uma interpretação consensual desses mesmos conceitos. Isso ocorre, por exemplo, com a ideia de “modernidade”, conceito multifacetado e que ganha empregos variados, paradoxais e contraditórios conforme estejamos a falar de Baudelaire, Calinescu, Marshall Berman ou Habermas (um excelente ponto de partida, mas não único, desta problemática é o texto de João Barrento, “Que significa ‘Moderno?’”, incluído em A espiral vertiginosa). O mesmo ocorre num momento em que se comparam de forma directa e sem contextualização os conceitos de “virtual” em Baudrillard e Deleuze-Guattari, os quais, a nosso ver, partem de pressupostos diferentes – no primeiro, relacionando-se por oposição ao real (que “desertifica”), nos segundos co-participando com o “actual” na tessitura de todo o real – e levam a consluões e aplicabilidades também díspares. Por outro lado, e não obstante o ridículo que é apontar dezenas de exemplos que não foram utilizados, pois um investigador não pode falar de tudo mas sim do que for pertinente na circunferência dos seus objectivos, a ausência de outros exemplos estudados com maior desenvoltura torna qualquer generalização da categoria do tempo em qualquer das áreas problemática (pois poderíamos olhar para Here, de Richard McGuire, ou The Cage, de Vaughn-James, ou as estruturas diagramáticas de Ware, ou as tramas heteróclitas de tempo e marca em Baudoin, David B., ou outros, para encontrarmos crises dessa organização temporal – e a suspensão é ainda organização – na banda desenhada; no cinema, e ainda para mais no de “animação”, em que Servais se pode inscrever, poder-se-iam colher exemplos desde Cohl a Richter ao Chronopolis de P. Kamler, para encontrarmos explorações curiosas e produtivas dessa mesma categoria neste território).
Essa falta de sistematização é notável pelo titubeante, espraiado mas jamais aprofundado exame das relações possíveis entre a série da dupla Peeters/Schuiten e este livro em particular, um estudo da questão da vivência nessa pólis, um contraste sistemático entre as personagens e elementos-chave entre o filme e o livro, etc. Numa fase final, “O simulacro de Irina”, proliferam os exemplos, os modelos, as máquinas, os comportamentos contemporâneos (desde o Second Life aos RPGs) para ilustrar a ideia multifacetada e multímoda da contemporaneidade que é estudada, mas que, a nosso ver, precisamente graças a essa proliferação, se neutraliza numa flutuante constelação pouco atomizada, e assim inanalisável: não sendo analisável, não retribui portanto com instrumentos moldados e novamente aplicáveis.
Haveria alguns pontos interessantes a discutir, mas que não têm a ver propriamente com o estudo da banda desenhada (e cinema), e entram em temas menos sólidos para nós. Sendo leitores de Deleuze-Guattari, e crentes na frase programática “isto caga, isto fode” de O Anti-Épido, independentemente das plataformas digitais (este blog!), sentimos o peso do corpo, dos corpos e encontramos ainda aí desejo; não há ainda nenhuma conquista inevitável do corpo-ciborgue. O autor explora essa parte, sobretudo relacionando-a com as dicotomias sexuais (de associação género-social) típicas em Servais e Peeters-Schuiten, de uma forma acabada.
A questão das fontes é sempre uma forma relativamente interessante e segura de encontrar elementos externos à obra, mas os quais, tornando-se disponíveis enquanto pontos de contraste e/ou comparação, podem despertar pistas de interpretação. Todavia, é preciso algum cuidado para não as tornar como que chaves últimas dessa mesma interpretação, sobretudo se não se procura escavar nelas para encontrar os fios vermelhos, as afinidades electivas, as cinzas de um no fogo do outro, e se se reduz a uma espécie de alegria em encontrar pontos de contacto superficiais, derimindo as diferenças a um mero acaso. Ora, num ou noutro ponto, é o que acontece. Por exemplo, o pintor surrealista belga Paul Delvaux é citado várias vezes, dado o seu papel (assumido, documentado) sobre o filme de Servais. Mas quando se comparam as paisagens de um (nas telas) e de outro (nos filmes) para apontar a falta de personagens no segundo como uma circunstância no realizador, penso que se incorre no perigo de querer reduzir precisamente os espaços representados a paisagens neutras, quase como células de animação que pudessem vir a ser reutilizadas em contextos diferentes. Mas nas telas de Delvaux o cenário não é somente um espaço habitável. Veja-se L’âge du fer: o espaço, a paisagem, o fundo, é uma força dialogante com a figura feminina, criando todo um espaço associativo de contrastes que se presta a uma leitura relativamente aberta, ainda que circunscrita a um fantasma delimitado de temas, circunstâncias históricas, oposições sexuais, etc. No filme Taxandria, há inevitavelmente uma redução do espaço a “fundo”, por vezes inexpressivo, o que não é de surpreender nas mãos de Schuiten, cuja maior fraqueza é precisamente a falta de expressividade das suas personagens (a sua substituição por actores com Servais, curiosamente, actua num mesmo sentido, pela sua exploração “deadpan” à Nouvelle Vague).
O problema está em que em nenhum momento essas afirmações mais generalistas se mostram disponíveis a qualificações ou determinações, querendo fazer-nos crer, portanto, que o autor pondera-as como universalistas, de aplicação transversal, lei. Ora, a falta de rigor nesse passo é corroborada por outras ausências: ausências de outros exemplos de textos primários, ausência de diálogos com estudos e/ou autores de uma bibliografia mais especializada e que avançaram profundamente nestas questões, ausência até mesmo de uma hesitação do autor, a qual se revelaria um método de tactear um corpus inapreensível e, assim, revelar também um cuidado perante toda uma área artística.
Que a banda desenhada venha a ser progressivamente fazer parte dos textos culturais disponíveis na abordagem de todas e quaisquer disciplinas, sobretudo das ciências sociais e humanas, inclusivamente enquanto mero território de temas, personagens-tipo, pequenas aplicações de conceitos, é uma das formas de a própria banda desenhada ganhar direito de cidadania, é ganhar um lugar nesse imenso diálogo contínuo que constitui a cultura. Não obstante, qualquer outro objecto artístico vive já num círculo de conceptualização relativamente rico, e num quadro de referência considerado imperativo e básico para qualquer discussão. A banda desenhada não é excepção, mesmo que esse círculo e esse quadro não esteja tão divulgado na Academia como o das outras áreas. Seja. Mas tal como o desconhecimento da lei não é argumento para a não cumprir, o desconhecimento desse manancial conceptual em torno da banda desenhada (e, já agora, da animação, igualmente, ou outras fontes relativas à produção cinematográfica) não nos impede, porém, de sermos exigentes na construção dos diálogos que se desejam.
Por último lugar, fica apenas a chamada de atenção para a revisão científica das notas de rodapé, a qual é muito deficitária. As notas repetem inúmeras vezes os dados completos dos livros indicados, mas em largos casos sem jamais se citarem os números de página, e sem quaisquer comentários lateriais ou adicionais. Algumas dessas notas servem ainda para indicar um qualquer exemplo ou anedotas, mas sem deixar quaisquer pistas que permitissem ao leitor uma pesquisa já conduzida, como se desejaria num trabalho desta natureza.
29 de julho de 2010
A Máquina Encravada. Bruno Mendes da Silva (Novembro)
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:49 da manhã
Etiquetas: Academia
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