28 de fevereiro de 2011

NewBorn, 10 dias no Kosovo. Ricardo Cabral (Asa)

Não há qualquer ingenuidade em NewBorn.
Mas já será um pouco ingénuo querer ler o livro de Cabral num vazio das abordagens da banda desenhada a essa cidade ou as realidades que com ela mais se relacionam, sendo obviamente a obra de Joe Sacco aquela que mais se destacaria em termos de vitalidade, urgência e impacto. A introdução de Agron Bajrami é ligeiramente mitificadora (como se espera dos prefácios), quando escreve que Cabral faz a “história do Kosovo actual, [sic] melhor do que a maioria dos jornalistas, repórteres e analistas políticos” ou que o seu Kosovo não é o mesmo das notícias, pois “Ricardo vê para lá da superficialidade do estereótipo político”. O problema parece mal colocado. Ricardo Cabral não parte de um pressuposto de análise política, histórica, sociológica ou informada por uma qualquer agenda vincada a priori, mas sim como desenhador, isto é, uma pessoa que sabe agir sobre a sua observação com consequentes actos de transformação gráficos para devolver essa observação aos seus leitores-espectadores.
Ler NewBorn,10 dias no Kosovo não é o mesmo que ler Sacco, Zograf, Wostok e Grabowski, tal como ler cada um desses autores não é ler os outros. Cada acto de leitura tem uma individualidade inalianável, e Cabral atinge essa individualidade sem qualquer esforço, e é aí que nos parece residir a sua força e interesse. Querer ver nesses gestos de Cabral uma qualquer ingenuidade ou despretenciosismo é um exercício, ele mesmo, ingénuo e que pareceria querer indicar falta de ingenuidade, e pretensiosismo, da parte de outras opções criativas. Mas essa pretensão existe sempre, é mesmo condição de possibilidade do acto criativo: querer-se fazer algo, chegar algures, atingir alguma coisa, um qualquer fito. As questões circunstanciais que levaram Cabral ao Kosovo são apresentadas no próprio livro, até certo ponto, mas fazem ver, tal como no caso de Israel, uma forma do autor se deixar entrosar nos locais que visita e encontrar neles os instrumentos com que molda os seus desenhos (o que ocorre mesmo em projectos mais circunscritos, como no caso da sua participação em City Stories).
É óbvio que tudo o que pauta a visão do autor – e as selecções consecutivas que o levarão à finalização do livro que lemos – é filtrado por essa soberana e sempre presente aura e memória da guerra.
O seu método de trabalho passa pela observação e desenho no local, complementado pela fotografia, e depois a mais tardia completação da imagem através de várias técnicas digitais (para cor, composição ou correcções), oscilando entre o esquisso rápido – as guardas do livro, alguns desenhos de interiores de bares – a outras composições bem mais acabadas – como aquelas magníficas do interior da mesquita Carshi, que é também utilizada, invertida, na capa do livro. Em relação ao livro anterior, e outros exercícios do autor, NewBorn tem um diverso grau de inacabamento, na inclusão de alguns desenhos não totalmente coloridos, ou outros em que o céu, algum fundo, uma textura de um edifício ou de um monumento tira partido da cor creme do próprio fundo das folhas do bloco utilizado. Aqui um braço inacabado, ali uma sobreposição de personagens, de momentos de uma mesma pessoa, de uma estrutura que não é finalizada. Há também uma busca curiosa por uma montagem dos materiais, alternando imagens com textos e outras “mudas”, cenas de interiores íntimos e recantos da cidade, não necessariamente os mais turísticos e significativos para a maioria dos transeuntes. Muitas vezes há mesmo como que uma atenção particular, sensível, de Cabral para a vida que existe nos subúrbios, o que talvez se explique pela vida suburbana do próprio autor. Nesse sentido, também Cabral opera ao contrário do posicionamento ético e político de Cimêncio, que havíamos trazido à colação pelo Subway Life de A. J. Gonçalves; também Cabral observa, vê e capta a vida nos interstícios das cidades, e não há aí qualquer ingenuidade. Talvez a cena mais marcante dessa vertente seja uma sequência de quatro páginas duplas com um bando de miúdos a jogar ao... “aqui vai alho”. Outra sequência forte é aquela em que observamos uma rua (pouco central?) movimentada, e onde uma velha curvada estende a mão a pedir esmola: na primeira imagem (poderíamos adivinhar ser dia?) apenas ela é colorida, e aos poucos a cena vai espalhando a sua mancha de cor (vai "anoitecendo"?) por todo o lado, à medida que passam jovens, pais com carrinhos de bebé, homens solitários, uma mulher que parece ver-nos/o autor/o desenhador/o fotógrafo. Que quer Cabral devolver-nos com esta imagem? A ideia de que aquilo que se passa numa rua do Kosovo se poderia passar nas de Lisboa? Que o silêncio dos miseráveis e a indiferença a que são votados é universal? Que nem tudo brilha de vivacidade e alegria e esperança nesta nova nação? Que está tudo “normal”?
O autor não se coíbe de fazer comentários que podem ganhar contornos de uma mais insistente e aprofundada visão: as ideias que apresenta sobre as fotos no parlamento, a “cena” sobre o Monumento à Irmandade e Unidade Nacional, as reacções dos homens na mesquita e nas fontes, a câmara quebrada na zona de obras, levantam um véu do que se poderia ainda contar, mas que não se explora precisamente por o autor querer ver as coisas com instrumentos que têm mais a ver com as imagens que cria do que com uma estruturação de um discurso verbal e politizado.
Cabral complica então – o que já o fazia antes – as diferenciações entre caderno de viagens, sketchbook, banda desenhada, observações de viajante, etc. Uma outra ingenuidade, portanto, é a sempiterna questão de se inscrever ou não no círculo da banda desenhada uma obra como esta. A questão mais correcta seria, “porque não?”. O que nos impede de ler este livro como uma sequência de imagens e impressões, de leituras e reflexões, sobre um espaço atravessado pelo autor, e o seu si interior, exposto nas imagens que cria? As quatro imagens que mostram em sequência ininterrompida um canto de uma casa velha [e que ilustram este post] fazem-nos perguntar se representa de facto uma observação seguida, se se trata de uma variação do autor colocando vários personagens num fundo que havia desenhado, se se trata de um intervalo dos retratos entretanto apresentados de forma isolada a cada duas páginas, precisamente para reforçar esse ritmo perene.
Outro aspecto ingénuo, e este já atribuível ao próprio autor, é a contínua revelação da beleza presente na cidade, no facto de que as vidas das pessoas continuam, de que não há traços dessa guerra e violência no quotidiano agora observado... Mas que desejaríamos nós? Morre-se, vive-se, é natural que depois de retirados os cadáveres das estradas, que elas voltem a ser atravessadas por um camião de gelados. E os comentários sobre as raparigas sexualiza essa diferença, o que poderá eventualmente levantar algumas questões de equilíbrio político. Atribuindo isso a uma ingenuidade aceitável, jovem, sorridente, não é ela que retira o molde de uma perspectiva genuinamente única, na qual a recompensa não é imediata, mas atingível pelo esforço de uma leitura que se especifique nos seus próprios contornos.
Nota: agradecimentos a editora, pela oferta do livro.

4 comentários:

Anónimo disse...

Excelente!

Dannilo disse...

Desculpe-me a pergunta fora de contexto, mas você tem notícias sobre a série "A Pior Banda do Mundo"?

Há tempos que procuro alguma informação a respeito, e não encontro nada.

E continue com o magnífico trabalho!

Pedro Moura disse...

Caro Dannilo,
A única resposta que posso dar é que ela terminou, tendo em conta o "fecho" (pelo menos parcial) das edições de autores nacionais (portugueses) pela Devir, e o abandono do mundo da banda desenhada pela parte do José Carlos Fernandes. Os volumes que sairam são os que passam a existir definitivamente.
Até uma outra,
Pedro

Dannilo disse...

Obrigado pela resposta, Pedro.

Uma pena saber disso. Admiro muito o trabalho dele.