7 de maio de 2011

The Rise of the American Comics Artist. Creators and Contexts. Paul Williams e James Lyons, eds. (UPM)

Como se disse atrás, estar-se-ia à espera, talvez, que aquela outra antologia apresentasse uma linha de instrumentos mais alargados, objectos mais diversos, mas o que se sente no fim é que possui alguma inércia em relação a uma visão algo delimitada (não “limitada”, atenção) deste território. Pelo contrário, o título completo deste livro apontaria para algo particularmente circunscrito, mas a verdade é que o cômputo das disciplinas empregues o sensibiliza para uma visão bem mais ampla. A preocupação central deste volume é fazer um retrato do desenvolvimento da banda desenhada norte-americana contemporânea, quer na sua realidade mercantil e transmediática, quer na sua dimensão económica, quer na circulação dos seus parâmetros criativos, com consequências políticas e de representação, quer ainda na sua presença e desenvolvimento académico. Este é um livro que, de certa forma, se aparenta com o de Ann Miller, no sentido em que se pode tornar um excelente instrumento de introdução do estado da nação no que diz respeito aos estudos da banda desenhada. Se é verdade que diz apenas respeito à banda desenhada norte-americana, e tem um foco bem mais inclinado para os últimos 20 anos, há muitos artigos que estruturam de uma forma sumária mas excelente os seus desenvolvimentos mais marcantes.
As secções são cinco, e intitulam-se da seguinte maneira: “Marketing Creators”, “Demo-Graphics: Comics and Politics”, “Artists or Employees?”, “Creative Difference: comics Creators and Identity Politics” e “Authorizing Comics: How Creators Frame the Reception of Comic Texts”.
A primeira apresenta três estudos de três estágios consecutivos e inter-dependentes do mercado norte-americana de banda desenhada, tomando igualmente considerações sobre criatividade. Stephen Weiner estuda aquilo que se entende por “graphic novel”, trazendo à baila transformações sociais, desenvolvimentos económicos, de formato e de distribuição, para explicar o ressurgimento, e desta feita com uma consolidação de maior amplitude e segurança, da diversidade de géneros e de leitores de banda desenhada nos nossos tempos (assegurando-se com Bone, Persepolis, Blankets, e Jar of Fools, por exemplo, uma oferta bem abrangente). Julia Round foca particularmente o papel que a Vertigo teve no início dos anos 1990 na ascensão de uma série de produções de qualidade que aumentaram o factor “hip” da leitura de uma banda desenhada com ambições literárias e não só (que incluía protótipos do que seria essa subsidiária da DC, desde o Swamp Thing de Moore et al., o Animal Man de Morrison et al., e depois coisas como Enigma, Hellblazer, The Sandman, The Mystery Play, etc.). as operações a que a Vertigo presidiu não apenas se prendem com o trabalho editorial, protagonizado por Karen Berger, mas ainda com estratégias de estudo do público, oferta de formatoss diferenciados, colocação do produto, e até mesmo de relações editoriais e financeiras com os autores. Chris Murray aborda o contributo da primeira “Brit Wave”, isto é, a entrada de autores tais como Alan Moore, Morrison e Gaiman no mercado norte-americano, seguidos de outros autores como Garth Ennis, Warren Ellis e Mark Millar; prestando atenção às gerações anteriores, com Chris Claremont à cabeça, e a artistas, Murray concentra-se sobretudo nesse autores citados precisamente para sublinhar o facto de que se nota com eles a ascensão do “escritor” enquanto autor a seguir, mais do que o desenhador (operando-se assim uma mudança radical no círculo dessa banda desenhada); a ler em conjunto com o ensaio de Ben Little em Comics as a Nexus of Cultures.
Segue-se uma secção com apenas dois artigos: um que lê as dimensões políticas de um título que está de pedra e cal no centro do mainstream norte-americano, a série Uncle Sam & The Freedom Fighters, de Jimmy Palmiotti, Justin Gray e Daniel Acuña e que, não obstante os esforços do autor do artigo, Graham J. Murphy, nos continua a parecer uma demasiado básica alegoria infantilizada das tensões políticas em operação nos Estados Unidos (em comparação, The Adventures of Unemployed Man é bem mais desenvolto); outro que estuda questões de “crítica, caricatura e compulsão” no trabalho de Joe Sacco. Lido no seguimento de outros dois artigos nos livros da McFarland, este texto de Adam Rosenblatt e Andrea A. Lunsford é competente, mas não traz nenhuma dimensão particularmente inovadora (diga-se porém, em sua defesa, que pelos trâmites de escrita, apresentação e publicação, não podia haver qualquer cruzamento entre estes textos, logo a nossa leitura pode estar a sofrer de “over-exposure” dos anteriores, e seja, portanto, desequilibrada e injusta).
A parte especificamente dedicada às relações entre arte e comércio tem dois textos. O primeiro é de James Lyons sobre uma personagem relativamente obscura, mas que fez furor nos anos 1990, e é de um humor mordaz: Too Much Coffee Man, de Shannon Wheeler. A vida desta personagem num anúncio de televisão, num projecto (abortado) de animação e numa ópera tornam-no um “case study” excelente sobre o trânsito de “bem alternativo” para o de “mercancia”, o que faz todo o sentido se considerarmos a banda desenhada, mormente a alternativa, como uma forma de “capitalismo artesanal” (uma citação que Lyons faz de Dick Hebdige), com todas as implicações que isso tem no relacionamento entre os autores e os interesses comerciais das companhias (das editoras às produtoras de cinema e aos detentores de marcas registadas aplicáveis e vendáveis a produtos comerciais). Concentrando-se quase particularmente na narrativa que Chris Ware criou para a New Yorker (27 de Novembro de 2006) com 4 capas alternativas, David M. Ball estuda as relações que essa criação comercial abriu entre o mundo literário e intelectual dessa publicação com o mundo da banda desenhada, não apenas os circuitos mais alternativos dela mesmo, mas também estratégias comerciais e jogos dúplices que Ware gosta de citar, mas acima de tudo aponta para Ware como um exemplo acabado de uma obra que se inscreve na literatura “modernista”, entendo por essa palavra algo que engloba “dificuldades epistemológicas, ambiguidade moral, experimentação formal e uma conspícua retórica de falhanço literário”, tendo antes afirmado que essas narrativas gráficas modernas apresentam um “contínuo desejo em se dissociarem das formas de mass media nas quais tiveram o seu início” (pg. 106). Não teria sido despropositado ter contraposto esse estudo com o projecto controverso (uma capa recusada) que Ware fez para a Fortune no. 500.
Seguem-se três excelentes artigos em torno da “diferença” (que apenas é operativa no interior de um meio, modo ou linguagem que se prima por continuidades e mesmidades sempiternas, de que a banda desenhada sofre particularmente), que aqui se expressa sobretudo no feminino, inflectindo pela sexualidade. Paul Williams, Joe Sutliff Sanders e Ana Merino apresentam três estudos em torno dos temas das criadoras mulheres, se bem que Merino se concentre no desdobramento étnico “Mulher Latina”, para ler Love & Rockets dos irmãos Hernandez e La Perdida de Jessica Abel, perscrutando as suas ligações (ou melhor, a herança do primeiro no segundo título). Paul Williams analisa cada um dos termos de “contemporary women’s comics” historicamente, questionando o que se pode definir como contemporânea, o que se entende por “de mulheres” e quais os vários formatos/modos/estruturas da banda desenhada em causa, declarando, no fim desse percurso, como “todos os termos na frase ‘banda desenhada contemporânea feminina [“de mulheres”]’ são instáveis, mas atravessando-a está um compromisso em visualizar a experiências das mulheres”. Pensamos ser claro o suficiente, a leitura cruzada destes textos faz-nos entender que qualquer questão, bem estudada, não é de forma alguma monoliticamente estruturada.
A secção final é dedica, no fundo, à recepção social (nos círculos da crítica jornalística e literária, aceitação e prestígio social e artístico, estudo académico e desenvolvimento interno da área, circulação cultural), senão mesmo à possível “canonização” de certos autores e obras, Não surpreenderá ninguém, julgamos, saber que dois dos artigos são sobre o Maus de Spiegelman e outro sobre Jimmy Corrigan, de Ware. Repare-se que não se tratam de artigos sobre Maus (ou apenas isso), mas sobre o seu papel enquanto desencadeador de certos discursos em torno da banda desenhada (artigos de jornais, estudos académicos, abordagens em museus). O primeiro artigo é de Ian Gordon, cujo papel é de extrema importância nos estudos de banda desenhada do ponto de vista da recepção, destacando-se o seu importantíssimo Comic Strips & Consumer Culture, agora disponibilizado pelo seu autor na íntegra aqui. Apesar de muito curto e dedicado a uma espécie de balanço, este artigo é uma excelente adição ao seu estudo, e até como ponto de introdução “B-A-BÁ” dos Comics Studies.
O papel de Maus é de facto inestimável a várias instâncias, e, segundo Andrew Loman, autor do terceiro artigo, e segundo sobre esse livro, “se as suas técnicas estéticas não eram necessariamente mais desafiantes do que aquelas de muitos outros trabalhos, ainda assim a sua rejeição dos mais constantes géneros da banda desenhada da sua época foram muito mais completa, e a sua matéria mais claramente séria” (pg. 211). No entanto, o que Loman quer tornar claro no seu artigo é a justeza das considerações possíveis dessa obra, no seio do seu território específico, o da banda desenhada, e nenhum outro. Pois as mais das vezes, a auscultação desse título e/ou autor (ou eventualmente de outros títulos, como os de Ware, Satrapi, etc.) serve para, de uma penada, denegrir tudo o resto: “Enquanto que os investigadores de banda desenhada podem sentir prazer no estatuto que as antologias [literárias várias que o autor cita, inclusive das famosas Norton] oferecem a Maus, devem sentir porém alguma decepção pela forma como elas enquadram esses excertos” (pg. 213). O segundo artigo desta secção é de Paul Williams é uma “close reading” de Jimmy Corrigan, explorando a questão do racismo presente na complexa e intricada trama da obra-prima de Ware, mas ao mesmo tempo utilizando essa questão como forma de auscultar a natureza e força literária dessa mesma obra.
As primeira, terceira e última secções contêm entrevistas longas com três autores importantes, cada um a seu modo, e com um papel preponderante em relação aos pontos focais de cada parte: Jeff Smith, Jim Woodring e Scott McCloud estão assim também presentes com contribuições que exponenciam as discussões havidas nos artigos, e para mais consubstanciando-as com as suas vastíssimas e marcadas experiências de criadores e agentes de primeira importância.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

2 comentários:

Sama disse...

Excelente matéria.
Antônio, como faço para lhe enviar uma publicação?

Att

Sama

Pedro Moura disse...

Olá, Sama (ou Eduardo Filipe?).
O meu nome não é António, mas Pedro Moura (o "António" é o poeta que cito). Por favor escreva-me para o pedrovmoura + arroba + gmail + ponto + com e trocamos correspondência.
Obrigado,
Pedro