Em 1978, uma das plataformas editoriais do underground norte-americano, a Last Gasp, que utilizaria a banda desenhada para explorar temas relativos à ecologia, ao sexismo, ao racismo, ao movimento anti-nuclear, ao abuso agro-industrial sobre a terra e os seus recursos, o combate à poluição, e outros temas prementes, lançaria uma antologia intitulada Anarchy Comics. Essa antologia não era pautada por qualquer tipologia de géneros, abordagem estética, forma de organizar informação e/ou argumentação, ou até mesmo de regimes de representação e de acção política. Como se depreende de uma noção de anarquia, de resto. Mas o que ela destilava era o humor irreverente e a energia gráfica desses autores.
Apesar de lhe terem antecedido mas sobretudo sucedido publicações, que incluíssem ou não banda desenhada, ou fossem exclusivamente constituídos por essa linguagem artística, para veicular essas lições alargadas, muitas das opções avançadas pautavam-se por discursos expositivos, pedagógicos, e até panfletários. Há, porém, outros modos de apresentar as ideias possíveis associadas a esse termo - que pode, pensamos, ser interpretado de vários modos.
Estando submersos numa sociedade em que a esmagadora maioria dos veículos oficiais de comunicação, e mesmo alguns que se apresentam como mais livres, estão presos a representações ideológicas hegemónicas - no campo da banda desenhada, bastará pensar no modo como são aceites, sem discussão, algumas das suas políticas de representação -, é sempre um gesto de diferenciação encontrar pequenos (apenas no sentido do seu escopo imediato de acção, não numa valorização em si mesma) gestos que procuram outras vias.
O segundo capítulo das aventuras de um grupo dos activistas vegan Os Positivos, embarcados na libertação animal, demonstra que esta série não pretende apresentar a sua doutrina ideológica de um modo expositivo, mas antes através do humor, do exemplo, e até mesmo dos mecanismos ficcionais (ou, quem sabe, auto-ficcionais?). A concatenação de toda uma série de acontecimentos "numa única noite de gáudio" parece querer construir uma epopeia inigualável, mas que bebe de vários sectores, sendo o do humor uma das veias principais.
Em relação ao primeiro livro não há grandes aspectos a acrescentar em termos das estratégias de figuração, composição, e utilização da linguagem de um modo livre. Como declara mesmo o "Bureau of Comix", um painel de críticos desta área criativa, no fim deste volume, que o criticam, esta publicação "não tem história, não tem estrutura, não tem regras, não tem talento, nem tem nada!". De facto, Roadtrip não parece obedecer a muitas regras de género, de exploração psicológica das personagens, mas tem uma estrutura clara: a da própria viagem, um perpétuo movimento em frente, com as várias paragens em cada um dos pontos necessários, para criar os blocos de tensão e narrativa. E concordamos com outro membro desse tal "Bureau" quando este diz que muito provavelmente os autores se estão a divertir muito...
Um dos aspectos importantes daquela antologia citada é a variedade material dos trabalhos. Se bem que essa dimensão não esteja presente da mesma maneira neste segundo volume, ainda assim a sua forma (um pequeno livro de bolso, com lombada), o seu aspecto (capa de papel castanho, introdução de uma segunda cor nalguns momentos significativos) e outros pequenos pormenores paratextuais, apontam a esse mesmo desejo. Para além disso, como se pode ver por esta imagem, há uma outra dimensão de materialidade presente. Ainda que atravesse a tradução gráfica de que o autor é capaz, nota-se claramente a integração das famosas fotografias infames tiradas pelos soldados norte-americanos em Abu Ghraib. Em alguns locais, estas imagens foram transformadas como "testemunhos", mas é preciso não esquecer que estas imagens foram criadas pelo próprios perpetradores, ou seja, não deverão ser vistas como originalmente actos de testemunho e resistência, mas antes como troféus dos carrascos. É muito discutível se Os Positivos se apropriam desta imagem para a desconstruir no interior da sua narrativa, ou se antes a exploração por um mero valor de choque, intensificado quando uma das personagens principais viola sexualmente esse mesmo "prisioneiro". No entanto, esse episódio específico serve para duas coisas: em primeiro lugar, expor brevemente dois posicionamentos éticos sobre o tipo de acções que podem ou devem ser levadas a cabo no activismo de que Roadtrip faz parte, em segundo, para criar uma nova tensão humorística (quando se desdobre que se trata de Mark Kennedy, agente policial que se infiltrava em grupos activistas, e que é responsável por grande parte da imagem denegrida dos mesmos nos meios de comunicação social institucionais, digamos que a situação se inverte contra ele na história).
O livro termina com a notícia da chegada do FMI a Lisboa, o que parece alegrar as personagens, e faz adivinhar os leitores de qual a próxima etapa. Uma vez que a esmagadora maioria dos comentadores e dos políticos em funções aponta à "inevitabilidade" da situação económica e social em Portugal, mas vários factos e discussões mostram que na verdade existem alternativas de desenvolvimento e questionamento, talvez seja nas páginas de fanzines que encontramos algumas possibilidades de resistência ao discurso do mesmo. Nem que seja somente em imaginação.
Nota: agradecimentos ao autor, pelo envio da publicação.
13 de março de 2012
Os Positivos. The Roadtrip # 2. VM (auto-edição)
Publicada por Pedro Moura à(s) 2:34 da tarde
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2 comentários:
Para quem (generalizo: para o curioso que quis saber mais sobre os P+ e daqui seguiu para o nosso site), uma introdução ao que nos move em http://www.ospositivos.com/2011/12/fanzines.html, se bem que o Pedro -as ever- tem aquela capacidade de chegar demasiado perto da nossa zona de conforto para nos deixar desconfortáveis: normalmente as simpáticas pessoas dos cómicos tem tendência a espalhar-se no acessório desta BD. A propósito de "discursos expositivos, pedagógicos, e até panfletários", nos últimos meses tem acontecido em ocasiões encontrarem-se zines dos P+ em certas livrarias seleccionadas perdidos entre livros de BD. Zines gratuitos (e gratuitamente ofensivos) no meio de publicações respeitáveis, algumas por autores mencionados neste mesmo blog. Onde vai este mundo acabar?
Para responder à tua pergunta... Nas mãos do FMI?
Pedro
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