16 de novembro de 2012

Ensaio do Vazio. Carlos Henrique Schroeder et al. (7letras)

Baseado no romance homónimo de Carlos Henrique Schroeder (de 2006), “este” Ensaio do Vazio é um projecto que reúne um conjunto de cinco artistas para criarem uma adaptação em banda desenhada. Esse aspecto colectivo insufla-lhe, logo à partida, uma dimensão pouco usual, mas apenas a sua consideração cuidada poderá desvendar se se trata de uma conquista de novas potencialidades ou se, bem pelo contrário, acaba por criar obstáculos na sua fruição. O aspecto colectivo é multiplicado pelo facto de, editorialmente, ser uma junção entre três casas, a saber, a 7 Letras, a Editora da Casa e a Design Editora. É esta última, pensamos, que terá tido a parte de leão em termos de coordenação, convite e distribuição. (Mais) 

Os autores convidados para esta ideia são quatro autores de banda desenhada, os brasileiros Diego Gerlach e Pedro Franz, e os argentinos Berliac e Manuel Depetris, e uma artista plástica, brasileira, Leya Mira Brander. Uma vez que, infelizmente, não lemos a obra original do Schroeder, considerando apenas um acesso limitado a algumas passagens e recensões críticas na internet, arriscar-nos-íamos a dizer que se compreende ter sido livro que causou alguma celeuma e discussão. O livro acompanha a história de um jovem chamado Ricardo, que nasce numa pequena cidade de província, mas que mudando-se para São Paulo, e estudando artes, conquista fulgurantemente o circuito das artes plásticas (aparentemente tratado de uma forma tipificada, como sendo somente composto de jogos de interesse económico e de embustes intelectuais). Essa entrada abre-lhe um mundo de possibilidades, mas o cruzamento com uma espécie de seita secreta dedicada ao mais violento dos hedonismos, a sua vida percorre caminhos sinuosos pelo abjecto e a transgressão. O seu interesse – particular e explorado pelo autor - por sexo sempre o acompanhou, mas a sua integração nesse grupo permite-lhe atingir patamares de experimentação, limites e riscos bem além das convenções, e chega mesmo a mergulhar nas esferas do assassinato, da violação, da entropia. Seguindo-se, ao mesmo tempo, uma breve trama policial e uma rede intricada de relações humanas, entre uma prostituta-amante, a mulher, e outras personagens.

Perguntamo-nos até que ponto é que haverá afinidades com aquele desencantamento de um Bret Easton Ellis. Afinal de contas, unirá ambos os escritores a eleição de uma personagem socialmente privilegiada – um “mauricinho” (“beto” em Portugal) – que atingindo um nível muito particular de spleen do final do século XX/XXI, encontra uma solução na espiral da abjecção. Mas ao contrário das possíveis alucinações de Patrick Bateman (American Psycho), os acontecimentos na vida de Ricardo corresponderão a uma experiência real, plenamente ancorada na sociedade estratificada brasileira (essa dimensão é também tornada patente). Um dos aspectos que importa sublinhar, desde logo, ainda que óbvio, é o facto desta se tratar de uma adaptação de uma obra literária contemporânea, logo algo que se afasta de uma mera e redutora instrumentalização da banda desenhada como veículo “facilitador” de acesso à literatura (o que ocorre bastas vezes em relação a “clássicos” ou obras que façam parto dos currículos escolares), e possivelmente associando-se à tentativa de energizar a discussão em torno do título, ou ofertar-lhe uma nova dimensão (até mesmo, quem sabe, tentar insuflar-lhe a força para uma adaptação cinematográfica, o que não deixaria ser um outro tipo de instrumentalização deste meio).

Dito isto, a “tradução” em HQ parece-nos em termos gerais equilibrada, quer em termos da manutenção da voz original do escritor quer na exploração das características específicas de cada um dos criadores de banda desenhada. Uma breve observação nas imagens de cada um deles (nas imagens disponibilizadas neste mesmo post) bastará para entender a diversidade superficial estilística, mas apenas a leitura do livro permitirá entender o baixo contínuo. Ainda no que diz respeito a essa diversidade, e a sua directa relação com a matéria diegética, poderíamos argumentar que ela é também sintoma do percurso de Ricardo, como se se buscasse a si mesmo, não só atravessando as proverbiais “fases da vida”, como experimentando várias configurações do si e de inter-relacionamento com os outros, sobretudo a mulher Kátia e a prostituta Joana.

O livro começa com um momento no presente diegético da vida de Ricardo, e depois segue uma estrutura intercalada, em que uma das linhas de desenvolvimento da história se enlaça com breves flashbacks, os quais servem para recontar a “origem” do protagonista, tal como os inícios das suas relações com outras personagens. Cada capítulo, separado pelo típico aparato editorial mas sobretudo pelos trabalhos diferentes dos artistas, reintegra-se no todo de uma maneira simples, mas também permite que se façam leituras singulares em cada um. Diego Gerlach dá o mote, com as suas vinhetas austeras fechadas em torno de personagens cujo espírito parece estar sob o signo da inércia, da apatia e do desencanto. O seu uso da tinta-da-China em traços expressivos e aparentemente de um fôlego, juntamente com as tramas obsessivas e a atenção particular para com os fluidos do corpo humano apenas sublinham essa ideia de enclausuramento. Pedro Franz, por sua vez, parece ter na sua abordagem de linhas ruidosas, e que procuram uma desarmonia propositada e significativa uma excelente forma de explorar não somente as memórias que temos da nossa infância, mas as dúvidas que embrulham ou constituem essas mesmas memórias. A educação sexual de Ricardo, divertidamente conduzida em parte pelo seu pai, é mostrada assim de uma forma crua, feroz, ou mesmo paradoxalmente: um riso de escárnio ou um fascínio pelo abjecto é que o surge nessas linhas. O trabalho de Berliac, que aparenta caracterizar-se por um aturado trabalho de texturas e de poses hieráticas das suas personagens que recordam fotografias de um Doisneau (isto é, a de um “acaso trabalhado”) – e por isso em diálogo com artistas como José Muñoz ou Andrea Bruno -, é empregue para consolidar os confrontos directos entre Ricardo e algumas das personagens que o rodeiam, quase como se se quisesse confirmar em particular essa dimensão do protagonista de Schroeder nessas páginas. Contrastadamente, o capítulo nas mãos de Manuel Depetris (companheiro de percurso de Berliac), que domina uma abordagem dada a aguarelas de cores suaves, apontamentos com outros materiais cromáticos que texturam e vivificam as imagens, uma figuração clara, com bastos pormenores físicos dos rostos das personagens, e uma desembaraçada composição de vinhetas e espaços na representação, insufla sobre todas elas uma acalmia e expressividade que está ausente no resto do livro. Tornando este capítulo numa espécie de mansidão temporária, de enseada no seio do turbilhão, e que serve particularmente bem à rememoração do encontro amoroso, quiçá, nesse momento apenas, genuíno e inocente, de Ricardo e Kátia.


Pensamos, todavia, que a última parte, de Leya Brander, é a menos conseguida em todos os aspectos. O currículo de artista plástica não é suficiente argumento para proteger as fraquezas da sua intervenção, e até parece querer confirmar o preconceito generalista que se examina na própria diegese. Em termos de figuração, ritmo e coerência do projecto parece algo desfasada e, como está no término do livro, levanta questões que acabam desequilibradas. Como imaginam os leitores deste espaço, a última posição do lerbd seria a de conservadorismo estético em relação à banda desenhada, e mesmo considerando que os criadores envolvidos neste livro têm abordagens diversas e, nalguns casos, com contornos mais experimentalistas (como o caso de Pedro Franz), a esmagadora maioria deles utiliza estruturas de composição relativamente consensuais: estruturas ortogonais das pranchas, figuração nítida, utilização ponderada de legendas e balões para a integração de matéria textual, etc. Ora Brander parece optar por um trabalho mínimo de transformação. As suas figuras resumem-se a uma ou duas presenças, de pessoas ou objectos, que fará recordar uma intervenção com carimbos (na verdade, trata-se de um trabalho em gravura). Os textos de Schroeder não parecem ser alvo de nenhum tipo de trabalho transformativo, mas somente de uma colagem – possivelmente da mancha textual original. Atravessando o leitor quatro capítulos que seguem os ritmos mais usuais da banda desenhada, com uma proporção típica entre matéria verbal e imagem, entre unidades de acção e pausas, a chegada, para a conclusão, de imensas manchas de texto com uma intervenção mínima, ilustrativa (num seu sentido redutor), não produz um efeito de fecho feliz. Não só exige mais do leitor, onde este se habituara a outro ritmo mais lesto, como o obriga a mudar de instrumentos de apreciação. Dá-se uma espécie de “desvio”. O que, se nem sempre um aspecto negativo num projecto diverso, neste caso surge como falha no arco composto pelo conjunto.

Uma adaptação desta natureza é merecedora desde logo de uma atenção critica pela experiência editorial e estética que constitui. Existindo outros modelos de adaptação, ora mais convencionais ora mais inteligentes (pensemos em, por exemplo, A Cidade de Vidro, de Auster, Karasik e Mazzucchelli), e projectos em que uma narrativa é composta por partes atribuídas a vários artistas, a delimitação de Ensaio no Vazio poderá apontar a soluções futuras. No entanto, estamos em crer que têm de ser projectos que devem atravessar crivos e controlo editoriais particularmente apertados, de forma a se construir uma coesão, mesmo no interior da diversidade. Isso é conseguido até certo ponto com este volume, sobretudo no que diz respeito à participação de autores acostumados à linguagem diversa da banda desenhada, e que seguramente garantem uma dimensão nova ao romance do autor brasileiro. Apenas o seu fecho surge como desequilíbrio, demonstrando como esta linguagem é como outra disciplina artística qualquer, a qual apenas desvendará os seus segredos e qualidades se houver uma autêntica pesquisa e intimidade com ela.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro e pelas imagens fornecidas.

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