Baseado no romance homónimo de Carlos Henrique Schroeder
(de 2006), “este” Ensaio do Vazio é
um projecto que reúne um conjunto de cinco artistas para criarem uma adaptação
em banda desenhada. Esse aspecto colectivo insufla-lhe, logo à partida, uma
dimensão pouco usual, mas apenas a sua consideração cuidada poderá desvendar se
se trata de uma conquista de novas potencialidades ou se, bem pelo contrário,
acaba por criar obstáculos na sua fruição. O aspecto colectivo é multiplicado
pelo facto de, editorialmente, ser uma junção entre três casas, a saber, a 7
Letras, a Editora da Casa e a Design Editora. É esta última, pensamos, que terá
tido a parte de leão em termos de coordenação, convite e distribuição. (Mais)
Os autores convidados para esta ideia são quatro autores de
banda desenhada, os brasileiros Diego Gerlach e Pedro Franz, e os argentinos
Berliac e Manuel Depetris, e uma artista plástica, brasileira, Leya Mira
Brander. Uma vez que, infelizmente, não lemos a obra
original do Schroeder, considerando apenas um acesso limitado a algumas passagens
e recensões críticas na internet, arriscar-nos-íamos a dizer que se compreende
ter sido livro que causou alguma celeuma e discussão. O livro acompanha a
história de um jovem chamado Ricardo, que nasce numa pequena cidade de
província, mas que mudando-se para São Paulo, e estudando artes, conquista
fulgurantemente o circuito das artes plásticas (aparentemente tratado de uma
forma tipificada, como sendo somente composto de jogos de interesse económico e
de embustes intelectuais). Essa entrada abre-lhe um mundo de possibilidades,
mas o cruzamento com uma espécie de seita secreta dedicada ao mais violento dos
hedonismos, a sua vida percorre caminhos sinuosos pelo abjecto e a transgressão.
O seu interesse – particular e explorado pelo autor - por sexo sempre o
acompanhou, mas a sua integração nesse grupo permite-lhe atingir patamares de
experimentação, limites e riscos bem além das convenções, e chega mesmo a
mergulhar nas esferas do assassinato, da violação, da entropia. Seguindo-se, ao
mesmo tempo, uma breve trama policial e uma rede intricada de relações humanas,
entre uma prostituta-amante, a mulher, e outras personagens.
Perguntamo-nos até que ponto é que haverá afinidades com aquele
desencantamento de um Bret Easton Ellis. Afinal de contas, unirá ambos os
escritores a eleição de uma personagem socialmente privilegiada – um “mauricinho”
(“beto” em Portugal) – que atingindo um nível muito particular de spleen do
final do século XX/XXI, encontra uma solução na espiral da abjecção. Mas ao
contrário das possíveis alucinações de Patrick Bateman (American Psycho), os acontecimentos na
vida de Ricardo corresponderão a uma experiência real, plenamente ancorada na
sociedade estratificada brasileira (essa dimensão é também tornada patente). Um
dos aspectos que importa sublinhar, desde logo, ainda que óbvio, é o facto
desta se tratar de uma adaptação de uma obra literária contemporânea, logo algo
que se afasta de uma mera e redutora instrumentalização da banda desenhada como
veículo “facilitador” de acesso à literatura (o que ocorre bastas vezes em
relação a “clássicos” ou obras que façam parto dos currículos escolares), e
possivelmente associando-se à tentativa de energizar a discussão em torno do
título, ou ofertar-lhe uma nova dimensão (até mesmo, quem sabe, tentar insuflar-lhe
a força para uma adaptação cinematográfica, o que não deixaria ser um outro
tipo de instrumentalização deste meio).
Dito isto, a “tradução” em HQ parece-nos em termos gerais equilibrada,
quer em termos da manutenção da voz original do escritor quer na exploração das
características específicas de cada um dos criadores de banda desenhada. Uma
breve observação nas imagens de cada um deles (nas imagens disponibilizadas
neste mesmo post) bastará para
entender a diversidade superficial estilística, mas apenas a leitura do livro permitirá
entender o baixo contínuo. Ainda no que diz respeito a essa diversidade, e a
sua directa relação com a matéria diegética, poderíamos argumentar que ela é também
sintoma do percurso de Ricardo, como se se buscasse a si mesmo, não só
atravessando as proverbiais “fases da vida”, como experimentando várias configurações
do si e de inter-relacionamento com os outros, sobretudo a mulher Kátia e a
prostituta Joana.
O livro começa com um momento no presente diegético da vida de
Ricardo, e depois segue uma estrutura intercalada, em que uma das linhas de
desenvolvimento da história se enlaça com breves flashbacks, os quais servem
para recontar a “origem” do protagonista, tal como os inícios das suas relações
com outras personagens. Cada capítulo, separado pelo típico aparato editorial
mas sobretudo pelos trabalhos diferentes dos artistas, reintegra-se no todo de
uma maneira simples, mas também permite que se façam leituras singulares em
cada um. Diego Gerlach dá o mote, com as suas vinhetas austeras fechadas em
torno de personagens cujo espírito parece estar sob o signo da inércia, da
apatia e do desencanto. O seu uso da tinta-da-China em traços expressivos e
aparentemente de um fôlego, juntamente com as tramas obsessivas e a atenção
particular para com os fluidos do corpo humano apenas sublinham essa ideia de
enclausuramento. Pedro Franz, por sua vez, parece ter na sua abordagem de
linhas ruidosas, e que procuram uma desarmonia propositada e significativa uma
excelente forma de explorar não somente as memórias que temos da nossa infância,
mas as dúvidas que embrulham ou constituem essas mesmas memórias. A educação
sexual de Ricardo, divertidamente conduzida em parte pelo seu pai, é mostrada
assim de uma forma crua, feroz, ou mesmo paradoxalmente: um riso de escárnio ou
um fascínio pelo abjecto é que o surge nessas linhas. O trabalho de Berliac,
que aparenta caracterizar-se por um aturado trabalho de texturas e de poses
hieráticas das suas personagens que recordam fotografias de um Doisneau (isto
é, a de um “acaso trabalhado”) – e por isso em diálogo com artistas como José
Muñoz ou Andrea Bruno -, é empregue para consolidar os confrontos directos
entre Ricardo e algumas das personagens que o rodeiam, quase como se se
quisesse confirmar em particular essa dimensão do protagonista de Schroeder
nessas páginas. Contrastadamente, o capítulo nas mãos de Manuel Depetris (companheiro de percurso de Berliac), que
domina uma abordagem dada a aguarelas de cores suaves, apontamentos com outros
materiais cromáticos que texturam e vivificam as imagens, uma figuração clara,
com bastos pormenores físicos dos rostos das personagens, e uma desembaraçada
composição de vinhetas e espaços na representação, insufla sobre todas elas uma
acalmia e expressividade que está ausente no resto do livro. Tornando este capítulo
numa espécie de mansidão temporária, de enseada no seio do turbilhão, e que
serve particularmente bem à rememoração do encontro amoroso, quiçá, nesse
momento apenas, genuíno e inocente, de Ricardo e Kátia.
Pensamos, todavia, que a última parte, de Leya Brander, é a menos
conseguida em todos os aspectos. O currículo de artista plástica não é
suficiente argumento para proteger as fraquezas da sua intervenção, e até
parece querer confirmar o preconceito generalista que se examina na própria
diegese. Em termos de figuração, ritmo e coerência do projecto parece algo
desfasada e, como está no término do livro, levanta questões que acabam desequilibradas.
Como imaginam os leitores deste espaço, a última posição do lerbd seria a de conservadorismo
estético em relação à banda desenhada, e mesmo considerando que os criadores
envolvidos neste livro têm abordagens diversas e, nalguns casos, com contornos
mais experimentalistas (como o caso de Pedro Franz), a esmagadora maioria deles
utiliza estruturas de composição relativamente consensuais: estruturas ortogonais
das pranchas, figuração nítida, utilização ponderada de legendas e balões para
a integração de matéria textual, etc. Ora Brander parece optar por um trabalho
mínimo de transformação. As suas figuras resumem-se a uma ou duas presenças, de
pessoas ou objectos, que fará recordar uma intervenção com carimbos (na
verdade, trata-se de um trabalho em gravura). Os textos de Schroeder não
parecem ser alvo de nenhum tipo de trabalho transformativo, mas somente de uma
colagem – possivelmente da mancha textual original. Atravessando o leitor
quatro capítulos que seguem os ritmos mais usuais da banda desenhada, com uma proporção
típica entre matéria verbal e imagem, entre unidades de acção e pausas, a
chegada, para a conclusão, de imensas manchas de texto com uma intervenção
mínima, ilustrativa (num seu sentido redutor), não produz um efeito de fecho
feliz. Não só exige mais do leitor, onde este se habituara a outro ritmo mais
lesto, como o obriga a mudar de instrumentos de apreciação. Dá-se uma espécie
de “desvio”. O que, se nem sempre um aspecto negativo num projecto diverso,
neste caso surge como falha no arco composto pelo conjunto.
Uma adaptação desta natureza é merecedora desde logo de uma atenção
critica pela experiência editorial e estética que constitui. Existindo outros
modelos de adaptação, ora mais convencionais ora mais inteligentes (pensemos
em, por exemplo, A Cidade de Vidro,
de Auster, Karasik e Mazzucchelli), e projectos em que uma narrativa é composta
por partes atribuídas a vários artistas, a delimitação de Ensaio no Vazio poderá apontar a soluções futuras. No entanto, estamos
em crer que têm de ser projectos que devem atravessar crivos e controlo
editoriais particularmente apertados, de forma a se construir uma coesão, mesmo
no interior da diversidade. Isso é conseguido até certo ponto com este volume,
sobretudo no que diz respeito à participação de autores acostumados à linguagem
diversa da banda desenhada, e que seguramente garantem uma dimensão nova ao
romance do autor brasileiro. Apenas o seu fecho surge como desequilíbrio,
demonstrando como esta linguagem é como outra disciplina artística qualquer, a
qual apenas desvendará os seus segredos e qualidades se houver uma autêntica
pesquisa e intimidade com ela.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro e pelas
imagens fornecidas.
16 de novembro de 2012
Ensaio do Vazio. Carlos Henrique Schroeder et al. (7letras)
Publicada por Pedro Moura à(s) 2:55 da tarde
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