Apesar de estarmos a
utilizar para descritivo geral um título em português, como se vê pelas fotos
da capa este é um projecto na verdade em três outras línguas: italiano, francês
e inglês, partindo de um núcleo editorial italiano. Valentino Sergi é, conforme
indicado na ficha técnica, quem o idealizou e é possivelmente quem escolheu os
argumentistas e os artistas, assim como a forma geral do projecto. O livro
aparece como uma caixa de cartão, cintada, no interior da qual se encontram
três fascículos (apenas um caderno, impresso a preto sobre folhas coloridas de
gramagem espessa: azul bebé, amarelo torrado e um rosa com mais ciano), contendo
cada um deles um dos três capítulos ou sub-histórias desta saga. Por ordem, são
eles: Odissea Nera (em italiano,
obviamente), escrito por Alessandro Cremonesi e desenhado por Christian G.
Marra (que é o editor da Passenger); Black
Odyssey (inglês), escrito por Sergi e desenhado por Jorge Coelho; e Noire Odysseée (francês), escrito por Adriano Barone e desenhado por
Alain Poncelet. No entanto, todos os fascículos, estando a mancha de banda
desenhada em cada uma das línguas respectivas, apresenta uma tradução nas
outras línguas no friso inferior. Sendo todo o projecto uma versão da Odisseia, as línguas não deixam de poder
fazer sentido no interior desta matéria diegética, se imaginarmos que por cada
paragem da viagem de Ulisses ele se encontraria com povos de línguas
diferentes, ou dialectos distintos, como o ático, o iónico, o aeólico ou o
lésbico (não é piada). (Mais)
Todo este conjunto reconta a história de Odisseu ou Ulisses, conforme ela é contada no poema Odisseia, mas esta versão permite-se a toda uma série de liberdades criativas que lhe insufla contornos relativamente inovadores. Dizemos relativamente pois este texto homérico já conheceu dezenas, senão centenas de versões, algumas das quais recontando os eventos em torno destas personagens, como o projecto presente, outros tomando a sua estrutura para criar outros textos (sendo os casos de Camões e de Joyce os mais significativos, mas que remontam a Luciano de Samósata!). Uma das melhores, e mais divertidas, descrições gerais da Odisseia, é aquela providenciada por Larry Gonick no seu Cartoon History of the Universe, a saber, a de que este relato épico parece ser feito sobretudo de duas partes principais: uma, que compreende os episódios de maior sofrimento, de batalhas, de perdas, de atrasos ou recuos na navegação até Ítaca, como sendo a parte pesarosa que Ulisses poderia tecer à mulher, para que esta se apiedasse dele, lhe perdoasse o protelamento da chegada e se esquecesse do que ela própria padeceu com a sua ausência; outra, em que mergulha sobretudo nas descrições mais violentas de combates e mortandade, de conquista de tesouros e, mais ainda, de conquistas sexuais, por vezes tórridas, aquilo que melhor soaria numa noite bem bebida de bazófia com os companheiros. Ora Odisseia Negra parece apenas aproveitar os elementos dessa segunda parte, exacerbando-os através de toda uma série de filtros habituais de vários géneros de banda desenhada – de ficção científica, de terror, erótica ou mesmo pornográfica, mangá comercial, comics de acção, etc.
No interior do
território da banda desenhada, o seu cruzamento com outros géneros, tal como a
ficção científica o erotismo, foram alvo de uma memorável versão (por bons e
maus motivos) do final dos anos 1960, com o Ulysses
de Lob e Pichard. É quase seguro que esta versão estaria na mente de Sergi para
a condução deste projecto. Podemos dizer que cada um dos livros toma como
protagonista uma personagem diferente, dando-lhe a voz principal, em diálogo
com outras personagens. O primeiro volume concentra-se na viagem de Telémaco em
busca do seu pai, em diálogo com (possivelmente) Atena (mimando a estrutura do
poema original); o segundo reconta de uma forma brevíssima todas as viagens do
próprio Ulisses, ainda que desmonte a sua própria versão dos acontecimentos
(invertendo a moral, a bruteza, a justeza dos seus actos); o último centra-se
em Penélope, rainha de uma nova Ítaca erotizada e livre, e o seu confronto com
um regressado Ulisses e um filho que tenta aplacar os ânimos aos progenitores
adversários. Apesar dessa relativa autonomia ou concentração em personagens
diferentes, os fascículos estão numerados pela precisa razão que a sua ordem de
leitura deve ser respeitada para que os elementos se encaixem numa lógica
construtiva, moldando um todo.
Os textos são sempre
apresentados em legendas flutuantes, e mesmo falas directas surgem entre aspas,
dando a entender uma só faixa textual, subsumida a um narrador. Mas na verdade
os diálogos navegam sempre entre estas personagens, e nem sempre é fácil
compreender a quem pertence uma frase, não existindo uma disposição física ou
geométrica que nos ajude a discernir a sua distribuição; somente a sua atenta
leitura e interpretação é que atribuirá as falas aos seus falantes, mas essa
amálgama também mima algumas das estruturas originais do poema homérico, nos
quais os diacríticos não existiam sequer, e criando um ritmo textual que o faz
aparentar a uma poesia narrativa fluida. O fecho do texto (o terceiro volume,
escrito por Barone) faz um uso judicioso do texto final – quase ipsis verbis – de Molly Bloom em Ulysses, erotizando o triunfo do amor
nesta pequena trilogia. A mistura dos géneros acima indicados torna-se clara quando vemos duas ou três inflexões por outros territórios mais ou menos familiares. A ideia de uma euro-mangá não deixa de exercer uma influência generalizada, sobretudo na figuração de Marra e Poncelet, sobretudo no que diz respeito a toda aquela escola (bem diversa, atenção, e não um grupo coeso) que emprega uma catadupa de linhas negras expressivas, de Kentaro Miura a Tsutomu Nihei. Os aspectos de acção desta família encontra ainda uma pequena curva na identificação do monstro Cila com o Cthulhu de Lovecraft (no livro de Sergi e Coelho), e a camada de erotismo, ou mesmo pornografia, explícita, contínua, dá a entender a possibilidade de abertura deste universo à tradição dos fumetti gialli, que pensamos exercer algum tipo de predomínio nos elementos inspiradores desta Odisseia Negra e possivelmente no tom geral desta casa editorial.
A estrutura de todos os fascículos segue a mesma estrutura global, com as páginas duplas apresentando imagens singulares, sobre as quais se incrustam um número de vinhetas menores, especificando uma acção, apresentando um pormenor, ou isolando um grupo de personagens. Se bem que as personagens se multipliquem nessa página dupla, naquela técnica de várias acções numa só paisagem reminiscente de, na banda desenhada, De Luca. A figuração destes três autores tem afinidades entre si, mas é Jorge Coelho aquele que, sem dúvida, apresenta uma mais acabada laboração dos seus desenhos. Se Marra e Poncelet parecem usar lápis e grafite como base dos seus desenhos, deixando muito dos seus traços como sombras do trabalho posterior, ambos seguem uma abordagem figurativa algo incipiente, talvez sob um domínio demasiado marcado pela mangá, como vimos, e cuja expressividade dos rostos não é muito diversificada. Pelo contrário, o uso de texturas, tramas e alguma composição de cenas panorâmicas com muitas personagens, sobretudo em Christian G. Marra, revela maior controle. Coelho, por seu turno, mostra como o domínio destas metodologias lhe é não apenas familiar, como fluente. Se bem que neste projecto em particular ele tenha escolhido posições das personagens mais hieráticas, icónicas, quase ilustrativas, isso serve bem o propósito do gigantesco arco que estas poucas páginas constroem sobre a viagem de Ulisses. O desenhador português apresenta um mais aturado trabalho de pormenores das cenas e mesmo na modelagem das personagens, cenas panorâmicas mais espectaculares, e o modo como aproveita a ideia da vinhetas incrustadas para “quebrar” ou “isolar” elementos de uma só imagem corrida, dividir o panorama em unidades de olhar e leitura, ou decompor um movimento, as quais poderiam muito bem servir de modelo de criação desta linguagem artística em particular.
Em termos gerais, este é um projecto curioso, para mais pelos seus contornos internacionais, o seu modo de trabalho editorial alternativo aos circuitos mais comerciais, e à materialidade exigente do próprio objecto. A caixa ainda oferece um ex-libris de uma ilustração tero-erótica de duas mulheres-sereias e uma górgona, numa posição digna da mais clássica Penthouse dos anos 1980. Esta ilustração é constituída por delicadas linhas a aparo, julgamos nós, impressas a vermelho sobre um cartão prateado, dando laivos de, a um só tempo, oferta de luxo e documento passível de estar presente na história apresentada.
A editora tem uma série de outros projectos, e foram-nos dado ver pequenos cadernos de desenhos e/ou ilustrações soltas, intituladas de Passenger Cahier. Um deles é do venezuelano Alexis Ziritt, e que retoma figurações (e até a cor!), as quais, bebendo da tradição dos luchadores, também nos colocam na memória a tradição italiana dos gialli, já citados.
Noutro post falamos de Urlo, de Luca Conca.
Nota final:
agradecimentos a Jorge Coelho, pelo empréstimo da publicação.
2 comentários:
Thank you for your "dissertation"! I almost understand everything even if I don't speak a word of Portuguese!
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Grazie, Valentino,
I reallly hope people can find interest and access your books.
Buona fortuna!
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