Aquilo que pode ser
englobado pela denominação “ilustração” não pode ter, e cada vez terá menos,
contornos espartilhados. Ela não tem de se ancorar necessariamente a textos
prévios nem tem de obedecer a determinadas regras materiais (que, de resto,
nunca foram muito certeiras). Há, porém, gestos que conseguem subverter ainda
algumas das ideias que se poderiam firmar para empurrar as fronteiras em
direcções novas, mais ou menos misturadas com outras disciplinas e categorias
que podem fazer sentido para começar a criar um discurso em torno delas, como
por hipótese “o design” ou “a arte”, mas rapidamente esgotam a sua pertinência
face às experimentações possíveis. Tais são os gestos de Christoph Niemann. (Mais)
Um autor não se vê
obrigado a manter uma mesma linguagem gráfica – quer corroborada por um
pretenso “estilo”, quer por aspectos técnicos, materiais ou de metodologias –
sobretudo quando a sua obra se pauta pela pesquisa conceptual, e pela procura
de soluções imagéticas que se coadunem o mais possível com a ideia em si. Dessa
forma, tudo se lhe apresenta como plataforma conquistável. Niemann é um autor
desse calibre, sobretudo nestes “ensaios visuais” (palavras dele) produzidos
sem uma obrigatoriedade de preencher uma secção específica de uma publicação (tratando-se
de um projecto criado no seio, porém, de um blog afecto ao New York Times), a qual eventualmente obrigaria à manutenção das
tais características reconhecíveis. Vejamos os meios empregues pelo autor: desenho,
claro, mas nem sempre com os materiais riscadores ou os suportes mais
normalizados: há apontamentos a marcador de feltro sobre folhas de Post-its,
desenhos feitos a café, inclusive a mancha do fundo do copo, sobre guardanapos,
pintura a pincel sobre superfícies opacas, giz sobre ardósia, fitas de papel
cruzadas em tapeçaria, construções digitais de pixel art para planear painéis e paredes de azulejos, construções
que empregam típicos elementos gráficos de mapas rodoviários e de outros meios
de transporte, e bonecos cosidos e bordados, peças de Lego dispostas
judiciosamente (alvo de uma colecção própria, com I Lego N. Y.), folhas de plantas colhidas, ou manipuladas ou mesmo
recortadas, pequenos pedaços de massa por cozer, pedaços de fios eléctricos compostos,
consequentemente dispostos sobre uma superfície e fotografados, e ainda
fotografias dos mais diversos objectos (de tesouras a cotão), a que
posteriormente se adicionam elementos gráficos para os antropomorfizar.
Os temas que Niemann
explora são os mais variados possíveis, quase todos fruto da sua observação
quotidiana, ou das suas experiências banais, mas que transformadas por estes
filtros deixam de o ser: desde a obsessão dos filhos pela rede nova-iorquina de
metropolitano (que deu origem igualmente ao seu “picture book” Subway) ao seu amor pelo café e o ódio
por fios e cabos eléctricos, passando por explicações sobre fenómenos físicos
do corpo humano sob a influência da gravidade das crianças a conselhos sobre
como passar o tempo em longas viagens de avião. Trata-se, portanto, do
equivalente gráfico do que se costuma chamar, no mundo da comédia stand-up, de “humor observacional”, se
bem que em muitos momentos temperado pela fantasia, o absurdo ou a mais
certeira das visões, mesmo que isso lance a uma realidade que não pensaríamos
ser descritível de modo lógico (porque é que as meias se separam, porque é que
há sempre um pedaço de massa cozida que escapa à limpeza do tacho, a relação
proporcional da velocidade de uma criança descer um escorrega e a temperatura
do ano). Mas o mais importante a notar, claro está, aliando a descrição de
metodologias e destes temas é que uns e outros se encontram em consonância e
harmonia perfeita. Que outra forma de criar uma megalomaníaca descrição de um
Génesis pessoal senão através da manipulação de massa para cozer? E que melhor
forma de criar elogios ao café senão usar os materiais que ele próprio
proporciona?
Esta aliança entre a
capacidade de observação (ou melhor, de devolução no acto criativo dessas
mesmas observações) e a maneira invulgar de criar imagens – pautada por uma
minimal execução – irmana Niemann com autores como Paul Cox, Blexbolex, Richard
McGuire ou Hervé Tullet. E sobre todos, o sinal de Steinberg.
Em muitos aspectos, recorda muitos dos mitos, contos
ou koan daqueles pintores chineses
que demoram anos nos preparativos e, numa só pincelada, desenham o mais sublime
dos caranguejos ou galos… Mas desenganem-se aqueles que pensam que esse
trabalho reside somente num talento inato incomensurável, ou numa brutal
inspiração divina. Aliás, o autor reserva a parte final desta colecção para uma
secção totalmente inédita dedicada precisamente à explicação do seu processo de
trabalho e o seu dia-a-dia no atelier, revelando como parte da pesquisa, do
processo tem necessariamente a ver com “esforço”, “insistência”,
“perseverança”, “execução”, “busca de soluções a um problema”, e acima de tudo
estar em frente a esse mesmo problema (sob a forma da clássica folha de papel
ou ecrã em branco…).
A relação íntima com a
cidade de Nova Iorque (e depois as experiências em Berlim) – o tom
autobiográfico ilumina muitas das secções, o que complica as noções de série,
ilustração, picture book, livro de artista, banda desenhada, etc. enquanto
categorias inarticuláveis - é por demais visível, e em grande parte é o que faz
o charme desta colecção. É também algo fácil de compreender como sendo o alvo
de interesse para a plataforma original, mas onde pode parecer que se tornaria
um obstáculo ao entendimento de leitores que não partilhem a mesma experiência,
estamos em crer que as linhas gerais das situações que apresentam ora se tornam
nítidas por existirem quadros de referências suficientes para quem lê ou vê
tanta da cultura popular em circulação no mundo ocidental ora são
suficientemente comparáveis com experiências que teremos tecido com as nossas
próprias cidades (ou outras) para fruir desta comicidade.
E acima de tudo, Abstract City é uma composição de elegância.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Imagens da internet, com excepção da capa do livro.
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