A emergência de Lynda Barry está associada a um momento particular dos anos 1980 nos Estados Unidos, que poderíamos descrever como a primeira geração pós-underground, no sentido em que não precisavam de negociar a integração ora no bloco mainstream da banda desenhada mais convencional e comercial (associada a grandes companhias e géneros policiados, dos funny animals aos super-heróis) ora de uma resposta radical que recorria a um igualmente número fechado de elementos para a sua expressão (sexo, drogas e rock’n’roll)… Aos poucos, começavam a surgir espaços de divulgação, trabalho e circulação que não precisavam de seguir essas linhas gerais, e que levariam à emergência da diversidade de géneros e de estratégias visuais e narrativas com o movimento dos alternative comics dos anos 1990. Seria possível associá-la, por exemplo, à geração dos art commix de Spiegelman e cia., na Raw, ou aos New Wave Comics de autores tão díspares como Mark Marek, Mark Beyer ou, o grande companheiro de armas da autora nos primeiros passos de ambos, Matt Groening. O que une também estes autores é a presença na imprensa periódica, mais ou menos alternativa, mas que é muito revelador, desde logo, de uma determinada relação com o tempo, o presente, e um ritmo (e ética) de trabalho que se virá a revelar continuamente nas estruturas e temas da autora.
Sem repetir ou entrar em pormenores biográficos da autora, a sua herança cultural mesclada (filipina, irlandesa, americana), os obstáculos familiares pelos quais atravessou e até mesmo o seu percurso de vida, profissional, académico e artístico, compõem matéria que, não sendo explorado de forma directa - como veremos à frente, existem filtros de transformação pelos quais Barry faz atravessar todos esses elementos - encontram ainda assim um eco na sua obra. Como Kirtley assinala variadíssimas vezes (e discute-se na entrevista), existem momentos na obra de Lynda Barry em que ela parece dirigir-se, em primeiríssimo lugar, a si mesma quando menina, criando um mecanismo imaginativo e emocionalmente complexo e recompensador que a sua arte permite, transformando-se num veículo de diálogo consigo mesma e, assim, de redenção de todas essas dificuldades.

Na esteira de muitos outros autores, mas sem necessariamente ter sido influenciada por eles ou se inscrever na mesma tradição ou géneros, Barry pode ser considerada uma autora que utiliza a banda desenhada como um veículo para as suas ideias em relação ao mundo, mas que se encontram numa relação e perfeito equilíbrio com outras linguagens, tal como a literatura, o teatro e as artes visuais. Até tendo em conta a qualidade das suas linhas, figuras e formas, não será displicente aproximá-la de toda aquela geração de campeões da ironia, tal como Copi, Saul Steinberg ou Jules Feiffer. Sem desculpas, como eles, Lynda Barry tece material adulto, que diz respeito às relações humanas, aos seus conflitos, paradoxos, confusões, enleios, jamais se furtando aos aspectos menos felizes e protegidos da vida humana, inclusive episódios traumáticos que vincam para sempre a personalidade das pessoas - sem nunca cair, porém, no melodrama, no obsceno, ou tampouco na exploração directa: bem pelo contrário, Barry é uma artista que prima pela construção elíptica (ou “oblíqua”, nas palavras de Kirtley), obrigando um grau de atenção e construção imaginativa pela parte do leitor particularmente exigente.
O estilo de Barry - compreendendo não apenas a figuração como o enquadramento, a composição de página, a linguagem plasticamente multímoda e materialmente diversa das últimas obras, a caligrafia, a gestão das vozes e dos tempos narrativos - afasta-a de muitas escolhas convencionais seguidas por um grupo maior de artistas, tornando-a, ainda que não radicalmente experimental, pelo menos uma autora de uma idiossincrasia significativa. Um dos aspectos continuamente revelados e estudados por Susan Kirtley são as “camadas”, não apenas, e muitas vezes, literalmente de material pictórico e narrativo (níveis narrativos, tempos, vozes), mas também de emoções e distorções (daí o subtítulo incluir a ideia de “espelho”, quase sempre distorcido).


No entanto, um dos grandes contrastes que a investigadora assinala entre o trabalho, digamos, “visual” de Barry, que incluiria a banda desenhada, naturalmente, e o “literário” ou “exclusivamente textual”, é o modo como o tratamento das dimensões mais violentas se tornam mais directas. Como escreve em relação ao romance Cruddy, “parece que ao confiar mais num texto, em vez da imagem gráfica, Barry se libertou para explorar o obscuro, o obsceno e o violento” (pg. 100). Em relação ao campo do visual e até do háptico, a atenção que Kirtley dá à textura, e à materialidade da obra de Barry é central - Kirtley faz um uso judicioso dos vários instrumentos e enquadramentos críticos que têm surgido neste campo de estudos, plenamente integrados - , sublinhando de modo claro essas dimensões, que, tal como os scrapbooks estudados (e aqui citados) por Tucker, Ott e Buckler, são “manifestações materiais da memória”.
Em What It Is, a narradora explica como as histórias “não podem mudar a nossa situação, mas podem transformar a nossa experiência dessa situação” (cit. pg. 184). Toda a obra de Lynda Barry, sob o foco de Kirtley, é precisamente um instrumento que permite, ou deseja permitir, que os seus leitores tenham a capacidade de entrar em diálogo com as suas situações de vida, por mais difíceis que sejam, para poderem alterar o modo como as experienciam, e assim, tornarem-se mais capazes de exercer agência sobre a própria vida.
Uma breve entrevista com a autora encontra-se disponível aqui.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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