É preciso não esquecer que a actualização de mitos, lendas e contos é uma constante da história humana, que ganhou variadíssimos contornos e formas. A re-inscrição dessas histórias no interior de narrativas com elementos genéricos fácil e superficialmente identificáveis, como ocorre este El heróe, é apenas um desses mecanismos e não é propriamente novo na banda desenhada. Além disso, estamos aqui perante uma curiosa mistura entre uma narrativa específica, a saber, os actos de um herói particular, Hércules, e um estilo mais generalizado de acções heróicas. O que lhe permite precisamente, a Rubín, de se desligar de uma mais precisa contextualização histórica, em termos de referentes e ideologias, e abrir os episódios e estrutura a toda uma outra tradição, a dos super-heróis. Não é que a associação entre as gestas do classicismo helénico e as ditas mitologias destas outras personagens advindas no século XX seja desprovida, ela mesma, de problemas - de ahistoricização, de simplificação abusiva dos papéis históricos e culturais de cada um dos tipos de personagem, de reificação dos mesmos, etc. - mas há, sem dúvida, matéria suficiente para poder compreender, no seio de um qualquer discurso, afinidades entre as duas produções (como é feito em bastos estudos, de que Classics and Comics é um exemplo).
Além disso, uma narrativa mítica é, de acordo com o psicanalista Christopher Bollas, “uma ordem simbólica onde o real é usado para povoar o fantástico”. É precisamente esse movimento que Rubín faz, retirando objectos, experiências, referências do nosso próprio mundo contemporâneo, e desses universos fictícios dos super-heróis, para tornar a sua ficção ainda mais estimulante. Nesse sentido, não é muito diferente - salvas as distâncias históricas e suas particularidades sociais - de uma larga parte da criação de imagens na história da arte ocidental, onde os episódios da mitologia da antiguidade clássica, das narrativas bíblicas, ou outras, encontravam sempre roupagens contemporâneas à sua própria produção.
É com algum receio de ser entendida como absoluta que empregaremos a palavra “magistral” para falar deste livro. Quer dizer, não é que El heróe seja o melhor livro desta ou daquela lista, ou que possa ser comparado com outros tantos livros, mas no seu espaço muito particular, Rubín demonstra o seu controlo total dos instrumentos que pretende mobilizar para criar estes seu livro. Em termos de ritmo, estrutura da narrativa, composição das páginas, construção das personagens, diálogos, e até de coloração e design, estamos perante uma obra que segue princípios convencionais, mas domina-os com uma elegância assinalável. Se uma imediata comparação pode ser feita com o Ulysses de Lob e Pichard - um aproveitamento de uma matéria narrativa dos mitos clássicos mas com as tais roupagens novas da banda desenhada da sua época (ficção científica e erotismo) -, ou com All-Star Superman, de Grant Morrison e Frank Quitely - que aproveita a estrutura dos Doze Trabalhos para uma revisitação de um Super-homem pré-Crisis -, Rubín transforma este título num dínamo de um conjunto muito maior de referências.
El héroe está dividido em dois livros, ambos com prólogos e epílogos, com um número de páginas diferente, o primeiro volume dividido em nove capítulos e o segundo em cinco, e o primeiro ainda com uma espécie de pré-prefácio, a que voltaremos. Esta divisão é apenas uma forma de poder marcar-se um ritmo à medida dos episódios (os famosos “doze trabalhos de Hércules”, mas não só, nem procurando uma absoluta coincidência entre estes e os episódios), uma imposição de uma estrutura relativamente rígida para se poderem explorar vários registos, saltos no tempo, elipses facilitadoras da grande passagem de tempo implicada, uma vez que acompanhamos Hércules desde a sua primeira adolescência à idade madura, com muitas chamadas a episódios do nascimento, da infância, etc. Esta ideia de grande estruturação repercute-se a outros níveis. O autor batalhou com as capas e outros materiais promocionais, como podem ler aqui. O que importa contrastar entre ambas as capas, porém, é precisamente a ideia de arco narrativo desde logo nelas contido: a relação vertical entre o herói e o cosmos, e a horizontal, associada à indelével progressão temporal, mas com ele as ideias de progresso, queda, ascensão, apoteose, que se mesclam nesta epopeia. Além do mais, todas as páginas de capítulo seguem a mesma composição, quase sempre usando uma imagem aparentemente retirada da arte grega antiga (imaginamos que da cerâmica figurativa, sobretudo, mas talvez igualmente murais) e um pormenor de uma vinheta do texto principal, dessa forma arrolando as raízes históricas e concretas destes mitos en passant.
Mas dizíamos que o que se passa aqui é um casamento dos Doze Trabalhos de Hércules, e uma sua possível biografia mítica, com a matéria narrativa dos super-heróis. Algo em particular? Não. O que parece é estarmos a ler o fluxo essencial, a fonte dessa mesma matéria. Poderíamos dizer sentir ver mais directamente uma pequena constelação de “alta octanagem”, com Jack Kirby e Stan Lee, Jack Cole e Bill Everett, Michael Allred e Paul Pope, Frank Quitely e Grant Morrison, mas na verdade o que brota é quase todo o imaginário providenciado por dezenas e dezenas de anos de produção da Marvel e da DC, das suas “mitologias” próprias, mas também do modo como as mitologias propriamente ditas foram reempregues – acima de tudo com Thor, de Lee e Kirby – ou como matérias mitológicas diversas foram refundidas – com The New Gods e, mais tarde, The Eternals, também de Kirby. Vemos assim como Kirby não deixa jamais de ser o nexo. Mas é mais do que isso. Como já o havíamos dito a propósito de um título do autor norte-americano, Kirby operou como uma voz no deserto, criando a cada “frase” (personagem, comic book, conceito, saga) linhas de fuga que se revelariam mais tarde operativas e prontas a serem permanentemente reactivadas, quer das formas mais naturais ao comércio a que pertencem – os permanentes relançamentos das grandes editoras – quer das formas mais estranhas e condensadas – Final Crisis, de Morrison et al. – quer ainda naquelas obras que, sendo-lhes alheias em termos de propriedade intelectual e comercial, são-lhe devedoras a vários níveis – a obra de Tom Scioli na linha da frente.
Voltemos ao prefácio, para encontrar Kirby por outro prisma. O autor opta por enquadrar a saga de Hércules entre duas molduras narrativas, com um prólogo e um epílogo protagonizados por si mesmo (pouco importa se deve ser lido de forma estritamente autobiográfica ou semi-ficcionada). Na primeira instância, ele surge como criança a ler um comic book (uma famosa e dinâmica cena desenhada por Kirby do Capitão América a combater Batroc) e a imaginar que um dia poderia desenhar tão bem ou melhor; na segunda, já adulto, e depois de terminar o próprio livro que acabámos de ler, comemora com a namorada e demonstra ter conseguido o seu sonho. Nessa cena final há portanto toda uma série de confirmações de glória (profissional, artística, sexual, de vida). Ora, ainda que este mecanismo não possa ser visto como aquilo que na literatura de poderia chamar do dispositivo narrativo, a justificação para contar a história (que ocorre por exemplo em vários episódios d’Os Lusíadas, nas 1001 Noites, em tantos contos de Borges, em que alguém conta a história que é o centro do texto), ainda assim a sua existência como “bookends” tem um papel fundamental, e que pode ser descrito como o acto de tornar visível dois tempos distintos, duas dimensões distintas do projecto: a sua dimensão animada e a da performance. A primeira dirá respeito à própria diegese sobre Hércules, a vida e aventuras desta personagem, que é o âmago dos livros, e aquilo que quase todos os leitores debaterão e pelo qual mostram interesse; a segunda, mais subtil, é a própria fabricação do projecto, é a confirmação contínua de que aquelas pranchas foram escritas, desenhadas, coloridas, compostas por alguém, que não pára de o afirmar… Bom, é claro que nenhum artista seja em que meio for pára de afirmar que cria a sua própria obra já que a estamos a ver, ler, ouvir, etc., obviamente; queremos dar conta porém da tensão que fica visível precisamente pelo autor criar aqueles dois limites, que transbordam para o “interior” da história. Os tempos distintos a que aludimos serão o tempo da história de Hércules e o tempo de produção do autor, que tanto tem a ver com a feitura, física, material, do livro, como com a matéria imaginativa que se arrola.
O autor não potencia propriamente essa matéria, quer dizer, não lhe acrescenta uma nova dimensão que se abrisse a uma inflexão totalmente díspar do que já se encontra na circunferência das suas expectativas. Mas todo este complicado mecanismo serve para fazer introduzir uma outra dimensão, ou então apenas um nome diferente para a segunda dimensão apontada. A metalinguagem. Não poderemos entender El heróe como uma história sobre histórias? Não sob a forma de The Sandman, de Gaiman et al., com as suas fontes eruditas, mas algo que se move no interior da tradição, ou melhor, de uma específica tradição de banda desenhada: comic books de super-heróis mainstream norte-americanos. Porque Rubín torna El heróe tanto numa história - a sua versão - de Hércules como numa sentida homenagem de gratidão ao prazer de ler essa tradição da banda desenhada.
Rubín cria chamadas extremamente diversas a todo esse imaginário, ora com referências directas - Euristeu brincando com bonecos do Super-homem, Batman, Lanterna Verde, ou o uniforme do Homem-Aranha a secar numa corda de roupa - ora com aproveitamentos estilísticos - os uniformes de Hércules, Teseu, Diana, Yolae (Iolau), Hermes…todos com os costumeiros brasões-símbolos das personagens dos comics, e um Atlas muito similar ao Dr. Manhattan. Já para não falar de todos os tropos de acção, equipamento, trocas de palavras, e centenas de pormenores (mesmo os vilões, como Poseidon, Geríon, aquele não-nomeado no início do 2º volume, não seguem tanto representações clássicas como pedem emprestadas as formas a personagens como Starro, o Solaris de Morrison-Quitely, ou o Brainiac de Wolfman). Mas há também outras referências provenientes de outros quadrantes, já que os habitantes do lago Estinfália recordam personagens yokai de Mizuki, e outros, animais antropomorfizados, se abrem a outras tradições.
Além disso, uma vez que o autor incute uma dose de realidade contemporânea nestas histórias, com a introdução de motas, computadores, iPods, ténis, programas de rádio, espadas japonesas, máscaras de luchadores, toda a espécie de merchandising em torno da figura de Hércules, explorada no mundo comercial deste mundo ficcional, permite-lhe brincar, em todo o sentido da palavra, com esses universos de referências. Adicionalmente, e de modo mais importante, Rubín mostra como as crónicas dos feitos de Hércules são feitas pelos aedos locais sob a forma de banda desenhada, podendo assim surgir exemplos de bandas desenhada dentro desta banda desenhada, que remete a objectos diegéticos existentes no seu interior. É o caso preciso das “crónicas da Bética”. E, finalmente, existem curtos episódios - o sonho de Teseu durante o combate com as Amazonas, a breve tira à la Chris-Ware-ou-Seth-homenageando-Schulz após o casamento, numa idade mais madura, com Dejanira - em que Rubín experimenta diferenciações do seu registo visual, para fortalecer a diversidade material e estilística de toda a obra, remetendo mais uma vez ao próprio modo de construção das lendas.
Uma vez que vemos Hércules a cumprir os seus doze trabalhos, que quase sempre envolvem façanhas físicas brutais e espectaculares, ou mesmo combater monstros, é natural que haja aqui um ritmo repetido de acção-desenlace, acção-desenlace relativamente previsível, tal como é previsível que os obstáculos se tornem cada vez maiores. Mas Rubín gere isso de uma forma muito competente, e não deixa de incluir todos aqueles elementos que estão presentes nos mitos que usualmente ou não são aproveitáveis para as suas versões infantis ou são passados ao lado: a saber, os amores homossexuais (aliás, a sexualidade nesta obra é directa, crua, despreconceituosa, sem ser explícita, mas nunca, a nosso ver, gratuita) ou as taras de maior violência de Hércules, que inclui o assassinato - por estar sob hipnose, nesta versão - da sua mulher e filhos (segundo Grimal, Hércules teria setenta filhos de muitas mulheres, e matou mais do que estes nos seus acessos de loucura, ou sem eles). Ou então aspectos mais brutais ainda, como o auto-ferimento que Hera faz no seu próprio clítoris para lançar Quíron na loucura. Esses são alguns dos caminhos pelo quais as economias narrativas e ideológicas dos produtores mainstream de super-heróis norte-americanos, que Rubín homenageia, jamais enveredariam, pelo menos de forma tão franca, e sem depois re-colocar as situações numa moralidade conservadora ou, pelo contrário, rectificadora do preconceito que continua a pautar essas produções.
O autor aqui desvia-se dos seus registos mais intimistas de outras obras, e cria um verdadeiro monumento a estas fantasias desabridas de uma forma magnífica.
Nota: agradecimentos a Jorge Coelho, pelo empréstimo dos seus livros.
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