Tendo recebido este livro, a sua leitura e apreciação depararam-se de
imediato com uma série de resistências, sobretudo visuais, que colocaram em
cheque a forma de o abordarmos. Comecemos de uma forma relativamente óbvia. Este
livro é uma colaboração entre um investigador académico, crítico e editor
literário, Ilan Stavans, e um artista e escritor (sobretudo de literatura para
jovens adultos, mas de uma mão-cheia de projectos de banda desenhada, como os
das aventuras do Rabbi Harvey), Steve Sheikin. A primeira dimensão que
importa salientar é que, em muitos aspectos, El iluminado não deixa de se mover no interior de uma economia de
género muito aparentada a sucessos da literatura de massas como os thrillers
de Dan Brown ou o seu congénere nacional, José Rodrigues dos Santos.
El Iluminado trata da busca, no Sudoeste dos Estados Unidos da América, ou para
ser mais preciso, no Novo México (cuja história e relação com o resto da União
sublinha sobremaneira as várias camadas linguísticas, étnicas, religiosas e
políticas que compõem a sua identidade e aquela mais geral do país e dos territórios
vizinhos), pela comunidade dos “marranos” locais, isto é, os cripto-judeus,
toda aquela população judaica que se viu obrigada pelos reis de Espanha (e,
mais tarde, de Portugal) ou a fugirem dos reinos respectivos ou obrigados a
converter-se ao Cristianismo, para manterem as suas tradições ocultamente.
Recordemos, de uma forma esquemática, e na óptica do tempo, que a Inquisição
não perseguia os judeus, mas sim os conversos, ou aqueles cristãos “judaizantes”,
isto é, que tinham práticas ou cumpriam ritos “heréticos” face aos apostólicos
romanos. No fundo, a conversão dos judeus permitia persegui-los no interior dos
quadros legais e eclesiásticos em vigor, uma vez que já não eram judeus, mas
heréticos. Apenas uma das facetas da ginástica conceptual e legal de que a
Igreja dispunha para levar a sua avante, e que ainda hoje nutre lições para
muitas esferas dos poderes em vigor. Essas acções espoletariam, portanto, uma
diáspora que ainda hoje continua a fazer sentir a sua presença e consequências,
sendo uma das suas dimensões a dos “marranos”. Parte desta população ter-se-á
deslocado no interior dos territórios “mexicanos”, ao ponto de ter sobrevivido,
ocultamente, até aos dias de hoje. Não apenas ocultos dos poderes
institucionais, como, e eis o grande problema, como ocultos de si mesmos, já que
até o descritivo de “judeu” desapareceu, e as práticas dessas comunidades são
vistas, pelas mesmas, como “tradicionais” mas associadas ao Cristianismo geral,
e não a uma religião diferente. A sua “recuperação” tem sido lenta, mas cada
vez mais assertiva, apesar das resistências (novas) quer dos próprios membros
dessas comunidades, quer dos representantes das hegemonias sócio-culturais em
questão, quer ainda dos defensores de um judaísmo homogéneo (as mais das vezes,
os ashkenazi, que quase se impõem como norma de pureza, dogmática e, em algumas
ocasiões, raiando o racismo), em vez de abraçar desde logo a multiculturalidade
do judaísmo (histórico e contemporâneo).
Ora, todas essas linhas e problemáticas encontram-se embrulhadas
neste livro, ainda que no interior de uma intriga relativamente linear. O
título, e grande parte da matéria do livro, diz respeito a uma figura história
real: Luis de Carvajal, o Novo. Esta figura viveu no México no século XVI como
cripto-judeu e, depois de muitas peripécias, fugas e processos, acabou por
morrer num auto-de-fé sem abjurar a Lei de Moisés. Aliás, o seu “testamento” é apresentado
no seio desta história, como uma prova da sua resistência, que pode servir de
modelo aos judeus (ou outras pessoas que daí saibam tirar partido). A intriga
parte de um caso policial em torno de uma outra personagem, fictícia, Rolando
Perez, que em muitos aspectos “repete” os passos de Carvajal, mas num contexto
contemporâneo, nos Estados Unidos - multicultural mas não sem crises. Rolando
compreende que algumas das tradições familiares - como acender as velas à
Sexta-Feira, preparar o pão ázimo, fazer o mínimo no Sábado, etc. - os ligariam
possivelmente aos cripto-judeus de outrora. A única diferença, e este é um
padrão que se repete noutros locais, como em Portugal, cuja história das
comunidade sefarditas ocultas apenas começou a ganhar contornos de regresso à
vida pública no início do século XX, e mesmo hoje se mantém à margem de uma
discussão ou conhecimento público (insiste-se na monocultura católica
portuguesa na esmagadora maioria dos canais), é que estes modernos
cripto-judeus não o sabem ser: as tradições repetem-se mecanicamente mas sem
associação ao seu significado religioso. Essas memórias mantêm-se não na
consciência, mas nos gestos. Ora Rolando foi capaz de ver para além dessa
mecanicidade e, através de alguma investigação e da fantástica descoberta de
manuscritos secretos (de Carvajal, mas fictícios), de aceder a essa memória
ancestral, que põe em movimento toda a parte “policial” de El Iluminado.
Logo, poder-se-ia argumentar que parte do programa deste livro é discutir, pôr
em causa, revisitar, a falsidade das “culturas únicas” de uma nação-país, e de
explorar as complicadas raízes, e os modos de mescla que efectivamente
ocorreram, a nível da religião, da cultura e, porque não?, das próprias línguas
e sangues.
Um aspecto curioso da
narrativa é que o próprio autor, Stavans, surge como ele mesmo na diegese,
enquanto académico (que é) e “detective” (no livro apenas?). Isso permite que possam surgir
largos momentos de exposição (ironizados pelas próprias personagens), a um só
tempo alertando para o seu aspecto maçudo e imposto e justificando-os. Stavans, claro,
não é propriamente um herói. Se, como o Professor Langdon de D. Brown, os seus
conhecimentos históricos e documentais lhe permitem algumas pequenas descobertas
e soluções, estamos longe quer da escala do que esses outros livros e adaptações
fílmicas implicam quer do aparente supernatural poder da personagem mais
famosa. Aliás, são variadíssimos os pormenores da vida quotidiana, banal ou
mesmo aborrecida do professor universitário Stavans, apesar de surgir uma
personagem, uma espécie de arqui-inimigo basilar, na figura de outro professor
académico, rival, chamado - trocadilho propositado, seguramente - Contreras.
Curiosamente, algumas das acusações que Contreras faz a Stavans, como as de
traduzir para Spanglish os livros de Tintin ou entregar-se a exercícios
de uma divulgação mais popular da história e da cultura, correspondem, na
verdade, às actividades de Stavans-o-autor. Não deixa de ser uma curiosa, e não
sem falta de humor, do autor fazer-se publicidade a si mesmo através daquilo
que os seus detractores lhe dizem…
Uma outra dimensão estimulante
do livro é a sua matéria verbal, que se é esmagadoramente em inglês, mistura
muitas expressões ou troços de espanhol, tocando nessa realidade que é o
Spanglish, e não há, obviamente, pela parte de Stavans (que nasceu no México,
mas é “branco”), um esquecimento de frases feitas do iídiche. Muito do humor
que percorre estas páginas está associado precisamente à linguagem, aos
diálogos. É possível que isto levante algum problema para leitores monolingues,
pois não se providenciam jamais traduções, mas essa é parte do seu charme.
Aquela resistência a
que aludimos no início do artigo é, como dissemos, de natureza visual. Basta olhar
os desenhos aqui colocados para perceber parte do problema. Mas como
responder-lhe? Já em ocasiões anteriores falamos do possível emprego da banda
desenhada - enquanto linguagem, estrutura, conceito, etc. - a objectivos que
não necessariamente artísticos. Por exemplo, fitos comunicativos (que todos
conhecemos, desde os panfletos de segurança aérea a recenseamentos eleitorais
ou instruções de montagem). Ou então explorações narrativas que tornam, de
certa forma, secundária a camada visual, reduzindo-a quase a uma inconografia
mínima para “prender os actores”… É o que ocorre em alguma mangá e é o que nos
parece ocorrer aqui.
O desenho de Sheikin é
difícil de julgar. De uma forma quase epidérmica, apetece dizer que é feio,
ingénuo, fraco. E não o deixa de ser, sendo básicas não apenas a figuras, como
toda a dimensão visual: a aplicação da cor, o trabalho de composição, a
perspectiva e elaboração de cenários, a flutuação pouco elegante entre vinhetas
vazias com a excepção das personagens e outras mais cheias mas confusas. A
palavra naif deveria cobrir todos esses aspectos. Quando lemos algumas
leituras deste livro e se fala de uma contribuição para a própria ideia da
“graphic novel”, não compreendemos como é que isso possa ocorrer, a não ser
pela possibilidade de nos desligarmos em absoluto do aspecto visual, o que nos
parece ser um contra-senso na banda desenhada. Será o trabalho de Sheikin desprovido
de validade? Não, claro que não: ele não deixa de ser o veículo através do qual
estamos a ler este livro, esta aventura, estas personagens e os seus diálogos.
Quereremos ou poderemos dizer que El Iluminado é um livro mais fraco
por causa dos desenhos?
Não sabemos o que
responder. Porque as suas forças residem alhures.Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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