A aliança à história recente é algo superficial. A desculpa da visita do Papa Paulo VI em 1967 ao Santuário de Fátima surge mais como fórmula mágica de circunstancialidade do que algo que permita uma exploração mais específica a esse facto; é um gatilho, e caberá ao leitores entender o peso dessa associação. Também a menção às torturas da PIDE, que mereciam um tratamento mais delicado, talvez, uma vez que é ainda um tema fracturante na nossa sociedade, ou melhor, ainda não totalmente discutidas abertamente, serve apenas para demonstrar, precisamente, uma fractura no próprio protagonista, Rui Brás (e cuja solução formal, a página 23, é simples mas perfeita). Aliás, outras chamadas à factualidade histórica surgem como chave de ideias livres e ambientais, mais do que uma exploração mais modelar, activa e sustentada (um camponês a falar de Sidónio Pais em 1967 serve mais de “anedota” por comparação ao que os velhotes hoje dizem de Salazar do que de exactidão sócio-histórica; a estada do padre Bento em Angola serve mais de “origem mágica” do fantástico da história – e homenagem oblíqua ao padre Merrin no Iraque? -, do que de veículo para uma análise dos acontecimentos, o processo de aprendizagem, etc., do padre, que ficam apenas na imaginação do leitor). No entanto, o autor procura espalhar toda uma série de pormenores, sob a forma de canções, objectos, referências, que servem para essa construção basilar.

Os discursos (ou “blurbs”) nos paratextos do livro têm necessariamente que se pautar por princípios bombásticos e hiperbólicos, mas por isso mesmo, caem necessariamente em erros de descrição. Quer o prefácio de Filipe Melo quer os textos na contracapa esgrimam a palavra “inconfundível” para falar do trabalho de Joana Afonso, por exemplo, mas esse é um adjectivo que nada significa em si mesmo em termos de valorização, já que pode haver trabalhos inconfundíveis e péssimos. E utilizá-lo para apontar uma característica figurativa óbvia não fortalece a assinatura a todos os níveis que um ou uma artista podem atingir. O trabalho de Joana Afonso é muito claro, legível e fluído, se bem que haja certos desequilíbrios ao longo do livro, quer em questões simples do dito raccord (o volante trocado na pg. 5, a pistola na mão do padre na pg. 21) quer em termos de representação social (as aldeãs com decotes generosos, inesperados colares de pérolas). O seu estilo cartoonesco e “excessivo”, por assim dizer – os rostos com zonas iluminadas por cores, as desproporções em escorços ou quando a personagem se abandona a uma acção dramática, a travessia por toda a gramática de expressões faciais que são permitidas por esta abordagem –, aproxima algumas das suas soluções de um universo da animação, e de toda a banda desenhada que lhe está associada, mas ao mesmo tempo é o garante de uma certa dinâmica estrutural das composições. Aliás, essa característica é corroborada pela maneira como a artista desenha os limites das suas vinhetas, numa mão ligeiramente trémula, ou faz “explodir” as vinhetas com os objectos cénicos que a ultrapassam, alguns casos de apagamento dos limites, e as quatro splash pages (uma delas dupla) que emprega judiciosamente. O equilíbrio garantido por essa dinâmica vê-se também duplicado pela sua maneira de preenchimento, isto é, se todas as vinhetas têm sempre as figuras das personagens, há muitos casos em que elas flutuam num vazio, por vezes mesmo sem qualquer cor, mas encontrando nos casos de maior trabalho de pormenor, ainda que sempre numa plena liberdade em relação a uma representação estritamente realista, formas de ancoramento sólido mais garantidos: as texturas das madeiras, uma escuridão que avança, os demónios em volutas e ondas… O aspecto “abonecado” leva por vezes a leves desvios em relação à matéria narrativa, que parece ser mais grave – é o caso de alguns demónios que são demasiado “cute”, é o caso do homem que corta o dedo, piada algo gratuita. Ora são todos estes elementos portanto, que não permitem que sejam visíveis – isto é, tal camada visível oculta essa outra camada – as tais zonas cinzentas, os verdadeiros silêncios, as brechas, na sociedade em que estas personagens se movem. E a alegação de que se trata de uma fantasia não seria defesa suficiente.
Filipe Melo fala ainda da “dimensão abstracta e poética” da narrativa e depois da “dimensão abstracta e surrealista dos pesadelos”. No entanto, a abstracção não está presente em nenhuma das imagens, nem num sentido imediato nem num sentido mais elaborado. No que diz respeito ao primeiro, não há, já que mesmo nos momentos em que são traduzidas para imagens os pesadelos de Rui Brás, o relato do padre face a Alzira e o voo dos pássaros que poderiam representar as almas que partem (pg. 31), há uma opção por fazer passar tudo pela figuração, e uma figuração perfeitamente clara e identificável, ainda que sincrética. Numa possível segunda acepção, em que o abstracto seria entendido como insubstancial, um campo de potencialidades, o facto de estar associado a uma história solucionada impede essa leitura. Quanto ao poético e surrealista, também não seguiríamos as mesmas ideias, uma vez que tudo está subsumido ao princípio da narrativa, naturalizando-se nesse mesmo programa.

O enredo, como vimos, é simples, e permitiria aos autores um maior desenvolvimento dramático e minucioso, se fosse esse o fito do livro. Mas também como já foi dito, e mesmo que estejamos a colocar a tónica sobretudo na responsabilidade do escritor, já que essas decisões terão sido sobretudo dele, O baile parece querer mais criar – e consegue-o - uma flecha certeira e célere, do que um intricado novelo. De facto, pela sua leitura breve e leve, pela sua legibilidade e simplicidade, sustentada por uma boa estrutura e uma arte límpida, O baile é na verdade um projecto bem conseguido num campo que se poderia chamar de “banda desenhada para (quase) todas as idades”. E, apesar de tudo o que ficou dito, a forma como traz para primeiro plano particularidades da história e da identidade portuguesas tornam esta uma empresa surpreendente.
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