Pascal Matthey é um autor irrequieto, que não deseja ficar confinado a apenas um território da banda desenhada, experimentando vários caminhos, alguns dos quais podem ser, até certo ponto, entendidos como convencionais e regrados por expectativas mais naturais, como no caso do seu semi-autobiográfico Pascal est enfoncé, mas com muitas linhas de pesquisa gráfica que poderiam ser entendidos como experimentais, como no caso dos trabalhos não assinados no seu fanzine Soap. (Mais)
978 é um projecto que merece, ou precisa, ver o seu processo de produção e criação explicado, para que se possam fornecer algumas pistas de leitura e interpretação, para além da descrição do objecto final. O primeiro aspecto importante a ter em conta é que 978 é, para todos os efeitos, uma perfeita réplica no que diz respeito à materialidade, a um álbum franco-belga clássico: 48 páginas (estando numerada a última prancha), a cores, capa cartonada com guardas, vinco na lombada, este é o perfeito standard industrial “48 CC”, para empregar a fórmula cunhada por Jean-Christophe Menu. No entanto, sendo um projecto criado por um autor de circuitos alternativos e publicado por uma casa de vários domínios da experimentação, logo à partida imagina-se que esta não é propriamente uma procura por uma solução convencional ou que pretende conquistar um espaço idêntico nas prateleiras comerciais (como, por hipótese, a colecção Shampooing, da Delcourt) mas antes algo que pretende comentar sobre essa realidade.
E quando abrimos as páginas e nos apercebemos da matéria do seu interior, confirmamos essa hipótese. Pascal Matthey foi juntando todos aqueles catálogos promocionais a cores das várias editoras comerciais francesas e belgas, distribuídas por livrarias (onde ele trabalhava e as juntava) e cortou as imagens em fragmentos mínimos, quase fazendo eclipsar a natureza original (pelo menos icónica) das imagens, transformando-as em corpúsculos mínimos e passíveis de serem recombinados, relançados numa massa informe mas que contribui para uma possibilidade de interpretação semiótica. 978 é, antes de ser uma banda desenhada, uma banda colada, ou uma banda colada com restos de banda desenhada. A palavra “restos” deve ser entendida aqui de três maneiras: por ser resultado do processo primeiro de alteração das imagens da parte de Matthey, por se referir a todo esse material original como uma espécie de “refugo” provindo da super-produção comercial, a que as grandes editoras se entregam mas numa total impossibilidade quer de que alguém possa acompanhar esse ritmo ou sequer a que se esteja a contribuir sequer para uma qualquer qualidade média (não se está a fazê-lo, claro, a esmagadora maioria do que sai é tristemente medíocre, mesmo que tenha grandes valores de produção superficial), por o próprio gesto transformativo e final deste livro nos fazer olhar em retrospectiva para esse corpo original, agora atomizado, como “resquícios” a varrer e esquecer, concentrando-nos em verdadeiros gestos criativos.
As vinhetas são compostas, então, desses fragmentos. Com algum esforço, podemos entender quais são as suas proveniências gerais, isto é, identificamos os objectos icónicos originais: uma viga de metal, um rosto deu ma mulher, uma bandeira, uma carta de jogar, pilhas de livros, um casaco, um despertador, um pneu, as palavras de balões. (Uma descrição mais completa far-nos-ia tombar na letra da canção “A mudança do macaco Zacarias”, de José Barata Moura). Um grau suplementar de identificação até poderia revelar nomes precisos de personagens, de autores, de livros, etc., mas isso não ajudaria, em si mesmo, à leitura do livro. É antes a sua valorização enquanto compêndio de fragmentos organizados que importa. Organizados pois todas as páginas, sem excepção, apresentam uma grelha, regularíssima, de 2 x 3 vinhetas, impondo portanto um ritmo de leitura e estruturação. Por um lado impõe a ideia de um avanço idêntico da “narrativa”, procurando-se intensidades a outro nível (cromático, das linhas, das imagens que são passíveis de criar através da estrutura do multicadre, ou o conjunto das vinhetas estruturadas, independentes das imagens no “interior”), por outro permite que se compreenda a possibilidade de que estamos perante um ponto de vista fixo, e que seria a matéria informe, ou antes multiforme, em permanente transformação e desdobramento interno, que se desenvolve “à nossa frente”.
E que matéria é essa então? Que formas são essas se a sua identificação objectual não é importante? Bom, é isso o que nos remete à ideia de que 978 é, antes de mais, um comentário sobre a natureza da banda desenhada comercial. O próprio título parece abdicar de uma ideia de individualidade, para apenas citar autotelicamente o prefixo do ISBN.
Mas antes de vermos essa dimensão de comentário, centremo-nos na sua matéria visual própria. A existência de um multicadre, de vinhetas regulares e organizadas, de um objecto-livro, convida-nos à sua leitura. A ausência dos elementos narratológicos usuais - personagens, um eixo espácio-temporal ou uma sequência nítida de causalidade, ou até mesmo de matéria verbal regrada que permitisse uma “track” que ancorasse qualquer sentido - poderá fazer-nos pensar que não é possível fazer emergir um processo semiótico de 978, mas isso não é de todo verdade. Talvez não se possa falar propriamente de interacção, já que não existem objectos nos quais possamos projectar expectativas emocionais ou mentais, com as quais teceríamos um hipotético mundo ficcional, mas respondemos, mesmo assim, a estas formas. Existem elementos suficientes para nos apercebermos de “movimentos” aparentes no interior das imagens, linhas oblíquas, grelhas internas, criadas pela imagens “citadas” (coladas) ou pela própria estruturação das colagens. Estas parecem mostrar um remoinho, ao passo que aquelas parecem mostrar uma espécie de muro de tijolos pequenos. As próprias modalidades da cor parecem exigir que atentemos à forma como responderemos a elas, quer de um ponto de vista estritamente pessoal, quer associando-o a jogos mais socializados. No que diz respeito à primeira atitude, que tem a ver com a natureza humana, é algo difícil de criar tipologias entre as culturas ou mesmo os indivíduos em relação à forma como lerão as diferenças de saturação, modulação e iluminação das cores, à sua pureza ou valores. No entanto, há uma espécie de “família” cromática que emerge nestas imagens, não fossem elas colhidas do seio de uma indústria, que tem dado provas de querer integrar cada vez mais um trabalho sobre cores digitais que, em vez de serem um garante de uma maior diversidade, expressividade pessoal e mesmo experimentação, acabam por ser apenas bitolas comuns e pobres de uma abordagem superficial. Neste sentido, perguntamo-nos se poderíamos aqui aplicar as ideias do “subsemiótico” de James Elkins, que estuda certas marcas pictóricas (e gráficas) abaixo do limiar dos signos pelos seus valores sintáticos. Não tanto numa ideia transcendental de se atingir algo que não seria passível de ser interpretado, mas talvez algo que nos afecte de alguma maneira abaixo de um certo limiar de percepção, ou pelo menos de intelecção. As “pequenas percepções” de Leibniz teriam aqui lugar, seguramente.
Tal como no caso de uma série de outras bandas desenhadas abstractas, então, não se pode dizer que não exista aqui uma narrativa. Se é claro que estão ausentes personagens, já que nenhuma forma se apresenta repetidamente e muito menos assumem características mínimas antropomórficas, não se pode dizer, porém, que não existem certos ritmos e tendências. A primeiríssima imagem mostra o que parece ser uma explosão (um hipotético Big Bang?), que dá lugar a uma amálgama de formas metalizadas, as quais vão sendo processadas, aos poucos, através de cores vivas - azuis, rosas e cremes, vermelhos, até o campo de visão ser atravessado por uma espécie de forma redonda amarela - uma gema?, primeira forma orgânica? - e depois dar lugar a vinhetas totalmente negras (com a excepção das linhas compostas pela sobreposição dos fragmentos colados), e depois uma tempestade de letras, e logo a seguir formas de rosas vivos, etc. A cada virar de página, 978 pede que sejamos cuidadosos com os mais rigorosos e normalizados protocolos de leitura, para que estas transformações e ritmos internos não se desfaçam, apesar do interior das vinhetas parecer permitir uma navegação bem mais livre, caótica e radical.
Ao entendermos essa organização dos fragmentos como tendo nascido da matéria visual de uma certa banda desenhada comercial franco-belga, entende-se então que o que as imagens pretendem é a criação não tanto de uma análise da situação - é para isso que serve a crítica - mas antes uma síntese. E podemos ler cada “secção” - que pode ou não coincidir com as pranchas - como sendo um “tema”, um “tratamento” ou um “estilo” dessa mesma produção. Por isso, podemos ver uma página “conflito físico”, outra “conflito armado”, outra “espaço cósmico”, “e ainda “fogo”, “cabelos fulvos”, “concatenação arquitectónica”, “gases eléctricos”, “horizonte gélido”, “pornografia”, “sangue”, “redução cromática”… O que complica a ideia da “interacção” aventada acima. Por exemplo, as páginas “carnais” ou “para-pornográficas” não têm nenhuma “aliança intrínseca” (para citar Herberto Helder) entre partes anatómicas dos corpos humanos, mas uma vez que todos e quaisquer fragmentos de recortes parecem ser feitos a partir de corpos humanos, essas alianças são ainda mais profundas e arreigadas. Serão então os tons de pele, a maneira como as “formas” adivinhadas se enfiam umas nas outras e se digladiam entre si? Será o acto de adivinhar, vislumbrar, imaginar, ver mal, estas formas corpóreas um contributo central para o afecto pornográfico, para o “frenesim do visível” de que uma teórica da pornografia como Linda Williams fala?
Confirmam essas cenas, essas secções, esses ciclos, então, algumas das “tendências” dessa banda desenhada divulgada nos tais catálogos e brochuras? Ou cria ele próprio, o livro, na sua legibilidade específica, singular, uma outra aproximação a essa matéria? Não une ele todo e qualquer gesto afecto às criações originais a uma espécie de fundo multiforme, de que já falámos várias vezes noutros projectos, uma espécie de domínio cósmico, o Mundo das Mães de Goethe, de onde emergem todas estas formas decididas, isto é, cada um dos álbuns concretos de banda desenhada? Matthey, com 978, é como se levantasse o véu dessas formas congeladas e revelasse o maelstrom que vive sob elas…
Além da apreciação individual desta obra, seria importante ainda dar início a um diálogo entre este livro de Matthey com toda uma série de outras obras com as quais terá afinidades importantes, começando com os roman-collage de Max Ernst, mas tocando nas colagens de Jess, de diceindustries, e em todos os exercícios de détournement sobre a banda desenhada, de Jochen Gerner a Ilan Manouach, ou alguns dos exercícios da Oubapo… Existem diferenças fundamentais entre o trabalhos desses outros autores, a maior parte dos quais está a trabalhar num comentário confinado a um outro autor, ou personagem, etc., e pretendem criar objectos decididos, enquanto que Matthey cria algo mais geral, por isso mais informe, mas não pode deixar de ser pensado na sua relação directa com esse tipo de pesquisa formal, cultural, intelectual e filosófica, que pretende no fundo pensar a própria natureza da banda desenhada.
Parágrafo adicional: havíamos esquecido, por completo, que já havia sido publicado um pequeno grupo de pranchas deste projecto no colectivo Le coup de grâce, da mesma editora. Fica o acrescento, esperando que os leitores façam as devidas associações.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
3 de fevereiro de 2014
978. Pascal Matthey (La cinquième couche)
Publicada por Pedro Moura à(s) 12:42 da tarde
Etiquetas: Experimental, França-Bélgica
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1 comentário:
vim de Angouleme com esse livro nas mãos! beleza de livro!!!
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