16 de fevereiro de 2014

How to Look. Ad Reinhardt (David Zwirner/Hatje Cantz)

Em 1990, o MoMA apresentou uma exposição comissariada por Kurt Varnadoe, um dos curadores de pintura do museu, e Adam Gopnik, jornalista e crítico de arte (e estudante de Varnadoe) da The New Yorker. Essa exposição visava explorar alguns dos modos de comunicação entre as “belas artes” e as suas supostas fontes populares ou idiolectos demóticos, desde os cartoons dos jornais aos graffiti. Essa exposição chamava-se High & Low, Modern Art and Popular Culture, deu origem a um livro monumental e ainda hoje precioso, mas ao mesmo tempo criou toda uma série de controvérsias, mal-entendidos e até mesmo um posicionamento demasiado polarizado (começando pela assunção da designação “high” e “low”), sendo atacada quer do lado dos conservadores da sublime estese quer pelos praticantes da viva diversidade das artes “baixas”. Um desses praticantes foi Art Spiegelman, que criou uma pequena peça, chamada “High Art Lowdown,” que servia de comentário, ou mesmo crítica (review) sob a forma de banda desenhada, publicada na revista Artforum(Mais) 
Quer a atitude crítica quer as escolhas formais de Spiegelman para a construção desta imagem encontrarão as suas raízes, ou parte delas, na obra gráfica de Ad Reinhardt. A colecção aparentemente heteróclita de informações mas que se tornam satélites de uma noção central que deve ser criada pelo leitor-espectador, a distribuição não-axial dessas mesmas unidades imagéticas ou de sentido, a variação estilística no seu interior, o cruzamento entre citações provenientes de uma cultura refinada, intelectual e sensível a complexidades estéticas e a aceitação incondicional de um humor brejeiro e bruto (recordando as preferências de um Adorno pelos extremos, evitando qualquer tipo de middlebrow, mas suspendendo as questões, mais importantes, a nosso ver, que uniriam a suposta esfera autónoma da arte com a da política, do uso individual, etc., que uma teoria como os Cultural Studies viriam rever, e já se debatia em Walter Benjamim), tudo isso faz eco das práticas e concepção histórica e conceptual de Reinhardt nos seus próprios trabalhos “de banda desenhada” sobre artes visuais que criara sobretudo na década de 1940.  

Este livro enorme, e desde logo fundamental em termos históricos, que serve também de catálogo a uma exposição havida no final de 2013 na galeria David Zwirner, reúne todos os “cartoons” – pois essa é a palavra mais exacta que lhes serve de descritivo – que Ad Reinhardt produzira para o diário liberal P.M., entre os anos de 1946 e 1947, mas também para a ARTnews e uma série de outras publicações (um ou dois cartoons por título). Organizado por ordem cronológica, com algumas repetições (a famosa “How to Look at Modern Art in America” repete-se para contrastar, lado a lado, com a versão de 1961), o livro em si tem uma legibilidade exímia, com um texto introdutório, concentrado, e depois seguido apenas das imagens, sem quaisquer comentários ou dissecações excedentárias. É certo que muitas das “piadas” exigirão da parte dos novos leitores um substancial conhecimento da cultura da época, os nomes, as tricas, os jogos de poder, a compreensão de detalhes – por exemplo, um prémio de arte patrocinado pela Coca-Cola não é senão explícito por ter a garrafa icónica pendurada com uma etiqueta “denotando um vencedor de um concurso popular”). Além disso, os cartoons de Reinhardt não são nem tão simples em termos de humor como, por hipótese, os de Peter Arno, nem tão universais em termos gráficos e sensibilidade imagética como os de Saul Steinberg (todos contemporâneos), mas recompensam seguramente aqueles que puderem aceder aos seus significados mais obscuros (ou menos, conforme o nível de familiaridade com esta história).

Como explicita o crítico Robert Storr no seu prefácio (“Diogenes of the Funny Pages”), há toda uma fatia da história das artes visuais dos E.U.A. das décadas de 1930 a 1950 que foi, se não suspensa e esquecida, pelo menos posta de lado em relação ao triunfalismo do Expressionismo. E uma das características que Storr sublinha com afinco, angariando nomes tais como os de Hopper, de Kooning, Guston, Steinberg e William Gropper, é o facto de eles “pertencerem a esta espécie de quase-secreta fraternidade modernista que trabalhavam como pintores e escultores vanguardistas durante o dia, mas faziam uns biscates como ilustradores para a imprensa popular”. Storr explica também imediatamente que por “imprensa popular” se está a referir a toda uma constelação de publicações de tendências políticas de esquerda, tais como a magnífica e importante marco na história da ilustração editorial norte-americana The Masses/The New Masses, e que constituíam uma claríssima oposição a títulos mais famosos, mas igualmente menos politicamente progressistas, como a Time, a Life ou a Fortune. Um outro nome esgrimido nestas breves mas brilhantes colunas é o de Saul Steinberg, se bem que o artista romeno seja visto como alguém que trabalhou exclusivamente no território do desenho publicável/reprodutível, não se lhe conhecendo peso significativo noutra área, como no caso do próprio Reinhardt, cujo nome deve constar de qualquer história de arte que se preze, por mais generalista e mainstream que se trate.

Storr providencia informações sobre as fontes visuais das colagens de Reinhardt, sublinha métodos, temas ou figuras recorrentes (as árvores, a estrutura em vinhetas não-sequenciais), torna clara as suas estratégias de significado, de humor e posicionamento crítico em relação à cultura que se expõe, satiriza ou desmonta nas imagens, estabelece paralelos dessas suas práticas particulares e aquelas de outros artistas com os quais se poderia irmanar quer em termos técnicos e processuais (Daumier e Ernst, por exemplo), mas também lança pistas de interpretação e de implicações políticas e estéticas compreensíveis aos próprios leitores contemporâneos, e não, hipoteticamente, ao próprio Reinhardt, como quando referencia The Simpsons ou Family Guy para tornar clara o aparente paradoxo de termos autores socialistas como Guston e Reinhardt a trabalharem para publicações cujos proprietários eram altos representantes do capitalismo mais gritante (e de sucesso).

Em termos composicionais, as estratégias de Reinhardt não só mostram ser Spiegelman um seu herdeiro (mesmo que parcialmente, mas a navegação da legibilidade de In The Shadow of NoTowers é-lhe muito devedora), como abrem a possibilidade de o associar a outros autores com os quais não teria sequer cruzamentos contextuais possíveis, tais como os “Ecos da Semana” de Botelho (e os herdeiros deste, pelo menos na nossa óptica, como Burgos e Câmara). No entanto, se focarmos sobretudo o “emprego” e a conceptualização dos argumentos presentes nos cartoons, existirão raízes mais recuadas neste tipo de argumentação visual e estrutural, começando com Analysis of Beauty (1753), de William Hogarth, também ela uma composição cravejada de pormenores e informação que a torna uma imagem dialéctica, como desejava Walter Benjamin (citado por Storr, mas não neste aspecto). Esta é um espaço de encontro entre o passado e o presente, entre as faces contraditórias ou mesmo aparentemente antagónicas de um mesmo objecto, uma sobreposição entre algo descritível como “real” – objectos, arte, práticas, um fóssil – e uma imagem “virtual” – desejo, sonho, um fetiche. Nesse sentido, não pode deixar de ser “chocante” – esta palavra também é emprestada de Benjamin, no sentido de uma situação que alerta o espectador para algo que se apercebe, nesse momento, ter estar desapercebido – que Reinhardt tenha construído alguns dos seus argumentos críticos em relação à prática artística, a ideias chãs de “cultura”, etc., não através de uma suposta articulação textual e argumentativa, mas através de pequenas colecções de situações narrativas combinando imagens e textos, legendas e expressões corporais e físicas, citações e colagens, constelações contraditórias de referências e possibilidades de navegação por informações paralelas e complementares, mas não subsumíveis a uma “resposta”. Benjamin falava do “choque” constante no espaço urbano, do assalto aos sentidos pelas imagens em todo o torno, e cada um destes “How to Look…” não deixam de ser assaltos concentrados. Como escreve Storr, estas imagens constituem, no seu conjunto e cada uma delas, “um exercício complexo de crítica sob a forma de uma arenga farsante”.

De facto, apesar do que parecem prometer os seus títulos individuais, não se conseguem nessas imagens descobrir um só sentido ou lição unívoca, mas antes uma pluralidade de posições ou um jogo multifacetado de questões que impede precisamente uma conclusão precipitada ou uma resposta simples à pergunta, ou série de perguntas que é aparentemente colocada: “como olhar x”.

Na verdade, se se tentarem consultar estes cartoons diagramáticos de Reinhardt em busca de uma resposta formulaica, simples e directa ao que parecem perguntar, haverá graves problemas. Por exemplo, em “How to Look at an Artist”, toda uma série de frases é espalhada pelo campo visual, dizendo “arte é x”, com pequenas imagens ou cenas mais ou menos ilustrativas dessa mesma situação. “Arte é imitação” mostra um macaco, “é uma profissão antiga” mostra uma suposta prostituta, mas ainda se vão encontrar os axiomas que declaram ser a arte “um escape”, “um bem”, “uma reflexão”, “divertimento”, “experiência”, “útil”, “brincadeira”, “ilusão”, “conhecimento”, “internacional”, e “imagens”... São essas ideias contraditórias ou aditivas? Estabelecem elas princípios absolutos e universais ou antes mutáveis conforme os contextos sociais e culturais?

Para a P.M., Reinhardt criou uma série relativamente coerente de situações e/ou questões: “como ver uma pintura cubista”, “como ver a alta arte (abstracta)”, “como ver a baixa (surrealista) arte”, “como ver um artista”, “o espaço”, “a conversa sobre arte”, “uma boa ideia”, “arte e indústria”, “a iconografia” e por aí fora, enquanto para outros títulos (a Belfry, a trans/formation, Art d’aujourd’hui, etc.) criou imagens mais singulares, mas sem deixar de empregar muitos dos elementos técnicos, estilísticos e de humor da série mais famosa. Se nalguns casos é possível destilar uma subtil trama narrativa, ou uma ordem sequencial entre cada “unidade” (não propriamente vinhetas organizadas enquanto tal, mas pelo menos nódulos legíveis como situações singulares), a verdade é que a esmagadora maioria das imagens permite uma leitura mais livre, quase aleatória. Apenas um estudo mais aturado, a que não nos entregámos, revelaria a correcção dessa impressão.

Portanto, Ad Reinhardt cria o mais importante serviço na aproximação à arte: cria questões. As quais, recordemos, são diferentes de perguntas, umas vez que estas têm respostas, e aquelas novas questões ou problemas. Com efeito, pode-se imaginar perfeitamente – ou pelo menos nós fazemo-lo – uma forma de ensinar a apreciar e a compreender a arte, inclusive contemporânea, através destas imagens, destas verdadeiras “lições”. Se John Berger criou uma série televisiva (que daria origem ao seu famoso livro), Ways of Seeing precisamente “fora” de um discurso normativo e histórico, mas antes através de um treinamento individual de princípios conceptuais, é precisamente isso o que está em jogo nestas imagens do autor norte-americano. Em vez de encerrar os potenciais novos espectadores da arte com toda uma série de platitudes e obstáculos conceptuais, começando pela ideia de talentos divinos, compreensões subtis acima do comum mortal ou cidadão, ou a necessidade de conhecimento para se aproximar de uma qualquer obra de arte (antiga ou contemporânea, vetusta ou desconhecida, sustentada institucionalmente ou descoberta sem contexto), Reinhardt faz parte daqueles pedagogos, com estes cartoons, que convida a se estabelecer uma relação directa de interrogação com a obra de arte, e uma predisposição, que só pode ser individual, para esperar que a resposta se comece a formar. De certa forma, é uma atitude muito próxima da de Kant, que esperava que a única comunidade humana possível fosse a estética, e que a predisposição à discussão, isto é, a troca de argumentos com vista à entrada nessa comunidade, fosse desde logo um gesto comum, de aproximação, de concordância, e não de criação de campos opostos e de conflito ideológico.

Da perspectiva “dialéctica” aventada acima, ou das contradições inerentes à vontade humana, emerge a necessidade de apontar o óbvio. Estes cartoons são uma produção totalmente diversa da própria prática pictórica de Reinhardt, que desabrochou num abstraccionismo para atravessar várias fases nos anos 1930 influenciado por toda uma série de movimentos e ismos, e desembocar nos seus magníficos quadros monocromáticos da década de 1950. No entanto, essa “separação” só o é em termos imagéticos ou técnicos, já que toda a sua prática, de editor a crítico, reflectia o seu extremo posicionamento sem concessões, passível de se encontrar resumido na sua concepção de que “A arte é a arte. Tudo o resto é tudo o resto”, impedindo-se qualquer trânsito, ou melhor, qualquer promiscuidade ou confusão perigosa entre arte e vida.

As imagens desta edição são reproduzidas com grande qualidade (assim como todo o objecto físico, em termos da gramagem e textura do papel, a encadernação exímia e flexível, a elegância do design), revelando o trabalho de linhas e mesmo das colagens no seu alto contraste de preto-e-branco, “apagando” o velho amarelo das folhas impressas (de que se mostram alguns exemplos, assim como de esboços, colagens originais ou reproduções de “fontes” e “influências”). As margens brancas generosas aumentam a facilidade com o nosso olhar pausa sobre estas “lições do olhar”, e é esse mesmo o seu propósito. Muitas destas imagens surgiam aqui e ali, mas finalmente temos uma edição definitiva e prístina.
Nota final: agradecimentos à Hatje Cantz, pela oferta do livro.

2 comentários:

Francisco Sousa Lobo disse...

Há cerca de cinco anos que ando à espera de um livro assim. Entre os cartoons e as pinturas monocromáticas, nessa distância, há muito por explorar ainda. Obrigado Pedro por nos apontares para o livro, e pelo contexto que produzes.

Pedro Moura disse...

Olá, Francisco.
Sim, um livro sobre os monocromáticos seria mais uma adição. Posso estar em erro, mas nunca vi nenhum, apesar de conhecer boas bibliotecas de arte. Aliás, imagino que uma monografia sobre monocromáticos, que unisse Malevich a Reinhardt a Fernando Calhau, por exemplo, seria uma adição óptima. Didi-Huberman?
Abraços,
Pedro