A capacidade de produção de André Diniz – assim como
a sua possibilidade de edição – não podem deixar de ser fruto de admiração. Em vários
domínios, de álbuns infanto-juvenis ilustrados, com mais ou menos propósitos
pedagógicos ou de entretenimento, de livros de banda desenhada com temáticas
ficcionadas ou exploratórias de um qualquer grau do real histórico do Brasil,
em colaborações diversas ou na pesquisa própria do seu trabalho visual, Diniz
procura diversificar os seus gestos criativos. Os dois livros que nos trazem ao
presente texto são tão diversos entre si como comungam de um tema comum, ou
assim nos parece.
Trabalhos a solo, ambos coloridos, com um mesmo
formato, Homem de Neandertal e Z de Zelito parecem apenas ter essas características
superficiais comuns, uma vez que o primeiro se trata de uma novela mais ou
menos concentrada num pequeno grupo de personagens (uma tribo de Neandartais e
os breves cruzamentos com outra tribo de Homo Sapiens) e a segunda, ancorada na
história do Brasil moderno, espraia-se num retrato social mais complexo. O primeiro
é “mudo”, e o segundo usa de basto diálogo e narração. O primeiro parte de uma
matéria de grande especulação – a origem da arte, as relações entre as duas
espécies de humanóide -, e a segunda tem uma forte inscrição na história. (Mais)
Contudo, pensamos que é possível entendê-los
como sendo o “mesmo” livro ou, pelo menos, como que partilhando uma temática fortissimamente
comum: a da procura do acto artístico. No primeiro caso, temos um Neandertal
aparentemente pouco dotado para as necessidades imediatas da sobrevivência do
seu grupo (a caça), mas particularmente sensível à possibilidade de fazer
marcas gráficas com algum propósito de expressividade e até de poeticidade. A sua
exposição às marcas feitas pelos Homo Sapiens com que se cruza, e que após um
período de resistência quase o “adoptam” como aprendiz, transforma totalmente a
sua visão do mundo e até, quem sabe, a sua natureza interior. No segundo caso,
o Zelito do título parte da sua cidade de Fortaleza para tentar a sorte enquanto
ilustrador na capital, nos jornais, mesmo que isso seja um sonho que o opõe à
vontade do pai em que ele siga uma vida mais normalizada e social e
economicamente mais segura.
Curiosamente, nenhuma das personagens é
particularmente dotada para esse seu sonho, nem sequer chegam a conquistar o
papel que sonha vir a ter - o de artista, desenhador de cavernas num caso,
ilustrador de jornais no outro. Ambos os livros são sobre perspectivas goradas,
ilusões perdidas, sobre um objectivo que não se alcança, não somente pelos
obstáculos externos – as condições sociais (ou, no caso do Neandertal, biológicos
mesmo?), a vontade dos outros – mas pelas barreiras criadas no interior de cada
um. É como se André Diniz quisesse demonstrar que apesar das conquistas a nível
artístico têm se seguir um caminho de rigor e ética do trabalho, do esforço e
da dedicação diária, há ainda assim um qualquer ingrediente mais místico,
intrínseco ao indivíduo, que pode ou não ter o nome de “talento”, mas sem o
qual os esforços, por mais hercúleos que sejam, ou a vontade, por mais
expressas que elas sejam, não são pasto suficiente para que medre e resulte na
satisfação do sonho.
Além do mais, as matérias artísticas em causa –
pintura parietal pré-histórica, ilustração de imprensa – poderão tornar ambos
os livros numa mais ou menos velada reflexão sobre a actividade que está em
causa no próprio acto de criação da banda desenhada, ou até o campo ontológico
e a historicização desse campo (como o prefácio de Paulo Ramos, num dos livros,
aponta).
Está hoje em causa a ideia de que terão sido
apenas os seres humanos (Homo Sapiens) a criar arte, uma vez que dados
arqueológicos, e novos métodos, e mesmo processos culturais de interpretação da
antropologia e paleontologia, apontam para a possibilidade de que o Neandertal
terá dedicado parte do seu tempo à fabricação de objectos que não de uma
imediata necessidade de sobrevivência, e evidenciando, tal como noutros
comportamentos, um qualquer vislumbre de uma ideia de futuro, de longo prazo,
quem sabe mesmo de vida fora do âmbito a mortalidade. Em Homem de Neandertal,
André Diniz coloca parte da “descoberta” na influência directa do Sapiens sobre o Neanderthal, mas o livro foca sobretudo os mecanismos interiores
dessa personagem mais “selvagem” à medida que o seu contacto e actos de arte a
alteram. A inexistência de qualquer tipo de texto verbal leva a que o leitor se
concentre particularmente nesses mesmos gestos, conflitos e descobertas, todos
veiculados visualmente de um modo claríssimo.
Quanto ao segundo livro, a narrativa é mais
pormenorizada. Nascido na Fortaleza, Zelito tenta a sua sorte na cidade do Rio,
num momento de “combustão” política. A República encontrava-se a braços com uma
tremenda crise de saúde pública na capital, em que as medidas draconianas de
vacinações obrigatórias de Oswaldo Cruz contra a febre-amarela levariam a
distúrbios públicos muito graves. Associadas que estavam com campanhas de
saneamento, despejos, expropriações, demolições de “cortiços”, reurbanização,
mas logo depois também com leis abusivas contra direitos civis (proibição de
casamento caso não tivesse o boletim de vacinas em dia, por exemplo), e depois
envolvido numa tentativa de golpe de Estado militar, os diversos factores
contribuiriam e convergiriam nessa situação explosiva. Este acontecimento de
1904 é conhecido como a Revolta da Vacina, misto de ignorância do povo,
incapacidade do governo em comunicar a necessidade dos gestos, prepotência do
poder político, e ganância de outras esferas. E é o pano de fundo histórico e
real que serve para a viagem pessoal de Zelito, cujo progresso de aprendizagem
é, na verdade, negativo, como aventámos acima.
As mais das vezes, os autores optam por
estruturas narrativas relativamente clássicas, ou até por fórmulas, de maneira
a garantirem o sucesso da suas histórias. Não é que André Diniz abdique de uma
estrutura expectável (linearidade, causalidade, etc.), mas em termos de
construção de personagens, as escolhas do autor em ambos os livros remam contra
a maré. No caso do neandartal, estamos desde logo perante uma personagem que
mostra ser inepto para as funções que deveria cumprir. O retrato daquela
civilização pré-histórico é brutal e cruel (aos olhos do homem moderno), mas
apesar disso, e mesmo na óptica da projecção de simpatia que um leitor possa
ter hoje pelo “artista”, o protagonista surge como alguém de fraco, patético e
o seu destino não é surpreendente.
Zelito não é uma personagem simpática, sequer.
Não é sequer uma questão de ser tratado como ser humano com as suas
imperfeições, o que é uma estratégia relativamente habitual. É mesmo por
revelar traços de personalidade negativos: é mesquinho, interesseiro, nada
humilde, descambando mesmo no total desrespeito pelos outros, sejam a namorada,
o pai, os seus colegas de trabalho, e declinando no crime final, para o qual
não pode haver qualquer justificação. Mas apesar dessa construção de “falhado” –
isto é, não é a construção de Diniz que é “falhada”, bem pelo contrário, ela é admirável
para que estes personagens surjam como “falhados”, “frustrados”, “desarmados”
-, as narrativas em si são admiráveis no que diz respeito à simplicidade com que
erguem de imediato os seus respectivos contextos culturais, implicações
sociais, e redes de relação interpessoal.
Em ambos os casos, Diniz opta por uma abordagem
ultra-estilizada, que já lhe é reconhecida, com toda aquela série de “excrescências”
gráficas que, sendo os elementos tipicamente simbólicos para representar
movimento ou emoções das personagens, pelas afinidades geométricas que têm com
outros elementos do seu entorno, tornam as construções do autor particularmente
paradoxais, no sentido em que têm tanto de dinâmico como de icónico. Isso
oferece às imagens uma natureza muito própria, que pode sem dúvida ser
associada (como quis um leitor atento dos livros anteriores de Diniz, neste
mesmo espaço) a certas culturas gráficas populares brasileiras, como as xilogravuras
da literatura de cordel, por exemplo. Dessa forma, é como se fosse um bom
veículo para abordar precisamente assuntos que são de uma extrema pertinência
para com a realidade histórica, mas também contemporânea, brasileira. No que
diz respeito à ressonância com os dias de hoje, decerto que não será inocente o
tratamento e representação que o autor opta por seguir para falar da Revolta,
mostrando mesmo numa cena um eléctrico virado e ardendo nas ruas, como se
pudesse servir de imagem especular e histórica dos “mesmos” sentimentos e
acções em São Paulo a propósito do aumento dos transportes (outro factor que
apenas serviu da proverbial gota de água para toda uma série de
descontentamentos).
No entanto, em grande diferenciação com Morro da Favela, Diniz não apresenta as suas imagens num preto-e-branco
de alto contraste, mas sim com as cores digitais, suaves e matizadas de Marcela
Mannheimer. Não há qualquer procura por efeitos naturalistas, mas bem pelo
contrário, uma pesquisa por tons e jogos complementares que respeitam, em
primeiro lugar, as próprias figuras, elevando-as a cifras de alta legibilidade,
mas também uma possibilidade de criar nódulos simbólicos em cada “parte” das
histórias respectivas. A paleta é relativamente mais reduzida em Neandertal, o que não deixa de ser
expectável pela sua integração num ambiente natural, numa narrativa contida, e
associada às condições básicas e primitivas da vida dos seres humanos, em
contraste com a novela de Zelito, que
implica deslocamentos significativos de paragens geográficas, contrastes entre
as zonas do Rio de Janeiro e os brutalmente diversos humores pelos quais o
protagonista atravessa.
A “biblioteca” de Diniz é já vasta, mas, pelo
menos com estes dois volumes, ela é humanamente diversa também.
Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta
dos seus livros.
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