A leitura agora, na idade adulta, tanto revela (ainda!) de novo como recupera as impressões antigas.
Escusado será dizer o
papel fundamental que a revista Tintin
teve para toda uma (ou mais) geração, que a tornou o "centro" da sua
aprendizagem da leitura da banda desenhada. Esta experiência não é partilhada
por todos os leitores, evidentemente, nem os que vinham de antes nem os que
vieram depois, cada um com as suas particulares inflexões e circunferências de
leitura. Surgindo em 1968, é algo fácil agora associá-la a uma hipotética
abertura política e social operando no país (a dita "Primavera
Marcelista"), mas isso seria abusar da sobreinterpretação de
circunstâncias históricas que não ditaram o projecto da Bertrand. No panorama da banda desenhada da época, a Tintin, no entanto, significaria várias
novas frentes. Tornando-se quase de imediato uma concorrente d'O Mosquito, a qual, apesar de ter
atravessado vários formatos, vinha desde 1936 e sobreviveria à própria Tintin, e herdando estruturas estilísticas
e formais da Cavaleiro Andante (1952-1962),
no sentido em que publicava, em média, duas páginas de cada
"aventura" ou "série" nos seus números semanais, a Tintin contribuiria para a criação de
uma ideia muito forte de toda a banda
desenhada.
Em
primeiro lugar, a sua superfície: a qualidade do papel do miolo, e das capas, a
impressão a cores quer da capa quer do interior, tudo progressivamente
melhorando, era algo de vistoso e bem diverso dos anteriores projectos. Numa
banca onde se venderiam os "formatinhos" Aventuras do FBI, Xerife,
Texas Jack, a colecção Condor, os
"gibis" da EBAL aqui e ali, ou a revista Mundo de Aventuras, cujo material era preferido por muitos leitores
mas era a preto-e-branco, o relativo luxo do novo título marcaria a diferença. Depois
era a junção de material diverso, na verdade de três frentes editoriais
distintas e concorrentes entre si (as Tintin,
Spirou e Pilote, cada qual com a sua "inscrição" estética e social
bem singular), agregadas pelos esforços de Diniz Machado, que criaria essa
amálgama que depois seria reconhecida como banda desenhada
"franco-belga", e que António Dias de Deus apelidaria mesmo de invasão. Se bem que muitas das
séries-chave já circulavam anteriormente, nomeadamente na Zorro, e a de Hergé mesmo desde o Papagaio, foi a Tintin a
principal responsável pela consolidação cultural desse território (mesmo que
tenha publicado igualmente material norte-americano; de Will Eisner a Gil
Kane). Se for certa a ideia de que o
próprio galicismo "banda desenhada" terá nascido por iniciativa de
Vasco Granja, no seu trabalho da revista, tanto ela como as expressões "continua"
e "dos 7 aos 77" (imitando, naturalmente, as fontes francófonas) marcariam
essa cultura, que de certa forma conduziria o mercado nas próximas décadas,
para mal ou para o bem. A verdade é que se foram decisivas para a
"formação" de muitos leitores e leitoras, inclusive o presente,
também significaria a consolidação de uma certa cegueira para outro material
que não o franco-belga da parte das maiores editoras (o que ainda hoje se
verifica), alguns certames e festivais, e enquadramentos de apreciação. Outra dimensão é que contribuiria para o cada vez mais diminuto espaço
para autores portugueses.
Em relação a este último
ponto, a Tintin, como outros títulos
da sua época, não foi excepção nesse espaço diminuto. Já não era a Cavaleiro Andante, e ainda não seria nem
a Visão nem a Lx Comics. Isto é, não se pode falar de "autores (portugueses)
da Tintin"... Se Vítor Péon teve
uma participação semi-regular nos primeiros meses, rapidamente sairia. José Ruy
teria uma presença mais ou menos regular, muitas vezes com páginas semi-publicitárias,
mas também era um valor que vinha de outra geração. O espaço reservado para os
portugueses seriam algumas das páginas a preto-e-branco que abriam e fechavam a
revista, introduzidas mais tarde e obviamente uma oportunidade económica para
autores nacionais; e talvez mesmo uma outra forma de entender os
"mal-vestidos" que Machado terá empregue em relação a alguns dos
novos talentos que ali tentavam a sorte (segundo esta entrevista a Relvas).
Nessas páginas encontraríamos histórias de novos autores, ora curtas ora um
pouco mais alongadas, de nomes tais como Mário Jorge, António Serer, Pedro
Morais e Fernando Relvas.
Mas
Relvas apresentava material algo diverso. Se as histórias de Serer pareciam prometer "aventuras" no
interior dos géneros consabidos, através das construções e fórmulas habituais,
e Morais e Jorge contribuíam com breves anedotas, visuais ou outras, Relvas
criava ambientes bem mais envolventes, ainda que ambíguos. Talvez seja mesmo a
sua ambiguidade que representa a força dessa envolvência, sobretudo na duas
histórias reunidas neste volume da Polvo. O facto de Relvas ter criado muito trabalho para a Tintin, tornando-o no fundo "da
casa", é também decisivo nessa imagem.
Este
pequeno livro da Polvo está na continuação do anterior da El Pep, e esse no da ASIBDP (L123), na possibilidade, algo limitada entre nós, da recuperação da
história e memória da nossa própria banda desenhada (assegurada nos anos 1980
pela Futura em relação aos autores da Cavaleiro
Andante, e depois apenas marcada por dois ou três gestos editoriais). Neste caso, reúne duas das três histórias que Relvas criara para a Tintin num registo a que podemos
apelidar de "ficção científica", algo afastado do humor corrosivo do Espião Acácio, do olhar para com um
certo descontentamento urbano de L123
e Cevadilha Speed (ambas obras
percursoras do que seria o "pathos" da banda desenhada alternativa
global dos anos 1990), mas também ainda não armadilhado pela corrosão punk de Sangue Violeta, ou as aventuras semi-patéticas
(no bom sentido da palavra) de Carlos Starkiller. A "carreira" de
Relvas é longa, complexa e variada em termos narrativos, estilísticos e de
géneros, tendo João Miguel Lameiras criado um excelente percurso e perfil,
aqui. A terceira história, que se intitulava "Io", se não estamos em
erro, seria interrompida com o término da própria Tintin. a par e passo com "Kris 3", não incluída neste volume.
Este volume tem então
dois relatos, "Rosa Delta Sem Saída" e "Slow Motion", as
quais não têm qualquer relação diegética entre si. Mesmo em termos
estilísticos, figurativos, cromáticos e de composição são algo distintos. Na
primeira, os corpos plásticos, o alto contraste e a iluminação não-naturalista,
as manchas de tinta que parecem vivas nalguns momentos [ver última imagem do post], a quase total ausência
de cenários em longas sequências, os grandes planos isolando rostos e olhares,
uma página em particular (a "33" da história [que aqui mostramos]) que desregra o olhar ao
concentrar-se nos objectos e rostos, fará recordar o Comès de Silence (o qual trabalhou também a
ficção científica, com Ergün), mas
sem que essa referência se torne um espartilho. A segunda revela uma vontade em
trabalhar mais linhas detalhadas, tramas a tinta, anatomias mais precisas e
clássicas, e cenários, maquinaria e ambientes entre o maquinal e o orgânico [ver a primeira prancha, acima],
quiçá informado pela ficção científica francófona da época, com a Pilote e a Métal Hurlant [na qual quase chegou a participar], ou mesmo a (A
Suivre), com autores tais como Mézières, Moebius, Paul Gillon, entre
outros. Se em termos gerais de composição ambas as histórias são próximas, com
pranchas semi-regulares sem grandes gestos radicais de quebrar as grelhas
usuais, "Slow Motion" usa linhas manuais e irregulares para delinear
as molduras das vinhetas, e emprega sub-divisões mais marcadas, de forma a
revelar uma fluidez maior, e que se coaduna com a natureza dessa mesma
narrativa.
As histórias têm
tamanhos bem distintos (46 pranchas versus
18), e uma análise cuidada das condições de trabalho da época poderiam ditar
algumas regras de interpretação ou compreensão das suas naturezas. Mas a
decisão de criar histórias que evitam fórmulas, quer de papéis das personagens
quer das estruturas narrativas é totalmente responsabilidade do autor, e é
também o texto que se nos é oferecido, obrigando-nos então à sua leitura. Quer
num caso como no outro, não estamos perante histórias "claras", ainda
que seja perfeitamente possível criar uma sinopse ou resumo de ambas. Todavia,
essa é precisamente a questão: o mais importante das histórias não é simplesmente
a sua trama - a fuga de Rosa Delta do ambiente opressor da colónia espacial
(com laivos de Bradbury e Huxley), a "venda" de um agente a um grupo de
interesses diferentes de onde parte -, o que depois nos permitiria dizer se era
"bem contada" ou "legível", mas antes a forma como ela nos
permite compreender, de forma lenta até, como se tecem as relações e tensões
entre as personagens. Isto é, a ficção científica de Relvas estará menos
concentrada no "plot", nas "acções", na "resolução
final" do que numa certa desenvoltura emocional, intelectual e até
político-social das personagens nos seus "mundos" respectivos. Podemos dizer que há uma especialização incomum,
como no caso do senhor Farad, num "movimento lento". Nesse sentido, não há dúvida de que Rosa
Delta estava antes do seu tempo.
Em grande parte isto
deve-se ao facto de Relvas abdicar totalmente de momentos de exposição. Isto é, e talvez devendo-se à
economia de produção da altura (não existindo propriamente nenhum sinal de que
tamanho a história poderia ter garantidamente, ou que viria a ser editada em
álbum permitindo outro tipo de circulação e remuneração ao autor; etc.), o
"universo ficcional" não é explicado, nem existem personagens
"ignorantes" que permitem a outra qualquer expor verbalmente os
mecanismos da sociedade em questão. Em "Rosa Delta Sem Saída", uma
conversa entre políticos num salão e dois técnicos trabalhando numa desolada
paisagem, acompanhados por imagens de várias naturezas (diegéticas,
interdiegéticas, etc.), chega para estabelecer o cenário, tipicamente
"pós-apocalíptico" que lança a humanidade não apenas às estrelas como
numa sociedade fechada e totalmente disciplinada pelo trabalho, regimes de vida
e de saúde mental. Não admira portanto que os psiquiatras possuam um poder
particular, quer de controlo societal quer de libertação revolucionária. Arc-Kappa
é o principal psiquiatra, e aliado de Rosa-Delta, e não apenas a sua fisionomia
é a do autor Relvas, como se chega mesmo ao ponto em que a personagem diz ser o
"autor da história", no seu momento de maior controlo. Poderemos ler
esta história, portanto, também como exercício metatextual? No caso de
"Slow Motion", o nível de obscuridão é ainda maior, começando com a
estranha língua sintética (que fará recordar aos leitores dos
"clássicos" a língua do século LI em A armadilha diabólica) e todas e quaisquer informações trocadas
verbalmente entre as personagens, e que levaria a uma bateria de perguntas da
parte dos leitores: o que é um BEP, o que é o froz, qual a função dos Sintz,
como se atinge o terceiro grau?
No entanto, se pensarmos
que não pestanejamos hoje, pelo menos nos contextos apropriados, ao pedir para
"ligar o ar", "conduzir-nos a casa", "baixar o
ficheiro", "ligar ao pt", etc., compreenderemos que essa é uma
linguagem perfeitamente banal junto
àquelas personagens, e é como se o leitor os estivesse a escutar sem o seu
conhecimento. Menos do que uma construção fictícia para nós, é como se esse mundo existisse (mesmo) independente da
possibilidade da sua leitura por criaturas do século XX (e agora XXI, o qual
parecia distante e cheio de maravilha para os jovens leitores do século
passado). O que nos leva a estarmos menos preocupados com questões tais como
"o que sucedeu até chegarmos àquela
situação (futura)?", ou "em que medida é que esta ficção ilumina a nossa sociedade?", e nos
concentremos mais na forma como as personagens principais, Rosa Delta,
Arc-Kappa, o Sintz Farad, negoceiam as suas relações profissionais e emocionais
com as demais personagens. Aí encontraremos traços relativamente clássicos da
banda desenhada moderna: "não-heróis" inconformados, solitários, com
um entendimento bem distinto do dos padrões sociais vigentes, mas ao mesmo tempo
algo impotentes face à inexorável estrutura em que se inserem. Se "Rosa
Delta" se foca num hipotético futuro que lhe era próximo (não deixando de
ser curioso encontrar agora traços de uma certa arqueologia do futuro, como o
uso do Space Shuttle, a base anelar, e computadores arcaicos), o seu foco terá
a ver com as usuais preocupações do impacto ecológico das explosões
populacionais (como em Make Room! Make
Room!) e o uso indevido da energia nuclear (nesse sentido, é ainda
extremamente actual), "Slow Motion" procura uma distância maior, mas
não menos explora a questão energética, dos recursos, das jogadas geopolíticas,
e mesmo com contornos de religiosidade estatal, hierarquização social
ultra-planeada, etc.
As suas limitações
terão, no fundo, a ver com uma certa vontade em criar uma obra já num diálogo
directo com os "palcos globais" da banda desenhada, e não somente o
"mercado interno", mas em condições que em nada ajudavam a esse mesmo
diálogo, e até numa incompreensão, quem sabe, face a esse desejo e
possibilidade. Faz todo o sentido, então, recuperar este texto, mas ao mesmo
temo deveria ser obrigatório a sua recontextualização, precisamente para nos
concentrarmos nos territórios inovadores que Relvas, algo solitariamente, ia
tentando.
Nota final:
agradecimentos à Polvo, pela oferta do livro.
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