29 de março de 2014

WC. Marriette Tosel (Mmmnnnrrrg)

Deste pequeno mas intenso livro diremos sucintas, mas esperamos que pertinentes, palavras. Uma vez ser consabida a sua autoria histórica e física, de Tiago Manuel, as leituras tentadas sobre todo e qualquer novo projecto devem ser feitas à luz dúplice, mas jamais dúbia, da filiação imediata aos nomes autorais de cada volume (ligando, portando, WC a O armário psicótico) assim como da inscrição maior no projecto heteronímico de Tiago Manuel. Assim sendo, estas breves notas devem ser vistas como complementando tudo aquilo que temos escrito sobre este mesmo projecto, uma vez que existem linhas de fuga necessariamente comuns entre os vários “nomes”, ainda que seja igualmente necessário ser-se atento à distanciação de cada “assinatura”, inclusive em termos gráficos. Algumas interpretações e leituras partem precisamente do saber um nome “por detrás” dos distintos livros para tecerem considerações sobre o “estilo inconfundível”, as “pistas comuns” e por aí fora, confundindo dessa maneira as intensidades diversas. (Mais) 


Ou seja, deve procurar-se um constante movimento de vaivém entre a compreensão global e a atenção para com o particular. Com efeito, essa é a única forma de respeitar o projecto de heteronímia, que deve ser levado a sério na medida em que cada avatar tem a sua voz e características, não apenas formais mas políticas. Neste último âmbito, parte do projecto, e particularmente inflectido em Mariette Tosel precisamente, encontraremos uma crítica ao e exploração do modo como o capitalismo tardio consegue "comodificar" tudo, inclusive aquelas dimensões do corpo humano e das suas sensações que pensávamos terem resistido até agora... Para além do jogo em relação às “boas maneiras” e à “moralidade”, já patentes no livro anterior, encontramos aqui um foco especial sobre o corpo humano, os seus limites, o seu sensório, os seus aproveitamentos, através das muitas metáforas visuais que mesclam partes do corpo e instrumentos artificiais.


Se seguirmos pensadores como Foucault e Deleuze, entre outros, compreender-se-ão as mudanças que se têm operado nas nossas sociedades, de forma a que de “sociedades disciplinares” (caracterizadas por instituições “fechadas” como a família, a escola, a fábrica, a prisão, cf. Foucault) se tenham tornado “sociedades de controlo” (Deleuze, reempregando uma palavra-chave de W. S. Burroughs), marcada pela atomização dos espaços de trabalho, a noção de competição “sadia” entre todos e quaisquer membros de um grupo aparente (entre colegas numa companhia, entre estudantes num nível de ensino, entre participantes de um qualquer concurso) que leva a recompensas diferenciadas, à circulação de uma ideia de riqueza baseada em “flutuações de moeda” e “taxas de conversão” do que em material. “O homem disciplinar era um produtor descontínuo de energia, mas o homem do controlo é ondulatório, está em órbita, nula rede contínua.” A própria natureza passa de produção e concentração para uma ideia de circulação, se não mesmo de re-circulação, por vezes mesmo dos “signos” que comporiam a linguagem que permite e constitui essa mesma possibilidade de circulação. Talvez resida aí, em parte, uma forma de entendimento das máquinas “celibatárias” de Tosel, que não apenas são impossíveis, como pouco importa serem inúteis, mas forçam a uma reescrita das suas partes e hipotética função...


Em termos narrativos, encontraremos em “Wonderful Choice” - um título que permite o trocadilho jocoso da capa, ostensivamente apelando à contradição do luxo material do objecto, com os seus cantos cunhados a prata, a letra lavrada, o formato de Bíblia de bolso, com a promessa de uma leitura de evacuação rápida e momentânea – três histórias, as quais poderão ser lidas tanto como sendo totalmente autónomas entre si como coordenadas para criar uma espécie de novela à portuguesa, sobre a hipotética ascensão de uma personalidade qualquer associada àquele grupo de profissionais tão erroneamente apelidados de “classe política”; o “erro” encontra-se no uso algo frouxo do conceito de “classe”, de que esse grupo profissional se encontra desprovido, apesar do bem-pensante discurso sobre “ética” e “princípios”, cada vez mais vazios nas mãos e usos destes trabalhadores do poder. Profissionais de discursos que mantêm bem oleada o controlo, que têm menos a ver com uma máquina – identificável num seu corpo e partes, fonte de energia e centro de decisão – do que um organismo fractal, sem centro, o qual mesmo que “perca” uma parte funcionará decerto sem problema. Na verdade, a “escolha” não é maravilhosa, e daí a ironia do título. Não há escolha possível.


A autora, como é natural, não fulaniza os seus hipotéticos alvos. Isto é, os protagonistas das histórias são eles mesmos personagens completos no interior das suas diegeses, e cabe apenas ao leitor o exercício de tentar compreender que tipo e quais as afinidades existiriam entre essas criaturas de papel e aquelas de carne e osso que ocupam a espuma dos dias. Mas é precisamente por não se fulanizar - apesar de existirem indícios, icónicos, circunstanciais, mais ou menos subtis - que o discurso politizado de WC se torna não apenas mais eficaz como potencialmente mais perene, capaz de ser aplicável, digamos assim, tanto ao passado como ao futuro, tornando-se uma espécie de guia eterno das soberbas e da injustiça intrínseca - não obstante aqueles que ainda nutrem uma secreta esperança numa possibilidade de transparência e honestidade e ombridade - do poder político, cada vez mais subsumido a outros poderes (sobretudo o financeiro).


Poderemos, enfim, olhar para cada um dos projectos de Tiago Manuel como inspirando uma "força epistemológica", no sentido em que não emprega os dispositivos habituais e formais do livro ilustrado para criar simplesmente um reflexo do mundo, uma ideia que lhe é exterior, um comentário sobre um conceito existente e que circula socialmente, mas para criar novo conhecimento, um conhecimento particular sobre o mundo que não pode assumir qualquer outra forma de transmissão ou formação. Menos reflexo, os seus livros aumentam o saber do mundo.

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