Ou
seja, deve procurar-se um constante movimento de vaivém entre a
compreensão global e a atenção para com o particular. Com efeito,
essa é a única forma de respeitar o projecto de heteronímia, que
deve ser levado a sério na medida em que cada avatar tem a sua voz e
características, não apenas formais mas políticas. Neste último
âmbito, parte do projecto, e particularmente inflectido em Mariette
Tosel precisamente, encontraremos uma crítica ao e exploração do
modo como o capitalismo tardio consegue "comodificar" tudo,
inclusive aquelas dimensões do corpo humano e das suas sensações
que pensávamos terem resistido até agora... Para além do jogo em
relação às “boas maneiras” e à “moralidade”, já patentes
no livro anterior, encontramos aqui um foco especial sobre o corpo
humano, os seus limites, o seu sensório, os seus aproveitamentos,
através das muitas metáforas visuais que mesclam partes do corpo e
instrumentos artificiais.
Se
seguirmos pensadores como Foucault e Deleuze, entre outros,
compreender-se-ão as mudanças que se têm operado nas nossas
sociedades, de forma a que de “sociedades disciplinares”
(caracterizadas por instituições “fechadas” como a família, a
escola, a fábrica, a prisão, cf. Foucault) se tenham tornado
“sociedades de controlo” (Deleuze, reempregando uma palavra-chave
de W. S. Burroughs), marcada pela atomização dos espaços de
trabalho, a noção de competição “sadia” entre todos e
quaisquer membros de um grupo aparente (entre colegas numa companhia,
entre estudantes num nível de ensino, entre participantes de um
qualquer concurso) que leva a recompensas diferenciadas, à
circulação de uma ideia de riqueza baseada em “flutuações de
moeda” e “taxas de conversão” do que em material. “O homem
disciplinar era um produtor descontínuo de energia, mas o homem do
controlo é ondulatório, está em órbita, nula rede contínua.” A
própria natureza passa de produção e concentração para uma ideia
de circulação, se não mesmo de re-circulação, por vezes mesmo
dos “signos” que comporiam a linguagem que permite e constitui
essa mesma possibilidade de circulação. Talvez resida aí, em
parte, uma forma de entendimento das máquinas “celibatárias” de
Tosel, que não apenas são impossíveis, como pouco importa serem
inúteis, mas forçam a uma reescrita das suas partes e hipotética
função...
Em
termos narrativos, encontraremos em “Wonderful Choice” - um
título que permite o trocadilho jocoso da capa, ostensivamente apelando à contradição do luxo material do objecto, com os seus cantos cunhados a prata, a letra lavrada, o formato de Bíblia de
bolso, com a promessa de uma leitura de evacuação rápida e
momentânea – três histórias, as quais poderão ser lidas tanto
como sendo totalmente autónomas entre si como coordenadas para criar
uma espécie de novela à portuguesa, sobre a hipotética ascensão
de uma personalidade qualquer associada àquele grupo de
profissionais tão erroneamente apelidados de “classe política”;
o “erro” encontra-se no uso algo frouxo do conceito de “classe”,
de que esse grupo profissional se encontra desprovido, apesar do
bem-pensante discurso sobre “ética” e “princípios”, cada
vez mais vazios nas mãos e usos destes trabalhadores do poder.
Profissionais de discursos que mantêm bem oleada o controlo, que têm
menos a ver com uma máquina – identificável num seu corpo e
partes, fonte de energia e centro de decisão – do que um organismo
fractal, sem centro, o qual mesmo que “perca” uma parte
funcionará decerto sem problema. Na verdade, a “escolha” não é
maravilhosa, e daí a ironia do título. Não há escolha possível.
A
autora, como é natural, não fulaniza os seus hipotéticos alvos.
Isto é, os protagonistas das histórias são eles mesmos personagens
completos no interior das suas diegeses, e cabe apenas ao leitor o
exercício de tentar compreender que tipo e quais as afinidades
existiriam entre essas criaturas de papel e aquelas de carne e osso
que ocupam a espuma dos dias. Mas é precisamente por não se
fulanizar - apesar de existirem indícios, icónicos,
circunstanciais, mais ou menos subtis - que o discurso politizado de
WC se torna não apenas mais eficaz como potencialmente mais
perene, capaz de ser aplicável, digamos assim, tanto ao passado como
ao futuro, tornando-se uma espécie de guia eterno das soberbas e da
injustiça intrínseca - não obstante aqueles que ainda nutrem uma
secreta esperança numa possibilidade de transparência e honestidade
e ombridade - do poder político, cada vez mais subsumido a outros
poderes (sobretudo o financeiro).
Poderemos,
enfim, olhar para cada um dos projectos de Tiago Manuel como
inspirando uma "força epistemológica", no sentido em que
não emprega os dispositivos habituais e formais do livro ilustrado
para criar simplesmente um reflexo do mundo, uma ideia que lhe é
exterior, um comentário sobre um conceito existente e que circula
socialmente, mas para criar novo conhecimento, um conhecimento
particular sobre o mundo que não pode assumir qualquer outra forma
de transmissão ou formação. Menos reflexo, os seus livros
aumentam o saber do mundo.
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