1 de março de 2014

Nu-Men. Fabrice Neaud (Quadrantes Soleil).

Quando damos início à possibilidade de analisar um livro, ela nasce desde logo orientada por uma qualquer perspectiva. Se num primeiríssimo momento não passa de uma impressão (ou uma “opinião”, passageira pela sua natureza própria, e não enquanto saliente pela percepção mas apta a ser moldada de alguma forma como a impressão), a decisão imediata de a fazer passar um determinado crivo vai transformar essa ideia ora numa leitura mais decidida, ora numa noção que vem alterar uma visão anterior, etc. Por hipótese, e olhando para um livro como este, que questões nascem logo? Tratando-se de uma série de álbuns, cujos dois primeiros volumes estão já disponíveis - o primeiro volume intitulando-se Guerre urbaine e o segundo Quanticafrique -, poderíamos lê-lo à luz da sua integração no mercado comercial de banda desenhada francês: uma série, aparentemente clássica, com um número standard de páginas e seguindo a materialidade mais usual destes objectos para sua nomenclatura e entrada nas estantes (algo discutido bastas vezes, e recentemente através do seu “assalto” com 978). Mas também se poderia procurá-lo explicar, digamos assim, na economia de género, a ficção científica, até mesmo hard, com laivos de teorias da conspiração, ou de trama policial, mas também com as inevitáveis invenções/projecções sociais que não são senão comentário sobre a cultura já em curso. Uma outra hipótese é a de considerar o seu autor, ou o seu percurso, e aí pode residir uma surpresa significativa. Fabrice Neaud, autor de um dos mais monumentais projectos da banda desenhada autobiográfica contemporânea produzidos até hoje, o Journal, uma obra que obriga a  questões difíceis, “desviando-se” para uma história, para todos os efeitos, normalizada. (Mais) 

Neste universo narrativo, existem transhumanos ou “humanos aumentados”, e não eles que estão no centro da intriga, como demonstra o título, Nu-men. Todavia, como se depreende de imediato, esta palavra pode ser lida de várias maneiras, todas elas contendo uma pista ou dimensão sobre a narrativa, da mais simples - afinal, eles são “novos homens” - às mais profundas e complexas - dependendo de que perspectiva a emprega, da religião antiga à psicanálise jungiana, o numen, numinis é sempre uma noção que remete a algo transcendente, um poder divino contido num qualquer objecto (o núcleo que estes “homens” integraram em si?), mas também poderíamos imaginar tratar-se de uma referência ao “númeno”, a Coisa em si/Ding an sich kantiana, a hipótese de uma realidade exterior à subjectividade humana. Leia-se, portanto, o título como uma inflexão de toda uma série de aspectos culturais pop recentes, até adolescentes (nu-metal, Nu-Earth, Nu-World, nu-whatever), sublinhando então os aspectos da trama diegética, a camada de ficção científica e acção, etc., ou uma possibilidade de abrir um álbum de banda desenhada como algo que possa “pensar”.

Aquelas personagens transformadas não são mais que seres humanos cuja estrutura total (não apenas o corpo, ou os genes, mas tudo a uma escala mínima, cromodinâmica, abaixo de Planck, que sabemos nós?) foi manipulada de acordo com duas teorias de ponta da física, a de cordas e a da gravitação quântica, aqui passíveis de técnicas pragmáticas, ainda que experimentais. Essas manipulações são ilegais, secretas e controladas por o que parece ser uma força política conspirativa num contexto político extremo. A trama envolve toda uma espécie de conspiração de forças pouco claras, desde oficiais russos a representantes dos poderes mais centrais que se ocultam daqueles que ainda são, talvez ilusoriamente, eleitos (presumimos, por exemplo, que o trocadilho do título do segundo álbum seja não apenas com as teorias físicas mas também com Quantico, sublinhando a dimensão militarista). Sim, é o futuro, pós-apocalíptico (os Estados Unidos parecem ter sido obliterados por um cataclismo, África sofreu uma catástrofe humana que “obrigou” a encerrar-lhe as fronteiras), e a Europa encontra-se parcialmente a ferro e fogo, defendendo-se sobretudo das tentativas de “invasão” dos emigrantes de outros quadrantes. Neste aspecto, Neaud não deixa de estar a fazer um comentário ao nosso estado actual, naturalmente, transpondo para um futuro hiperbolizado a ideia de uma “Europa fortaleza”, já preconizada por tantos na União Europeia, e visto mesmo como projecto inevitável (afinal, Roger Waters parecia ter mesmo razão, all in all it was just bricks in the wall).

Além deste contexto político, o autor preenche todas e cada página com informações variadas que dão cor à narrativa, como se espera de uma fantasia sobre o futuro. Existe uma Nu-Madrid, sprays de grafitti que se aguentam a pairar no ar, pistolas neurolépticas, a possibilidade de criar estruturas arquitectónicas anti-gravitacionais, a possibilidade da teleportação de organismos vivos. Mas também o desespero dos pobres, a fome e a contestação social contra uma certa opressão de classes se mantêm. Como se Neaud quisesse demonstrar e explorar as tensões sociais mais do que as fantasias tecnológicas, ou como se quisesse sublinhar o facto de que não obstante quaisquer que sejam as transformações técnicas, a natureza humana continuará a ser a mesma, e que muitas das conquistas políticas que pensamos ter alcançado há tão pouco tempo não são senão realidades frágeis.

Os tais nu-men são pessoas expostas a processos de fissão e a partículas exóticas, enfim, desfeitas num “puré de quarkas à escala de Planck” para citar um dos cientistas, na esperança de que haja “respostas positivas”, isto é, efeitos passíveis de serem explorados militarmente (teleportação, voo, telecinese, etc.). Escusado será dizer que a esmagadora maioria destas experiências é feita sobre uma população de minorias étnicas, sem qualquer tipo de protecção social e judicial, o que não deixa também de ecoar dezenas de acontecimentos reais do nosso momento histórico.

As guardas dos livros, por exemplo, apresentam sempre materiais paratextuais de importância, uma vez que revelam mis informações sobre o universo diegético para além do texto central. Sob a forma de recortes de notícias do Parlamento Europeu, o blog da estrela de entretenimento mais famosa do momento (cruzamento hiperbolizado de toda a espécie de entretenimento abjecto dos nossos dias, com uma grande carga épatant, desde a música à tele-realidade, passando pela moda e delírios sexualizados), um texto explicativo da catástrofe sucedida em África em 2035, e algumas informações sobre o projecto Hélios (o tal que cria os nu-men).

A camada de ficção científica coloca Neaud no mesmo campo que um autor como Warren Ellis ou Masamune Shirow, por exemplo. Isto apenas na banda desenhada, campo que se alargaria se olhássemos outros territórios, decerto. E o autor mostra aqui o seu largo conhecimento de outras tradições que não aquela em que se inscrevia de imediato com o seu Journal (aliás, o próprio projecto autobiográfico continha basta informação sobre a sua navegação livre pela banda desenhada, inclusive o mainstream norte-americano). Mesmo algumas das estratégias de representação, como escrever diálogos em francês entre aspas curvas para representar a língua russa, lembram práticas típicas da banda desenhada norte-americana e haverá muito a dever a esta em Nu-Men. Além disso, não é de somenos importância que esta saga seja publicada pela Soleil, uma plataforma que, de certa forma, tem angariado alguma resistência da parte dos defensores de uma alternativa imaculada (v. J.-C. Menu), misturando o que parecem ser dois pólos antagonistas, por um lado o autor, por outro, o veículo editorial.

Porém, este “trânsito” não é inédito, nem nos deve surpreender em demasia. Da mesma geração que Neaud, mas de um outro “grupo”, também Trondheim e Sfar rapidamente assumiram responsabilidades editoriais em plataformas comerciais (Delcourt, Gallimard) onde viriam a produzir trabalhos ligeiramente afastados daqueles seus trabalhos centrais quando na L’Association (o que é discutível, já que um certo humor irónico sempre esteve presente no primeiro, e o segundo jamais abdicou de um universo diegético habitado por personagens-tipo e princípios de vários géneros), inclusive trabalhos da sua própria lavra, e aos quais se uniriam os nomes de David B., Stanislas, Larcenet, Guibert, etc.

No entanto, aqui começamos a aproximarmo-nos daquela questão de a banda desenhada poder “pensar”. Isto não tem nada de místico. É apenas uma forma de entender que, e citamos Ernst von Alphen, que “a arte na sua especificidade histórica engendra questões gerais, transhistóricas e filosóficas”, ou por outras palavras, ela pensa. Uma das maneiras de entendermos a integração da banda desenhada, ou se preferirem alguma banda desenhada, no campo da “arte” encontrar-se-á menos em considerações formais ou mesmo sociais, mas antes na sua “autonomia”, não no sentido em que seria independente do seu contexto (pois nada nunca o é), mas antes de possuir uma agência própria. De novo, Alphen: “Essa agência muda a natureza do enquadramento em relação à arte. Se a arte ‘pensa’, e se o espectador é compelido, ou pelo menos convidado a pensar com ela, então a arte não é somente o objecto enquadrado - o que, obviamente, também é verdade e importante - mas também funciona, por sua vez, como um enquadramento de pensamento cultural” (Art in Mind).

Reconsiderando o aspecto físico destes álbuns, a ideia de que esta fórmula material seria dominante em si mesma, isto é, que não poderia conter quaisquer desvios à visão original, normalizadora, e dominante desse formato, levar-nos-ia a uma aceitação quase acrítica de um dogmatismo pouco produtivo. É certo que (quase) todas as estratégias de 978, de Pascal Matthey, parecem criar um espaço alternativo que rompe com a tradição formal do álbum ainda que a mime na superfície, e Nu-men pareça respeitar um conjunto maior dos seus traços (narratividade, serialização, elementos genéricos, trabalho de cor, etc.), mas o que importa é ver como é que essas formas ora subsistem no trabalho de Neaud ou como é que ele as explora enquanto “enquadramento de pensamento cultural”.

É, portanto, interessante que seja um dos autores mais articulados e virulentos nas suas críticas a um certo “desvirtuamento” da autobiografia em banda desenhada (a sua transformação em “género”, para não dizer “produto comercial”, em vez de interrogação de si e mesmo de formas de fazer banda desenhada), um dos nomes mais importantes numa tendência contemporânea dessa arte particular em criar processos de autoconstrução, de uma urgência em reflectir sobre a própria capacidade e formas de reflexão do si, de gerir distâncias, franquezas e intimidades, a mergulhar num aparente discurso normalizado de género. Mas se ele o faz é para que, através destas ficções, dos seus elementos atómicos, isto é, cada uma das premissas ficcionais e projectadas no futuro e a forma como elas se inscrevem no tecido social, cultural, técnico, político e cultural da nossa experiência histórica, fossem uma série de questões colocadas aos próprios leitores, para que eles imaginem como reagiriam face a esses possíveis desenvolvimentos. Provavelmente, nem tanto como desejo ou medo do futuro, mas como passo quase inevitável já daqui a “uns dias”.

Em termos mais abertos e coordenados (não queremos falar de “ideias gerais”, que não existem), Neaud demonstra de uma forma premente que a divisão entre “banda desenhada d’auteur” e “banda desenhada comercial” não é inexistente, mas é uma questão menor, e não pela razão - demasiado simplista, e até mesmo ridícula ou falsa - de termos aqui “um mesmo autor” (a mesma pessoa, contingente e histórica, sê-lo-á certamente, autor, é outra questão), mas antes por ser possível criar discursos de inquirição política profundos no interior de aparentes ficções (e científicas) normalizadas. Ou, colocando a questão noutros termos, crendo que as formas (no caso, o álbum) não são neutras mas antes uma “forma de acção”, para citar o crítico de cinema Serge Daney, que ainda explica “por outras palavras, elas estão dialecticamente ligadas às ideologias que as informam”, Neaud estará a explorar esta forma de uma maneira ideologicamente contrária ao cadinho que a formou.

É cedo demais, talvez, na trama para compreender tudo o que está implicado nas conspirações que se cruzam, e que papel as personagens principais, “inocentes”, poderão vir a ganhar na economia ética que se espraia. Talvez apenas no fecho de toda a saga possamos compreender o seu contorno. No entanto, se nos concentrarmos  na figura de Mstilav Popescu, que seria o “vilão”, veremos que não existem aqui papéis de “mal absoluto” e “inocência imaculada”, não se constroem aqui dicotomias que (como apontámos no caso de Iron) apenas criariam a ilusão de uma análise, quando não estariam senão a confirmar uma ficção de que se instituem pólos, em vez de uma muito maior complexidade de negociações, implicações, indecisões e responsabilidades cruzadas. Se dicotomia existir, ela vai para além das mais usuais, e talvez possa vir a ganhar uma presença significativa no par, especular e antagonista, entre o protagonista “herói”,  o sargento Csymanovic, e Popescu.

Por outro lado, temos toda a questão dos Outros. Quem são os Outros nesta sociedade? Os de sempre: por um lado, os de fora, os estrangeiros, os não-europeus, depreendendo nessa descrição uma impossível compreensão dos nossos “valores universais”, como a ideia de doenças, diferença racial intransponível, etc., por outro, os pobres, os indigentes, os marginais (a todos os níveis, não só económico, claro, mas sexual, cultural, etc.). Nesse sentido, as redes estabelecidas entre os vários níveis sociais, vários contextos nacionais-culturais, e a exploração dos vários lados das barricadas mostradas, também tornam Nu-men numa complexa inquirição, como dissemos.

Um outro aspecto que não se pode ocultar é que alguns dos jogos de projecção de desejo mantém-se aqui idênticos aos de Journal. Quer o “herói”, Csymanovic quer o “antagonista”, Popescu, partilham de um mesmo modelo físico: a do body-builder de nariz à boxeur, nada belos de acordo com padrões metrosexuais, mas impositivos em termos de massa muscular, cabeças quadradas e olhares assustadores (Popescu mais do que Csymanovic, o qual surge como mais “simpático”, e que, ainda que não monstruoso como o Sloth de Goonies, partilhará com esta alguns aspectos de algo débil mental). Mas são precisamente esses os tipos de corpos que Neaud revelara, em Journal, serem o seu típico modelo de desejo sexual. Além disso, o “arqui-vilão” da série, um homem de rosto carbonizado, muito similar ao Caveira Vermelha/Red Skull da Marvel, parece ser construído sobre o rosto do próprio Neaud, o que pode tanto revelar de mera solução técnica como servir de pasto a interpretações mais temerárias.

Estas poderão de facto continuar a expandir-se à medida que cada novo livro se juntar a estes. [Nota adicional: sabemos agora que esta série foi cancelada pela editora... Hélas!]

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