Hawk é claramente um ponto de encontro entre a vontade dos
seus autores e do editor. Quer dizer, não se trata somente de uma obra
existente em si mesma que tem a felicidade de encontrar o seu veículo
editorial, nem tampouco um projecto de publicações que arranja espaço para um
novo título, mas antes a convergência das vontades em explorar as mais diversas
frentes possíveis da banda desenhada, da parte de André Oliveira, sobretudo, e
a de consituir um católogo particularmente moldado para uma reformulação de
géneros contemporâneos através da máxima legibilidade, coordenação de estratégias
de comunicação e garantia de uma transparência em todos os passos dos processos
colaborativos na criação de um livro, da parte de Mário Freitas. Quer dizer,
não estaremos à espera de encontrar nesta família de livros exercícios radicais
de experimentalismo e de expansão formal da própria banda desenhada, mas antes uma
busca equilibrada entre os seus instrumentos mais claros e sustentáveis. (Mais)
A leitura de Hawk leva-nos a colocar questões que nascem num género totalmente distinto daquele em que se inscreve.
A leitura de Hawk leva-nos a colocar questões que nascem num género totalmente distinto daquele em que se inscreve.
Parte das críticas mais mordazes de
Fabrice Neaud e Jean-Christophe Menu sobre um certo advento e transformação
comercial da autobiografia, a sua
co-optação, por assim dizer, em mero género
(recorde-se o debate em torno do livro de Delporte), tinha a ver com a assunção
de toda uma série de "acontecimentos", visto como "-chaves"
para a constituição de uma narrativa forte. Por exemplo, a exploração de um
segredo que constituiria o coração do sofrimento da personage, central, a
negociação emotiva entre a sua vida interior e singular e aquelas partes que têm
a ver com a co-criação no seio da família, do círculo de amigos, na sociedade,
etc. Ora verificar-se-á, pelo menos parcialmente, em Hawk, um aproveitamento de certos elementos que garantiriam essa
força. Mas Hawk não é autobiográfico,
estando ausentes todos os elementos que nos permitiram essa inscrição, a um só
tempo literária e ética, e não entraremos nem em abusos psicanalíticos
(buscando informações íntimas e externas para prover ligações nesse sentido)
nem em frases feitas (“toda a obra de arte é autobiográfica”, etc.).
A história de Vicente, porém, segue
alguns princípios narrativos que a aproximam desse outro género, bastando ver
aquelas palavras que tecem o início da narrativa... Além disso, vive ou quer
viver num estranho equilíbrio entre obras movidas por uma intensidade total de
emoções e uma construção cognitiva do seu mundo fictício a partir de uma
perspectiva singular (no caso, a de Vicente), e aquelas associadas a uma certa
contemporaneidade e círculos alternativos que exploram sobremaneira o vulgar,
monótono, a rotina de um quotidiano
inflexível.
Os instrumentos de caracterização
movidos por André Oliveira mostram o seu ensejo em criar um retrato de algum
Portugal contemporâneo e urbano, utilizando variadíssimas referências que,
menos do que "banais", constituem um "fundo comum" imediato
entre uma potencial comunidade de leitores a quem o livro se dirige (havendo
sempre, naturalmente, a possibilidade da obra chegar a públicos mais alargados
que esses "imediatos"). Desde a referência aos desenhos animados do
Dartacão às discussões em torno da actual política económica do governo, essas
linhas servem para criar uma sensação de hic et nunc que tornam Hawk num texto possível de ser lido para
além de uma mera ideia de entretenimento (ainda uma imagem generalizada da
banda desenhada junto a pessoas fora dos seus circuitos mais habituais, quando
estes também cultivam, as mais das vezes, esse mesmo desejo).
Todavia, por um lado, as pequenas
acções não são suficientemente pequenas e banais para nos fazer focar na
possível maravilha que pode emergir da observação da vida de todos os dias, e
por outro não são avassaladores de maneira a tornar Hawk num drama "de trauma". Apesar de estar no meio, será suficiente para cumprir uma
virtude?
É que os momentos tónicos e átonos, ou
tempos fortes e fracos, encontram-se esbatidos, sobretudo devido aos
intrumentos gráficos, a que regressaremos adiante. Por ora, ficaremos ainda
presos a este nível narrativo – abstracto – da “história” ou mesmo “fábula”. A
narrativa ainda assim constrói um espaço imaginário, um trânsito, entre as
expectativas e as projecções de Vicente que vão alimentando e moldando a
narrativa, a um ponto ligeiro de elisão das fronteiras entre os níveis de
experiência da personagem ( e que podem tomar o nome de “realidade”, “memória”,
“sonho”, “fantasia”). O que está ausente, porém, é precisamente um grau de
ambivalência, parece-nos.
Apesar dos abusos perpretados a partir
de uma leitura errónea, lacunar ou incompleta das suas lições, foram Wolfgang
Iser (The Act of Reading) e Umberto Eco quem mais fomentaram a ideia de
que um texto (literário ou de outra espécie) seria completado e co-construído
na sua interacção com o leitor (Eco, em Os limites da interpretação,
será muito explícito sobre como não levar demasiado longe a sua noção de “obra
aberta”). O que ocorre nesse sentido é que o leitor ou leitora estão
sistematicamente a construir nas suas mentes mais pormenores ou ancoramentos
para a leitura do que aqueles disponibilizados no momento: por isso temos “uma
imagem” da personagem, ou dos espaços em que ocorrem as acções, ou os gestos
das pessoas, as suas expressões e tons, etc. Além disso, há uma
permanente actualização da diegese, das vontades das personagens, juízos éticos
da nossa parte, e por aí fora. A banda desenhada, dada a sua dimensão visual,
dá obviamente a ver permanentemente muitas dessas informações, mas também ela
pode conter alguma ambivalência a esse nível, e não somente no aspecto mais
óbvio, mais visível – ou será “invisível”? -: os intervalos entre vinhetas.
Ora, um dos problemas de Hawk é que não deixa espaço ao leitor
co-construir parte dos juízos de valor que nasceriam em relação a Vicente, à
sua família (disfuncional, como todas), aos seus amigos - que têm algo de
"typecast" -, a espécie de namorada, etc. Eles são mostrados
na sua completude. Por exemplo, o breve episódio da psicanalista poderia criar
algum intervalo entre a atitude de Vicente e o papel da terapeuta, mas
infelizmente parece-nos cair de imediato nul rol de ideias feitas. O problema
não está no convite feito à psicanalista por Vicente, nem na recusa desta, uma vez
que se encaixa perfeitamente no processo conhecido por contra-transferência, em que o analisando projecta um certo desejo
no analista, confundindo emoções, treslendo reacções e atitudes. Está no facto
de se admitir a imagem feita na ignorância desse processo pelo amigo, que
constrói uma imagem algo previsível de um ódio (por ignorância pura, não uma
crítica informada, e perfeitamente sustentável!) à psicanálise... Claro,
poder-se-á dizer que essa é apenas a atitude de Mike, "analisado"
logo de seguida pela retrospectiva de Vicente, mas a verdade é que poderia ser
a obra em si, em silêncios, por exemplo, que abririam esse espaço de dúvida. O mesmo ocorre com as discussões em torno da actual crise político-financeira.
Há claramente um desejo em criar uma
história coesa. Temos uma situação clara na qual são colocadas as personagens,
e há suficientes informações sobre elas (de acordo com os princípios de
atribuição de importâncias distintas) para compreender como é que os eventos as
poderão afectar, uma rede de relações que entra em tensão precisamente por esse
evento implicar alterações na vida de Vicente, seguimos um trajecto episódico
mas também íntimo e finalmente atingimos um desenlace, que procura sublinhar o
impacto emotivo possível mas também a possibilidade – apenas adivinhada, não
oferecida – de um “final feliz”. O falcão, enquanto projecção nostálgica de uma
certa ideia (ilusão) de protecção na infância e solução, sempre externa, dos
"problemas" identificados por Vicente, é um excelente mecanismo de
acção, de criação textual e até psicológico (poder-se-ia falar de uma espécie
de objecto transaccional?), mas há um certo grau de excesso de exposição desses
mesmos mecanismos.
Além disso, em termos visuais a obra
não é particularmente feliz. A simplicidade de grafismo não significa
necessariamente uma ausência de sofisticação. Pense-se em Töpffer, Steinberg ou Porcellino. Chega-se
mesmo a compreender, nestes casos citados, e outros, que essa simplicidade
aparente é produto mesmo da sofisticação subjacente. Infelizmente, não é o caso
presente. Há uma confinada natureza no tipo de expressividade que delimita por
demais essa mesma potencialidade nas personagens, sobretudo nos seus rostos. Ou
então o recurso ao outro extremo, que é um abandono em exposições
melodramáticas desses mesmos rostos, corroborados por gestos exagerados, linhas
cinéticas desnecessárias, escorços ou plongées
que sublinham em demasia a "carga grave e dramática" do acontecimento
e/ou reacção, etc.
O problema reside no facto de que
aquela simplicidade a que nos referimos acima é nutrida, conscientemente
lavrada, cuidadosamente moldada, pelas mãos dos artistas citados. Osvaldo Medina
é detentor de uma grande e invejável plasticidade, poder de adaptação e transformação
– dado o seu trabalho, incansável, no cinema de animação. Mas na banda
desenhada, onde o seu traço se encontra na sua própria via solitária, o que se
torna aparente é a limitação do seu desenho, sobretudo na expressividade dos
rostos humanos. Se em A fórmula da felicidade ou em Roleta nipónica
o desenhador encontra maior felicidade, isso dever-se-á ao maior grau de
estilização e ao recurso a personagens humanas teromórficas. Aí, Medina
compreende bem os mecanismos expressivos, necessários, à construção das
experiências das personagens (na esteira de um Calvo, algum Crumb, e aquele
desvio “literário” que Harry Morgan identifica como “pogoismo”, a partir da
influente obra de Walt Kelly), não só os rostos, mas todos os outros elementos,
das orelhas aos rictos, posições dos corpos, etc. Já em Mucha, e agora
em Hawk, há francas limitações. A falta de coerência entre os rostos e
outros pormenores fracos (a página que repete o carro de Sérgio na marginal é muito
problemática, e parece implicar alguma pressa) acaba por não sustentar a
narrativa. As cores, algo constringidas a uma paleta reduzida - também ela apelando
de uma forma demasiado óbvia ao desejo de querer ser "significativa"
-, acaba por não garantir uma outra dimensão ou peso às imagens, e nalguns
casos, com meia-dúzia de pinceladas para dar a ideia de volume e/ou distância, torna
mesmo mais esboroada a tentativa de ancorar as acções num suposto mundo
ficcional. Estes problemas, contudo, podem dizer-se estar na mesma ordem do que
ao nível da narrativa, como vimos. Há pouco espaço dado às falhas de
representação, tudo é claro.
Não podemos simplesmente caracterizar
a abordagem de Hawk como “pouco
expressiva”. Os ingredientes estão todos identificados e empregues. Nem
tampouco tem a ver com pertinência, pois este é um livro que estaria numa mesma
linha de alguns títulos de Rui Brito e João Fazenda, Marcos Farrajota e Marte, Rui
Lacas e Miguel Rocha, livros que lidam directamente e sem preconceitos com a
realidade quotidiana do nosso entorno social, abdicando de instrumentos
fantasiosos ou de derisão total. Trata-se antes de um desencontro, a nosso ver,
de um desequilíbrio interno entre a vontade narrrativa, a construção emotiva
das personagens enquanto agentes diegéticos e os instrumentos visuais
empregues.
Estamos em crer, porém, que este era
um livro necessário, sobretudo aos seus autores. Talvez como ao valor
terapêutico e redentor do voo final do falcão em relação a Vicente, que não lhe
resolve nada mas o coloca na senda do seu próprio caminho autónomo, a
libertação deste livro no espaço público também signifique um hausto novo aos
seus criadores.
Nota final:
agradecimentos aos autores e editores, pelo envio da publicação, e imagens.
4 comentários:
Viva, Pedro
Lá caindo eu na tentação, ou no risco, de vir defender as minhas damas, quero ser sucinto e defender, neste caso, um cavalheiro.
Acho a tua análise artística sobre a obra profundamente injusta para o Osvaldo, nomeadamente no que toca à falta de expressividade, o que, confesso, me deixou preplexo.
Pode acusar-se o Osvaldo, aqui e ali, de alguma incoerência nos rostos dos personagens, e ele bem sabe que é uma tecla em que lhe tenho batido algumas vezes. De resto, os rostos são de uma enorme expressividade emocional, os corpos movem-se como corpos, estejam parados ou em plena acção e não conheço, de todo, outro artista em Portugal com tamanha desenvoltura comparável, nem entre aqueles que citaste, por mais estilizados, no bom sentido, que possam ser.
São gostos, dirás, e com razão. Cumpriu-me aqui deixar algumas pistas quanto aos meus. De resto, gostaria que tivesses creditado a Inês no título da crítica, pela importância do trabalho dela no livro. E gostaria, já que abordas tantos assuntos interessantes mas acessórias às próprias BD criticada, que te centrasses noutros planos esquecidos dessas própria BDs, como a legendagem, que, certamente, alguém com a tua bagagem teórica e cultural, compreenderá que não é algo desfasado do contexto da obra ou desprovida de importância crítica.
Obrigado e um abraço.
realmente os desenhos são horrorosos...
Caro Anónimo (estou sem alguns acentos, perdão),
Não diria que os desenhos são "horrorosos". Não serão "belos" decerto, sendo esse ul adjectivo usado muitas vezes de forma superficial, as mais das vezes para dar conta de uma cultura delicodoce em relação ao visual. Ha autores que prezo muito apesar de desenharem "feio", uma vez que dominam muitos dos outros instrumentos próprios da banda desenhada, e os torna autores felizes.
Mário, olá. Fazes muito bem em defender a dama, só te fica bem!
Mas atenção, em não disse que o Osvaldo não era expressivo tout court. Falo até mesmo dos momentos em que se verifica o outro extremo, um excesso que traz um melodramatismo excessivo em relação ao tom "slacker" ou quase indiferente do Vicente enquanto personagem. Também não me interessa fazer hierarquias directas, do tipo "A que melhor que B", uma vez que cada autor tera os seus caminhos (sou fã do Bryan Hitch e do Ed,ond Baudoin, e não ha hipótese de os comparar!), e acho que temos muitas pessoas a trabalhar regular ou irregularmente com belíssimos resultados, incomparáveis para fazer pódios entr eles. O Osvaldo é uma força da natureza, basta seguir o trabalho de animação, mas sinto que em "Hawk" ha uma desfasagem entre a visualidade e a narrativa (que, ela mesma, apresenta elementos demasiado "visíveis", como digo).
Quanto àas outras dimensões, também tens razão, mas infelizmente nem posso falar de tudo nem sei tudo. Sobre a cor, deixei uma nota, mas não disse o nome da Inês, e até acho muito bom da tua parte atribuíres o seu nome na capa, partilhando a autoria, como ja havia dito a propósito do "Impaciente". Quanto à legendagem... quando ela é "invisível" e totalmente legível, não é isso sinal de um trabalho perfeito?
:)
Abraços,
Pedro
Anónimo,
V.Exa. é um imbecil, e a sua imbecilidade só é superada pela sua cobardia.
De resto, obrigado pela resposta, Pedro. Para a posteridade, fica mais uma troca civilizada de opiniões, para as quais os anónimos frustrados nunca contribuirão.
De resto, o Hitch morreu há uns 13, 14 anos, mas nunca ninguém lhe disse ;)
Abraço.
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