Será possível ter uma categoria constituída de uma só
instância? Poderá uma nomenclatura criada para um título alertar-nos para
outros exemplos anteriores que passam a fazer parte dessa mesma categoria?
Poderá, ao isolar-se uma prática corrente, subsumida a programas mais
convencionais de narratividade e representação, re-fundi-la de um modo mais
autónomo? (Mais)
Não estando seguro de nenhuma destas respostas, não deixa de
ser curioso detectarmos dois gestos recentes que parecem perseguir a mesma
inclinação. Em Understanding Comics,
concorde-se ou não com as questões de fundo e estruturalizantes de Scott
McCloud, o autor instituiu de modo famoso a coordenação imediata entre as
vinhetas numa tipologia de transições. A primeira, a que chamara “momento-a-momento”,
junta vinhetas que dão conta de uma passagem, à partida, ínfima de tempo, dando
a ver uma microacção, uma transição de um estado para outro num intervalo
diminuto de movimento. As mais das vezes, essas transições são empregues em
sequências mais normalizadas (usualmente “acção-a-acção”, “objecto-a-objecto”
ou “cena-a-cena”) e, curiosamente, servem para diminuir o tempo de modo assinalável,
levando a uma focalização mais particularizada de algo dramático: a trajectória
de uma bala, a queda de uma personagem, um objecto quebrando-se. A título de
exemplos, recordemo-nos do comboio parando em “The Master Race”, de B. Kriegstein,
o frasco de perfume em Watchmen, ou a
bala de Hotel Harbour View, de Sekikawa
e Taniguchi. Mas para além das relações imediatas e contíguas na redução
(necessária) de McCloud, também poderíamos pensar em cenas “à distância”, como
a porta a fechar em Tunsgtênio, de
Quintanilha.
Apesar de McCloud não o discutir, poderá eventualmente estar
a pensar nas relações que, no campo da narratologia, Genette havia fundado em
Discurso da narrativa, quando, ao discutir a duração, relaciona o tempo da história (ou o tempo diegético),
medida por unidades cronológicas (“quanto tempo demora esta acção a ocorrer”), com
o tempo da narrativa (“o tempo que demora a contar a acção”). No caso da banda
desenhada, a figura mais comum é a da elipse, os saltos entre determinadas
acções marcadas eventualmente pelo espaço em branco entre vinhetas, apesar de
existirem casos em que se exploram intervalos menores, precisamente o que é
assinalado pelas transições “momento-a-momento”, as quais, de modo abstracto,
se aproximariam do que Genette chamava de isocronia,
onde existiria uma coincidência total entre o tempo da história e o da
narrativa: é o que sucede usualmente no teatro ou na imagem em movimento, se
bem que isto seja discutível e necessitasse de maior precisão.
Seja como for, entender-se-á que estas transições são
usualmente empregues de modo esparso, para assinalar uma acção particular. Não se
constroem histórias somente com essas transições, como se buscasse uma qualquer
sincronia entre o acto da leitura e o da diegese. Seria extremamente limitado o
escopo do possível.
Mas tendo em conta as experiências passadas de explorar os “momentos
aborrecidos da vida” (numa curva que abarcaria Clowes e Ware, Breccia e JamesSturm), ou até momentos de stasis
numa história mais convencional (de Kevin Huizenga a Mike Mignola), é natural
que encontremos na banda desenhada mais alternativa, experimental, de ensaio,
tentativas de auscultar os limites dessa duração temporal. A autora alemã
Nadine Redlich publicou duas publicações, Ambient
Comics, de umas dezenas de páginas, em que cada uma delas se constitui como
uma história de uma prancha singular. Todas essas pranchas apresentam seis
vinhetas numa grelha regularíssima, em que até a linha divisória é minimal. A cena
mostrada nessas imagens é absolutamente centralizada, sem quaisquer alterações
de ângulos, proximidade do objecto, e mesmo os objectos “capturados” no
interior dessa cena apresentam apenas um ou dois pontos de movimento (sejam, em
si mesmos, fenómenos físicos simples, como a queda de um corpo pela força da
gravidade, ou complexos, como a transformação físico-química de elementos).
Por seu lado, Pascal Mathey criou uma pequenina publicação,
a que deu o nome de Infusion, e no
qual explora algumas relações que já havia experimentado no seu fanzine Soap, e
noutros projectos, mas que aqui se parece aparentar com os livros de Redlich. O
título é claro: o “protagonista” é uma chávena de uma infusão, e mesmo que ela
não esteja no centro das imagens, é como se se sublinhasse o tempo que o
protagonista humano, sempre fora de cena, habita, usa e emprega enquanto
beberrica essa bebida: a água ferve, a pessoa trabalha, trata de um cacto,
despeja o lixo. A transição das cenas é lento, e concentrado, apresentando-se
também em grelhas inexoráveis.
Desta maneira, cada “história” de Ambient Comics pode ser descrita numa só linha, com um sujeito e um
predicado: “um comboio passa”, “um bolo coze”, “um baloiço baloiça”, “alguém
espreita pelas persianas”. De um ponto de vista estritamente clássico, de uma
narrativa normalizada, com personagens, uma intriga, os elementos de um género,
uma unidade espácio-temporal complexa, etc., poder-se-ia dizer que “nada se
passa”. Nem sequer estão instaladas no meio de algo maior que lhes desse um significado
“maior”. Mas isso não é verdade. Passam-se
essas acções. Certo, nenhuma delas é particularmente espectacular, fazem
mesmo parte da mais banal das nossas experiências, mas é por isso mesmo que
elas ganham uma premência curiosa, uma vez que nos obrigam a diminuir o tempo
para apreciar essas mesmas acções, nelas mesmas, nas suas características
próprias.
Regressando a McCloud, recordemo-nos que outra das
transições, “sem tempo”, era a de “aspecto-a-aspecto”, que criava a ideia de
uma focalização múltipla que nos ajudava a construir um espaço, ou melhor, um
ambiente no qual se instalaria uma acção posteriormente apresentada. Nestes
casos, os ambientes “não servem” a nada ulterior ou exterior a eles mesmos. Há,
de novo, essa concentração na realidade em que elas mesmo insistem. Estas
transições, tal como o seu uso normal, diminuem o tempo (que corre, e passa),
mas uma vez que esse tempo não faz parte de uma cadeia ou economia maior,
torna-se um tempo desagregado, que se espalha, tal como quer a palavra “ambiente”,
que deriva do verbo latino ambire, “andar
à volta” ou “dar a volta”. Um movimento circular que (pode) não leva a lado
nenhum, a não ser aprofundar a relação com esse espaço percorrido.
Mas se insistimos naquele aspecto em relação à duração,
também é notório como elas são todas diferentes. O tempo de um bolo cozer no
forno será necessariamente distinto do percurso do Sol nos céus para fazer rodar
uma sombra, e o tempo que leva a espuma de uma caneca de cerveja a desaparecer
não é igual ao da passagem de um comboio moderno, tal como não o é a passagem
do vento sobre um milheiral, ou um baloiço. Existem acções que são operadas por
seres humanos, e outras pelas forças da natureza, e mesmo que isso não implique
uma diferença de cronologia, sê-lo-á seguramente de intenção e controlo dessa
mesma duração, tornando a própria observação dessas acções ora tranquila ora
súbita. A questão da excitação não existirá, pois esse dramatismo vê-se
subtraído neste absoluto foco nas acções representadas. Não vemos a água a
ferver na chaleira, como no caso de Infusion,
de Matthey, no seio de uma outra qualquer azáfama maior que ocorrerá na
cozinha, em casa. Apenas a água a ferver, e mesmo assim oculta na chaleira:
apenas vemos o fumo a surgir, a luzinha a apagar. E se no caso das cinco
vinhetas que mostram as imagens alterando-se no ecrã do computador podem dar
uma ideia de movimento – temático, visual, plástico – ao mesmo tempo remetem a
um tempo bem alargado, de trabalho lento.
Por isso, quer os tempos dilatados quer os tempos curtos são
todos tratados neste leito de Procrustes, e o resultado é sempre idêntico. Um
tempo tranquilo, silencioso, ambiental, que nos permite cheirar o chá.
Nota final: agradecimentos a P. Matthey, pela oferta da sua
publicação.
Sem comentários:
Enviar um comentário