Talvez tenha a ver com a economia das palavras, que tem
menos a ver com o minimalismo ou alguma estratégia de “simplicidade” imaginada que
as crianças necessitam, mas a poesia de Mésseder recorda-nos a de Francis Ponge
ou de René Char. Sobretudo por se manter um certo lirismo, tantas vezes
abandonado em nome de uma suposta imitação do quotidiano e um aproximar da
realidade mais imediata da expressão política. Porém, esse abandono não
significa necessariamente uma maior aproximação à expressão da ética, precisamente
como demonstraria a dimensão desses dois poetas citados. (Mais)
Char sonhava um homem do futuro, “um homem terrestre”. Yvette
Centeno, no breve prólogo a uma selecção de poemas desse autor francês,
descreve como nessa poesia “A palavra desprende-se da matéria do corpo, levanta
voo como os pássaros cujo canto René Char evoca tantas vezes. Ao gozo da
provocação surrealista sucede o prazer mais secreto e mais subtil de um
pensamento alargado: ao ser e à sua essência, ao mesmo tempo dilacerada e una.”
(Este fanático das nuvens). No
entanto, é precisamente esse desprendimento da matéria que não se parece
verificar nas palavras de Mésseder. Bem pelo contrário, há uma particular
preocupação para com uma realidade quase chã, e não deixar que os objectos
banais se transformem em quaisquer símbolos desprendidos: se há um centro
comercial, ele é esse espaço; se se fala de um telemóvel, ele deve ser
entendido como tal, e o peso que tem no bolso; se há frio no Inverno, não se o
nega; e os animais não existem aqui como entradas de dicionários de
significados ulteriores, são mesmo as personagens de forças naturais e
observáveis. Estes poemas são, acima de tudo, um convite à observação.
Todos os poemas são curtíssimos, um punhado de versos, e
todos eles obedecendo a critérios estruturais próprios, não se podendo
articulá-los de acordo com qualquer constante género, forma ou “tema”. Serão bagatelas, no sentido musical, e como
reza o título, ofertados a conta-gotas. Isso permite que, em vez de esperarmos
largas narrativas englobantes, temos de ter atenção à maior justiça das
palavras. Veja-se o seguinte poema, belíssimo, e atente-se na precisão do que
pede:
“TARDE DE PRIMAVERA
Pela janela o sol espreita
o menino a dormitar
sobre o seu livro de estudo.
Pobre menino cansado,
pobre sol desperdiçado,
pobre livre mudo.”
Se cada um dos “objectos” parece estar em estado de união,
descobrimos que todos eles estão afinal desligados nas suas relações,
precisamente por não estabelecerem qualquer relação no momento. São as
palavras, todavia (e o desenho) que os une de novo, ao encontrar o traço comum
que os atravessa, prometendo dessa maneira um encontro futuro e completo.
Muitos outros poemas trazem a uma mesma superfície – a do poema
– dois objectos separados (cães e donos, remoinhos e crianças mergulhando num
lago, árvores e pássaros, camélias e moinhos, menina e boneca) que encontram
as suas afinidades no final do seu percurso prometido. O futuro prometido na
terra, como queria Char.
A suavidade dos lápis de cor de Ana Biscaia, aqui reduzidos
a duas cores contrastantes que sabem dar a vez às linhas necessárias de um
objecto – as riscas alternadas de uma meia de algodão, as massas de ar num céu
plúmbeo, as volutas de uma flor, os reflexos vivos de um rosto vivido -,
unem-se à delicadeza de cada breve estrofe. Já no “casamento” anterior dos
autores havia esta compreensão de que a superfície tranquila de um novo texto
é, acima de tudo, a estratégia mais correcta para dar a ver um mundo de
injustiças, mais do que se programarem em panfletária solução.
A ler a “conta-gotas” também, então, este convite de construir
um homem e mulher do futuro, de pés na terra, mas os lábios no voo das palavras
e dos desenhos.
Nota final: agradecimentos à ilustradora-editora, pela
oferta da publicação.
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