Enquanto a G. Floy vai dando continuidade aos títulos mainstream da Image que têm construído o
cânone actual dos “clássicos contemporâneos”, como Saga ou Fatale, é de
notar como também não deixa de apostar em outros títulos sem continuidade, mas que alargam o acesso a esses mesmos pólos de
produção do mainstream que não dos
super-heróis. No caso presente, gostarísmos de nos debruçar brevemente num
título novo, relativamente simples, que mistura vários géneros consabidos num
projecto de alguma leveza, Esquadrão da
Luz, e outro, já publicado há alguns anos, que mistura a novela de
detectives a uma espécie de horror existencialista ou niilista, Fell: Cidade Selvagem. (Mais)
Esquadrão da Luz. Peter J. Tomasi, Peter Snejbjerg e Bjarne Hansen.
Com quase 200 pranchas de história, esta narrativa é porém não apenas célere
como de uma navegação absolutamente suave. Não há quaisquer desvios da sua
intriga, tudo concorre na mesma direcção. E nem sequer existem muitos
afluentes, sendo todos eles de alguma maneira esperados e próprios na natureza
do rio principal. Centrando-se num par de dias nos dias finais de Dezembro de
1944 algures nas frentes de batalha belgas, apesar de haver momentos em que os
protagonistas se cruzam com vários grupos de pessoas, tudo serve sempre de peça
à maquinaria central de Esquadrão de Luz.
Um grupo de soldados americanos depara-se com um grupo de soldados alemães que
são, na verdade, os últimos sobreviventes dos Nephilim, as criaturas bíblicas
filhas de humanos e anjos caídos, liderados por um dos arcanjos-pai, os
Grigori. Este possui uma arma temível, a espada de Deus, que lhe permitirá
assaltar os portões do céu. Mas os soldados americanos têm nas suas fileiras o
também lendário centurião que empunhou a lança que encurtou o sofrimento do
Cristo na cruz, Marco Longino, e graças à sua própria liderança, serão eles a
última linha de defesa do Céu.
É claro que são menos importantes os pormenores desse
combate divino – quase todos os elementos são apresentados sem grande
desenvolvimento, e muitos dos pontos são mesmo perfeitos MacGuffins – do que a
rápida desenvoltura da narrativa. A título de exemplo, e como manda a lei
destes grupos, os homens que compõem este último bastião têm personalidades
perfeitamente distintas, desde o jovem quase-imberbe e nerd dos comics ao
ensimesmado e deprimido protagonista, passando por todo um rol de temperamentos.
Trata-se de um atalho, claro que sim, mas um atalho em que os elementos se
encaixam depois numa elegância acabada para o propósito da história.
A tradução do título apaga o trocadilho existente no
original, uma vez que Light Brigade
tem pelo menos três leituras: a literal/militar, que descreveria um “batalhão
de infantaria ligeira”, a metafórica/diegética, que aponta para o “poder da
luz” deste grupo de soldados, e o famosíssimo poema de Tennyson, “Charge of the
Light Brigade”. No poema de Tennyson, também se espera uma mortandade gloriosa
face a um inimigo implacável e quase invencível, e que carregará qualidades
épicas para esta outra obra. Não obstante, a tradução é até correcta, do ponto
de vista numérico-militar, já que é um esquadrão que corresponde à dúzia de
soldados que compõem a troupe desta história (seria curioso lança-la “contra” o
episódio em que os soldados alemães ultra-corrigem um documento americano).
Sob que luz ler, então, este épico ultra-popular que mistura
nazis e zombies, piadas sobre baseball e receitas bíblicas? Não temos de ler
Esquadrão de Luz com princípios advindos de outras áreas de criação, mesmo no
interior da banda desenhada. O que nos aborrece mais não é o facto de uma
história não ser idêntica a uma outra ou não seguir os mesmos princípios
conceptuais e formais. Por exemplo, poderíamos dizer que Esquadrão da Luz é uma obra fraca por não passar o “teste de
Bechdel”, não existindo, aliás, quaisquer personagens femininas dignas desse
nome. Mas será essa a crítica a fazer a um comic
mainstream que trata de uma fantasia que mistura super-heróis, ficção
militar, nazis e anjos de Jeová? Não essa inscrição no mainstream suficiente para lançar um certo caminho de interpretação
que, não sendo propriamente uma defesa a essas ausências, mostra que a sua
preocupação é outra, subsumida a princípios de entretenimento, a lógica das
histórias, a ideia de passatempo até? Pois nessa concepção, Esquadrão da Luz trilha o seu caminho da
maneira mais normalizada possível e, por isso, preenche os seus próprios
requisitos.
É claro que estamos perante uma história de redenção, é
claro que estamos perante uma história em que o maniqueísmo é respeitado, é claro
que estamos perante uma ideia “americanizada” da distribuição do poder no
mundo. Nesse sentido, voo cumprido. Mais incómodo é, na verdade, o facto de
Deus ter sido aqui um pilantra egoísta e faccioso. Nós próprios vemos a
narrativa do passado mítico a ser-nos contada, mas não há nada que aconteça que
nos faça ver os Grigori como essencialmente “maus”. Deus é que não parece
suportar a miscigenação. Esses factos, que não surgem como uma proposta que
depois é debatida ou descoberta, mas é uma “verdade” que magicamente se
implanta na mente dos soldados, não é empregue como possibilidade de criticar
Deus ele-mesmo. Os heróis “do seu lado” simplesmente cumprem as regras do que
estaria estipulado “em nome do bem”. Digam o que disserem os blurbs, convenhamos: Tomasi não é Ennis.
A “leveza” e “imagem-acção” da obra são perfeitamente
carregadas pelo trabalho de Snejbejerg, autor que une de forma brilhante,
parece-nos uma certa escola da “linha clara” europeia a alguns princípios
típicos da banda desenhada norte-americana. A figuração é clara, assim como as
expressões corporais e faciais, e tira partido de todo o cardápio de
enquadramentos, focalizações, ângulos e composição de página a tornar os
significados directos, não havendo grande espaço para ambivalências. As cores,
também elas convencionais mas competentes, de Bjarne Hansen, fazem integrar-se
as imagens ainda mais naquelas tradições apontadas. Mesmo nos momentos menos
naturais ou complexos, como em algumas cenas diurnas, o resultado é sempre
icónico, como exige o título.
Fell: Cidade Selvagem. Warren
Ellis e Bem Templesmith. Fell poderia ter vindo a ser algo maior do que resultou, mas ainda
assim é uma óptima introdução ao cinismo costumeiro e contumaz do escritor,
Warren Ellis. Aparentemente uma colecção de casos policiais resolvidos pelo
detective protagonista, Richard Fell, na cidade para onde se acabou de mudar, Snowtown,
Fell é na verdade uma radiografia (ou
endoscopia?) às partes mais abjectas da vida nas grandes cidades do mundo
ocidental, em que a empatia e vizinhança são palavras totalmente desprovidas de
sentido.
Fell parece ser feito do mesmo
pano do que muitas outras personagens de Ellis: uma figura solitária, cínica,
com capacidades acima de ser humano médio e com maus fígados que os fazem
cuspir insultos a todos os que o rodeiam. Fell sofre, porém, de um problema
agravado, enquanto personagem. Em primeiro lugar, não teve lugar para se vir a
desenvolver mais. Por outro, Ellis despacha a parte “detectivesca” com alguns
laivos de passes de prestidigitador, que o leitor não pode de forma alguma
seguir. Essa é uma prerrogativa da esmagadora maioria da escrita de detectives,
claro, não se escusando a figura de Sherlock Holmes: a capacidade de afirmar
verdades sobre a personagem a que o leitor ou espectador não teve realmente
acesso, e não poderia seguir da mesma maneira (isto precisaria de ser
corroborado pela análise dos textos, das cenas dos filmes, etc., mas
fiquemo-nos por esta sumária ideia). Em Fell
isso é por vezes levado a um ponto de hipérbole, uma vez que tem de funcionar
nas duas dezenas de página que uma história leva a ser contada, e que se
reveste muitas vezes de coincidências e proximidades pouco verosímeis, mas
Ellis não pretende que percorramos o verosímil. Na verdade, os seus mundos, e o
de Fell não é excepção, é composto
particularmente por uma bílis niilista de onde poucos se redimem.
Alguns pontos são menos felizes,
já que Ellis não deixa de apresentar uma ideia do mundo algo simplista e até
conservadora (as atitudes perante a inacção das autoridades, a relação com as
armas, a falta de matização das relações humanas e da possibilidade de
colaboração e gregarismo, etc.). Há um isolamento das personagens que apenas
sublinha as características que Ellis pretende trazer a primeiro plano,
eliminando tudo o resto (na literatura faz o mesmo). Mas Fell: Cidade Selvagem deve ser antes visto como uma espécie de
microscópio quebrado, focado apenas no ponto da imagem onde o bolor se mais
agarra à superfície.
Uma vez que este é um projecto inacabado, interrompido (como
outros desta fase de trabalho de Ellis), não será surpreendente que não haja
depois uma linha vermelha que unifique cada um dos episódios a um enquadramento
maior, u que aprendamos de forma final a backstory
de Fell ou que as pontas soltas (o assassino que escapa, a freira-Nixon, o
relacionamento com Mayko, etc.) sejam cerzidas satisfatoriamente. Essa é, de
resto, uma estratégia sobejamente conhecida, clássica, e que o próprio Ellis
utilizou noutros dos seus títulos, de Planetary
a Global Frequency, Moonknight e Desolation Jones (de novo, em alguns casos sem ter tido a
oportunidade de nos levar à resolução): iniciar com episódios singulares,
fechados em cada um dos comic books,
deixando algumas linhas de desenvolvimento de número para número, e depois
terminar com algo que reunifique todas essas partes. De resto, esta é uma
estratégia típica de alguns programas seriais de televisão, em que se sopesam
organizações episódicas plot-driven
mas garantindo suficientes elementos character-driven.
Ben Templesmith é um autor com um grande séquito de fãs, mas
a abordagem de design gráfico à la anos 1990s, em abusos de efeitos
Photoshop/David Carson/Ray Gun
dizem-nos pouco, uma vez que não disfarçam as grandes limitações figurativas do
autor, que não é tão estilizado como Ted McKeever nem tão moldado como Al
Columbia, apesar de viver num intervalo entre esses territórios. A iluminação
artificial e a apertada malha cromática é, todavia, perfeitamente adequada a
este espaço semi-construído. Aliás, é em grande parte a “incompletude” da
cidade de Snowtown que a torna interessante e, talvez memorável. Sabemos que
ela fica “do outro lado da ponte”, mas ao mesmo tempo que fica “a milhas de
qualquer lado”. É uma cidade depressivamente urbana, fria e nocturna, mas
estranhamento desprovida de multidões: as “outras pessoas” só aparecem quando
Fell se lhes atravessa à frente, como se fosse ele o filtro que nos permitisse
vê-las.
Avançando num ritmo staccato
tipificado de alguma literatura policial, e que o próprio Ellis tem cultivado
inclusive na literatura (Crooked Little
Vein, Gun Machine), e que
encontra no último capítulo uma forma diarística, feita de legendas narrativas
sob a forma de post-its do detective, Fell é um dos títulos com menos “acção”
do escritor, uma vez que é uma exploração das descidas mais frementes à baixeza
do ser humano, tema favorito do autor.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta de ambos
os títulos, e pelo envio das imagens empregues.
1 comentário:
Olá, Pedro
fala Marco Alves, da revista Sábado. Gostava de entrar em contacto contigo, mas não tenho o email. Se puderes, contacta-me por favor para marcoalves@sabado.cofina.pt
Abraço
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