O último volume da
colecção LowCCCost, da Chili Com Carne, dá continuidade a uma visão particular
de tipos de trabalho de banda desenhada e de discursos em torno da realidade
social. Apesar das diferentes angulosidades de cada um dos projectos,
poder-se-ia dizer que Kassumai, Zona deDesconforto e Boring Europa e,
agora, Lisboa é very very tipical,
procuram escavar um dos mais importantes elementos que usualmente caracterizam
a cultura associada ao zine: a identidade. (Mais)
Lisboa nasce a partir de Zona
de Desconforto, mas dá-lhe a volta. Ao passo que esse outro volume era
constituído por testemunhos de autores portugueses de locais “lá fora”, pelas
mais variadas razões, temos agora a perspectiva de cidadãos estrangeiros da
realidade portuguesa (que acaba por se ver reduzida a Lisboa, por falta de
contributos sobre outras cidades, apesar delas serem mencionadas). Se bem que
poderão encontrar mais informações noutros locais, indiquemos os autores
envolvidos, alguns dos quais poderão ser mais ou menos conhecidos, conforme
acompanhem fanzines, edições independentes ou projectos colectivos. Parecendo
uma anedota, temos autores quer da vizinha Espanha (Begoña Claveria, Elias Taño
e Matina Manya) quer do longínquo Japão (Bnk Ink), do país-irmão Brasil (Taís
Koshino e Téo Pitella) e, de outra parentela, a Roménia (Nicolae Negura). Da
Europa ainda vêm atravessam vozes de França (Alain Corbel), Suíça (Aude
Barrio), Croácia (Anica Godevarica), enquanto que da América do Sul atingem-nos
visões da Argentina (Alejandro Levacov) e Colômbia (Dileydi Florez). Mas
recordemo-nos, todas as perspectivas nascem de uma estadia menos ou mais
prolongada em Lisboa, quer estudando, quer trabalhando, quer simplesmente ou
até mais importantemente vivendo.
É inevitável que
procuremos sempre algum grau de magnificência na cidade em que habitamos, uma
espécie de desejo em redimirmos esse espaço – um traço em que julgamos ser
possível vislumbrar uma comunidade a que pertencemos – dos pecados que também
não deixamos de identificar. E é aí que esta atitude de “forasteiro”, de um
outro olhar externo, permite uma totalmente desapaixonada coça. Lisboa e
Portugal aqui não são tratados de forma alguma como paisagens de postais
ilustrados (ainda que existam momentos que rocem essa dimensão), como parece
ser cada vez mais a sua “missão” presente, na euforia do capitalismo turístico.
O problema não está na “entrada de divisas” ou no “estímulo à economia”, ou
ainda ao “empreendorismo”, mas a eventual desfiguração de uma cultura própria
em busca de soluções mais ou menos formulaicas “para inglês ver” (ou outras
nacionalidades). Essa realidade é abordada por alguns autores, ora desvendando
outras experiências ora revelando alguns dos problemas dessa formulação, ora
ainda desviando a atenção para outro aspectos, como o dos preconceitos e
ignorâncias dos portugueses face a outras sociedades, a mais real falta de
cultura e oportunidades de trabalho no nosso país e outras deficiências
estruturais.
Tal como ocorre
noutros projectos, e regressando à ideia de identidade, estes autores não estão
de forma alguma interessados em apresentar uma perspectiva objectiva. Aliás, os
instrumentos que empregam servem mesmo para sublinhar a ilusão de uma
perspectiva dessa natureza. Tomando uma posição pessoal e implicada, os autores
estão menos interessados em falar das coisas tal como elas são – seja a cidade de Lisboa e os seus habitantes,
Portugal e os seus empregos, etc. – do que abordarem um tema mais lato – por
hipótese, a precariedade, o preconceito, o racismo, a herança colonial, a
massificação do turismo, as diferenças culturais, etc. – mas revelando, ao
mesmo tempo, o quão importante é aquele que relata. Isto é, que quem fala é um
foco importante na maneira como algo é falado.
Isto leva a dois
resultados consequentes. Por um lado, cria um rosto real, tangível, endereçado
que nos permite entrar em diálogo imediato com o que está a ser discutido. Não
se procura nenhum tipo de concordância imediata, mas antes uma compreensão
dessa mesma perspectiva. Assim, a Lisboa ou Portugal que emerge destes retratos
pode revelar-se menos gloriosa do que muitas vezes “nós” pintamos. Em segundo
lugar, essas mesmas discussões não têm uma tonalidade pedagógica e
institucionalizada – lá está, supostamente objectiva. Reforçando o aspecto
dialogal.
Se, de acordo com
a inscrição na colecção LowCCCost, se poderá chamar Lisboa de uma antologia de “diários de viagem”, “travelogues”, eles
esão menos interessados em descrever e representar as viagens em si, as
hipotéticas paisagens exóticas ou os choques culturais dos encontros
proporcionados, do que a emergência de experiências profundamente pessoais, que
não apenas mudaram a vida dos seus autores enquanto aqui estavam (Alain Corbel, em várias ocasiões, foi autor
“nacional” em muitas mostras, outra autora está casada com um português, outros
fizeram de Lisboa o seu palco para o início de carreira, etc.) como poderão,
haja leitura e modelo, dos próprios leitores.
Nenhuma das curtas
histórias é particularmente dramática. Téo Pitella fala-nos de umas boleias
entre Lisboa e Porto. Dileydi Florez partilha connosco as experiências enquanto
trabalhadora de um call center em Portugal (e outras empresas). Uma mão-cheia
de autores mostram-nos os percursos diários e triviais da sua vida na cidade,
revelando espaços arreigados dos mais usuais guias. Outros exploram as relações
mais imediatas, mostrando que são as pessoas que, na sua mistura, ou salvam ou
condenam uma visão de um sítio. Seja como for, os episódios agregados nestas
páginas não conduzem a nenhum tipo de declaração absoluta e final, nem sequer
propõem ideias de progresso ou desenvolvimento. No então, se considerarmos
algumas lições da crítica cultural Sianne Ngai (de Ugly Feelings), entenderemos que este tipo de “desaceleração
drástica da linguagem, esta representação retórica da fatiga” é bastante
significativamente, inclusive de modo político. “Ao mostrarem o que é que
obstrui uma resposta estética ou crítica, porém, [os sentimentos] de pasmo e de
aborrecimento pedem-nos que nos perguntemos que tipo de formas de resposta a
nossa cultura nos providencia, e em que condições as providencia”. Isto quer
dizer que, menos do que contrapormos simplesmente uma visão contrária, ou uma
resposta que comece por “mas olha que”, ou “pelo menos isto”, ou “mas vocês
também coiso”, é olharmos bem fundo para nós mesmos.
Jogando um pouco
com o título do Boring Europa, e coma
língua inglesa baseando-nos num outro trabalho, de que daremos conta
atempadamente), é como se bore aqui
fosse menos “aborrecer” do que “perfurar”, procurando precisamente a revelação
da condições dos discursos normativos e, assim e consequentemente, ainda que de
forma tão tranquila, oferecer alternativas.
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