É possível que seja apenas uma coincidência, em que a força
das circunstâncias nos empurra para querer ver uma tendência em que ela pode
não se verificar, mas pensamos que poderão existir, de futuro, outros factores
que confirmem esta ideia. Se temos notado que no campo da ilustração para a
infância tem havido uma maior insistência, quer na produção nacional quer na
escolha editorial, num campo da ilustração que se pauta por princípios de design simplificado, de linhas
geometrizantes, cores planas, etc. (falámos alargadamente desse tema a
propósito das Cerejas), é necessário
não tornar a visão vendada a outras possibilidades de criação. Sobretudo quando
uma certa atenção mediática, expositiva e de crítica (e até de ensino) parece
querer confirmar aquele princípio em detrimento a outras abordagens. (Mais)
É nesse sentido que os livros que se seguem, a maioria de
autores contemporâneos, traz outras formas de ilustração: mais expressivas nos
seus pormenores de linha e cor, mais texturadas, abandonando-se a um maior prazer
do fazer momentâneo, com composições mais livres, de ritmos desiguais e em
vários graus de inter-relacionamento com a narrativa prometida pela sequência
ou pelos textos. Não se trata, de forma alguma, de querer encontrar aqui um
grupo de livros que vem criar novas hierarquias ou dicotomias de juízos de
valor (melhor/pior, mais importante/menos importante) mas antes um decisivo
contributo a uma diversidade de estratégias representativas, composicionais e
criativas e, consequentemente, também um contributo a uma educação mais lata
aos leitores mais pequenos.
O
que aconteceu à minha irmã? Simona
Ciraolo (Orfeu Negro) É difícil, no contexto português, não ler este
livro sem que nos venha à mente o livro de Ana Saldanha e Yara Kono, Eu só, só eu. Esse outro livro criava
uma narrativa a partir da perspectiva de uma criança habituada a ser a “única”
na família, exercendo um poder de propriedade sobre todos os objectos,
brincadeiras e relações, até ao momento em que nasceria uma nova criança, que
prometia alterar toda essa dinâmica. No livro do Ciraolo, temos uma construção
invertida, já que a protagonista-narradora é a irmã mais nova, que vê a mais
velha a atravessar transformações de comportamento que não compreende. Esta
criança é-o ainda, ao passo que a irmã, entrando na fase decisiva da
adolescência, começa a abandonar essa existência e começa a experimentar
facetas de uma vida adulta por vir. A manutenção do equilíbrio anterior – duas crianças
– é muito difícil de manter. Vemos a irmã mais nova a querer manter as mesmas
actividades de sempre (vestir o gato, festas do chá, saltar á corda), ao passo
que a irmã começa a nutrir interesses num círculo mais alargado e externo (ao
telefone comas amigas, escrevendo um diário, estar ao computador, etc.). A
autora italiana cria toda uma série de oposições claras colocando cada uma das
irmãs em páginas separadas, tirando partido dos spreads, e mesmo quando as coloca numa mesma página, cria uma dinâmica
entre os planos. No momento de reconciliação, mantém-se essa distribuição, mas
criam-se outras estratégias de travessia desse mesmo espaço, que tornam o livro
um exercício muito inteligente de composição. Utilizando um trabalho de linhas
simplificado, fluído e expressivo, a autora também explora grupos cromáticos
limitados para a máxima expressividade das emoções contraditórias (num momento)
e comuns (noutro) entre as duas irmãs. E é essa a sua espinha dorsal.
O
Sr. Tigre tornar-se selvagem. Peter
Brown (Orfeu Negro) Esta é uma daquelas histórias cuja leitura estará
particularmente suspensa nas atitudes societais de quem os lê (os pais) para
aqueles que começam a aprendê-las (os filhos). Podemos ler esta história tanto
como a narrativa da necessidade de respeitar a mais profunda natureza própria
de cada um, numa sociedade diversificada, como a do diálogo intercultural que nela
existe, como ainda numa eventual acomodação de fácil relativismo, em que o
conflito (o agon) acaba por ser posto
totalmente de lado. A história é relativamente linear, e tira partido daquela
natureza paradoxal do uso de animais antropomorfizados: existem tantos
elementos que dizem mais respeito à natureza usual dos animais envolvidos (um tigre
que ruge, um macaco que salta) como aqueles que espelham as regras dos humanos
(a etiqueta quando se bebe chá). A escolha de Brown em colocar esta história
numa espécie de sociedade inglesa eduardiana simplifica a mensagem, e torna o
desejo do sr. Tigre em ser selvagem mais simples e maniqueísta. Acabando por
perseguir o seu desejo, vai ao encontro daquela ideia tantas vezes repetida de
termos cuidado com o que desejamos, no caso presente, com o protagonista a
sentir-se só. Poderíamos dizer que há uma reterritorialização do desejo do
Tigre, o que não deixa de ser um aspecto acomodante, até conformista, ou pelo
menos de compromisso. Isso pode ser tanto positivo como negativo, e vai
depender da negociação dos leitores, e a sua integração em valores mais vastos.
Peter Brown, algo reminiscente de um clássico como Richard Scarry, tem uma
abordagem cuja base parece ser um desenho vectorial e geométrico, limpo, mas
depois ganhando uma dimensão texturada e robusta com o trabalho de cor,
utilizando uma paleta viva, variada e que torna clara a valorização dos
objectos – a sociedade de cores térreas e mortiças vs. as cores frescas e vivas
da natureza aberta. Aliás, a forma como o laranja vai irrompendo lentamente,
até à “explosão” do corpo desnudo do tigre (livre, natural, liberto) é bastante
expressivo. Depois segue-se um relativo controlo, mas o convite de liberdade
(mesmo que burguesa, Domingueira) mantém-se.
Balbúrdia. Teresa Cortez (Pato Lógico) fazendo
parte do projecto desta editora em dar “carta branca” aos autores em criarem um
livro “sem texto”, e em que as imagens tomam conta de todo o plano de
expressão. No caso de teresa Cortez, o princípio técnico é o dos “papéis
movíveis”, em que cada objecto é um pedaço recortado e cada novo plano visual é
fruto de manipulação e fotografia. Narrativamente, é clara a ideia: a
acumulação de brinquedos e objectos, e o princípio das crianças saltarem de
brincadeira em brincadeira, não se pautando pela arrumação do anterior, leva a
um crescente caos e bola de objectos. Mas no momento em que essa massa ganha
vida (curiosamente, fazendo recordar uma história do Plastic Man, em que dejectos ganham vida a sensibilidade), a
balbúrdia criada pelo pequeno protagonista começa um outro nível de confusão
(entre o inanimado e o animado, entre o controlado e o controlador, entre o
brinquedo e o terror, etc.). A autora, que temos “papéis cortados” como um dos
seus instrumentos principais, mas muitos dos quais nascem do seu próprio
desenho, criado a partir de rabiscos quase informais, recordando a abordagem do
próprio desenho infantil, é perfeito para dar a entender essa ambivalência
entre controlo e falta dele, entre a compreensão cabal das regras de construção
naturalista e a urgência de uma expressividade emergente, e que por isso se
alia à noção de brincadeira semi-distraída dos miúdos. Se Balbúrdia tem um
final não apenas “feliz” como “arrumadinho”, é bem possível que esse seja
apenas um ponto para voltar a desfiar o nó.
Baltasar,
o grande. Kirsten
Sims (Orfeu Negro) Sims é uma autora resplandecente, no sentido em
que é nítida a maneira holística com que deseja representar as paisagens das
suas histórias. Se nalguns aspectos a sua lavra é simples – uma pincelada
rápida desenha um tronco de árvore, uma raspagem faz aparecer um arbusto – há depois
um burilar paciente e atento aos fenómenos impressionistas que vão compondo a
maior complexidade das suas imagens – as luzes brilhando do outro lado de um
lago, o seu reflexo nas águas, a apertada malha da vegetação tropical, a água
borbulhando em torno do urso protagonista, uma paisagem urbana numa calma e
quente noite, e as estrelas cerradas de um céu nocturno desimpedido. Tal como
no caso do Sr. Tigre, temos aqui a
história de uma personagem que deseja acima de tudo dar mais espaço à sua
própria personalidade, e ao espaço necessário e mais indicado para o cumprir.
Depois se ser liberto do circo (visto como um espaço de interesse limitado),
Baltasar deambula pelas mais diversas paisagens, mas sempre isolado, até redescobrir
as suas raízes familiares. A força de Baltasar,
o grande, estará menos no seu
burilar narrativo do que precisamente na solidão introspectiva que esse enorme passeio
permite, não apenas ao urso violinista como aos próprios leitores. O facto da
autora tirar partido da partição das páginas para certas sequências curtas, a
divisão de páginas para dar ritmo às “travessias” e aos spreads para a entrega na paisagem, vai instilando ritmos diversos
à leitura, pautada pelas selváticas mas ao mesmo tempo delicadas pinturas, que
retêm as suas características manuais. Este livro tem também o interesse, a
nível editorial, de ser o primeiro da autora sul-africana, criado para a Orfeu
Negro (não é uma tradução, portanto, mas uma sua produção), o que torna esta
editora numa agente cada vez mais engajada – como já o era, com uma mão-cheia
de outras portuguesas – não apenas na reflexão de tendências, mas na sua activa
criação.
A
Baleia. Benji
Davies (Orfeu Negro) Davies tem uma assinatura estilística que também o
aproxima de Scarry (mas mais ainda de Walter Trier), como no caso de Brown, mas
parece ter dois registos, um digamos mais “comercial” (Bizzy) e outro, mais autoral, em que muitas das características
visíveis do trabalho manual são visíveis. The
StormWhale, título original deste livro, inscreve-se nesse segundo registo:
o contraste entre as figuras, desenhadas a partir de largas linhas estilizadas,
e os fundos mais naturais, variegados e pormenorizados, criando relações
legíveis entre os planos primeiro e de fundo, contribuindo para a fluidez da
narrativa, toda equilibrada para a progressão, e deixando claras as relações
entre o pulso e os materiais riscadores, dão um tom delicado e apelativo a
todas as páginas. O texto é praticamente repetitivo das acções delineadas,
sendo quase desnecessário, tendo em conta também a forma inteligente como o
autor sabe conduzir os olhos pelas páginas, sobretudo as cenas mais acabadas,
como as paisagens dilatadas ou os interiores, cheios de detalhes. Se a história
se parece centrar no salvamento de uma baleia bebé pelo jovem Noé, há como que
uma segunda história oculta na mais visível. Essa história falará do isolamento
de Noé, que não tem irmãos, parece não ter mãe e cujo pai tem de se ausentar
durante muito tempo, e nas suas brincadeiras solitárias (desenhar na areia, apanhar
conchas, escutar música). A baleia surge assim como uma disrupção dessa rotina
mas cuja resolução permitirá uma reaproximação ao pai e, por reflexo, à importância
da entrega à vida familiar, seja esta constituída de que forma for.
O
recado de Rosie. Maurice
Sendak (Kalandraka) Para além de todos os anteriores autores,
contemporâneos, a revisitação de “clássicos” que não obedeçam àquela tendência streamlined é necessária. Uma vez que os
picture books principais de Sendak já
foram publicados entre nós, é tempo de entrar no campo da sua literatura
ilustrada, e a escolha de um livro isolado (por oposição a uma série como a de Little Bear, maravilhosa e emotiva, e
coma qual este estabeleceria uma relação mais directa) é cuidadosa e
inteligente. The sign on Rosie’s door foi publicado em 1960, o terceiro
livro a solo do autor, e um pouco antes do seu livro mais famoso. Este livro
que agora nos é dado a conhecer daria origem a outras variações
transmediáticas, como um “tv special” e um musical, Really Rosie, ambos de 1975
(com elementos de outras histórias de Sendak), e é bem menos fantasioso do que
as obras mais conhecidas, ou melhor, a fantasia é disposta num “modo realista”.
As personagens aqui estão plenamente ancoradas num quadro realista, de facto, com
as famílias plenamente compostas, e as “crises” deslocadas antes para um quadro
social e identificável, nas ruas de Brooklyn, habitadas por famílias (judaicas?)
de uma classe média trabalhadora. Todo o livro, composto por vários capítulos, com
texto contínuo, descritivo e cheio de diálogos em torno e spot illustrations concentradas, a três cores, espraia-se ao longo
de uns quantos dias, mostrando um grupo de miúdos a brincarem nas ruas da
cidade, e lançando-o num território de contornos em fluxo, tornando-o mesmo numa
obra gémea à de outros autores de literatura gráfica, como Will Eisner, William
Gropper, Alan Dunn, e até mesmo Edward Gorey, por absorver certos traços da
cultura local – o teatro musical, sobretudo, com Rosie querendo fazer-se passar
por uma estrela do music hall, Alinda
– quintessencialmente nova-iorquina. A vivência urbana, os espaços urbanos
abertos (que Sendak representa apenas mostrando um alpendre, umas escadas, uma
porta de cave, e deixando o resto do plano em branco), e detalhes sociais (a decoração
de um interior, o convívio entre família numa noite de Verão, os objectos
empregues) tudo isso cria um retrato americano, fundo das fantasias e
brincadeiras doidivanas a que as crianças se entregam para dissipar o
aborrecimento. A opção (não criticável, todavia) de traduzir o 4 de Julho pelo
Carnaval na brincadeira final poderá eventualmente disfarçar o jogo magnífico
que o autor apresenta, subtil, do orgulho americano nos seus símbolos, tirando
partido dos objectos e das cores (mas também dos sons e fantasia dos miúdos
protagonistas), mas não oculta a humanidade sensível de um livro que pode
preparar o terreno a novos volumes do autor.
Nota final: agradecimentos a todas as editoras mencionadas,
pela oferta dos livros.
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