Não é a primeira vez que Fernando Pessoa se vê a si mesmo ou
aos seus poemas transmutados em matéria passível de uma vida gráfica, seja ela
em banda desenhada, ilustração ou outras disciplinas que partilham fronteiras
com campos considerados, as mais das vezes, como populares. Todavia, a
sua presença é usualmente a de uma personagem em passagem, um fantasma que traz
algum peso de referência a uma história que não lhe dirá respeito de forma
directa (nós próprios o fizemos numa história curta, lavrada há uns meses). É
possível que uma das mais marcantes presenças neste território tenha sido
quando interrompeu o fluxo dos Piratas do Tietê, de Larte, num dos
episódios mais memoráveis de quem os lia à época. E mais recentemente, foi alvo
de uma fantasia genérica no projecto A vida oculta de Fernando Pessoa,
de André Morgado e Alexandre Leoni, sobre o qual esperamos alguma vez escrever.
Para além disso, e para não entrarmos no campo do cinema, recordemo-nos como
não apenas David Soares teceu uma teia alternativa e mistérica com o romance A
conspiração dos antepassados, mas já antes Pessoa se havia digladiado com
um inimigo portentoso num livro que fez algum furor num pequeno círculo
literário no final dos anos 1980: Fernando Pessoa contra o Homem-Aranha e
outras istórias, de Rui de Souza Coelho. A pessoa fictícia do Pessoa real,
seja ele qual for, não é alheia a estas dimensões. (Mais)
Todavia, é bem possível que este seja o primeiro livro em
que se tenta lavrar uma narrativa completa que acompanha a par e passo a vida
de Fernando António Nogueira Pessoa, a pessoa, e obviamente que todos os seus
poemas que foi levando lá dentro. As aventuras..., apesar do seu título
clássico e aparentemente advindo do território mais convencional da banda
desenhada, de forma alguma se coaduna com os princípios das biografias
pedagógicas, as adaptações literárias ou os guias de consulta simples que
poderiam ser providenciados por esta linguagem, muitas vezes assacando-a a um
propósito utilitarista e simplista. Este não é um livro que se possa “consultar
brevemente” antes de um exame.
No entanto, a compreensão de que Miguel Moreira procura
juntar as mais díspares linhas possíveis torna complexa a sua simples
categorização. Não se trata, com efeito, somente de um reconto da cronologia
biográfica do homem. Não veremos aqui uma re-apresentação “naturalista” dos
factos da vida familiar e mundana do poeta. Acompanhamos, de forma forçosamente
fragmentária, porém ambiciosa (e aturada, desde pelo menos 2007, início do
blog), a sua criação literária, por via de citações indirectas (no interior das
legendas separadas das vinhetas com cenas) e directas (auscultando o momento da
escrita, ou mesmo de uma declamação imaginária). Grande parte da matéria
textual, por vezes esmagadora, à la Jacobs, não abandonando jamais a
importância do seu ponto de partida, é da lavra de Pessoa, aqui integrado na
acção e imaginação do Pessoa imaginado. Intercalam-se, aqui e ali, já pela
assinatura de Miguel Moreira, considerações sobre os momentos que pautam a
sociedade portuguesa de então, alguns dos episódios com maior parcimónia do que
outros (a fase que envolve a ditadura de João Franco, o assassinato de D.
Carlos, o surgimento da República os conturbados tempos seguintes são
particularmente estudados), e os quais podem por vezes reflectir-se nas
opiniões de Pessoa, partilhadas com colegas e amigos, ou nos seus escritos,
publicados ou inéditos, literários, políticos, críticos ou outros. As
aventuras, portanto, estará mais próximo do que se chamará uma “biografia
intelectual”, ou até “anímica”.
Para além dessas linhas, digamos, “reais”, tangíveis – isto
é, que são tecidas a partir dos factos e da pesquisa que diz respeito à
história -, Moreira acrescenta ainda outras linhas, envolvendo o que pode ser
visto como os sonhos do poeta, as suas projecções e mitificações, do corvo de
Poe ao recorrente surgimento de uma paisagem de elementos maçónicos (o sol e a
lua, um muro, duas colunas, um compasso, uma corda, uma escada, etc., e que
podem ser entendidos como um fio vermelho num impulso desde sempre presente em
Fernando Pessoa), um muro por construir, uma paisagem bucólica, uma mala de
viagem, estantes cheias de livros, e, claro está, o estranho jogo especular e
de projecção que dará origem aos heterónimos de Pessoa.
A análise a par e passo destas desdobragens levaria a
estender este texto a um nível impossível. Bastará dizer que é necessário
ser-se atento à forma como o autor deste livro coloca ao nosso alcance um
dispositivo visual que traduz de forma mais ou menos nítida as distâncias
procuradas entre Pessoa e aqueles outros que assinam por eles as produções dele
mesmo. A diferença entre um pseudónimo e um heterónimo nota-se menos pela
distância topológica, de acordo com o mecanismo que Moreira propõe, do que
pelas formas de distância de representação entre o
Pessoa-que-escreve-na-realidade, digamos de modo deselegante, e o
Outro-que-escreve. Numa primeira fase, vemos um pessoa como Byron, escrevendo
com uma pena. Pessoa escreve e imagina num balão de pensamento esse
Pessoa-Byron escrevendo. Numa rápida sequência de duas “tiras” (pgs. 58-59),
Pessoa-Byron, no interior do pensamento e Pessoa, pensa-sonha num segundo
Pessoa-Pessoa escrevendo com pena. É o corvo, imaginário mas fora desses sonhos
encadeados, que (os) desencadeia, apagando o Pessoa-Byron e permitindo a Pessoa
que sonhe directamente com outro(s) Pessoa(s), num processo que terá muitas
variações e recombinações.
Desdobramento-mor no interior do livro, encontram-se as 11
páginas que, após uma folha de rosto, introduzem As aventuras de Bernardo
Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa... Haverá pelo menos
duas formas de interpretar este trecho do livro, claramente apartado, não
apenas pela “capa” interior, que a separa, como pelo facto das pranchas
regulares (o mecanismo das tiras, que descreveremos adiante, desaparece)
estarem totalmente desprovidas de matéria textual (com a excepção das palavras
incidentais). A primeira é compreender este episódio, de uma banalidade extrema
e cuja circularidade apenas extrema essa natureza, como uma projecção
heteronímica de Soares ou Vicente Guedes, ou outras das flutuações de nomes
previstos para o amanuense de quem sobreviria o imenso Desassossego. A
vida repartida entre o acordar, escrevinhar para si, trabalhar, comer e deitar
seria a epopeia de nada de onde emergiria essa obra maior da literatura
portuguesa. A segunda é entender como sendo um momento em que, n'As
aventuras, seguimos antes de forma pautada e ininterrupta a vida quotidiana
do escrivão Fernando António Nogueira Pessoa, sem quaisquer encontros
literários, sem lhe auscultar a mente, sem sabermos da contextualização
histórica. Apenas estamos presos à observação do vaivém diário deste homem.
Seja qual for a integração que se faça em relação à vida e à obra (ou a ambas)
de Pessoa, o trecho de Bernardo Soares é uma espécie de último hausto, lento e
cansado, antes do fecho do livro. Ele interrompe uma frase de Pessoa,
escrevendo, e desaparece para dar lugar ao que parece ser já um balanço de fim
de vida. Essa qualidade de truncamento, que não deixa de ser misteriosa perante
toda a economia do livro, é espelhada num não menos misterioso detalhe, a de
representar Pessoa escrevendo sentado, como se não tivesse uma perna: que
metáfora por dizer é essa, que espelha ela do homem?
Não há uma grande concentração, dramática e espectacular,
nos acontecimentos que poderiam ser vistos como os mais marcantes (ou ou mais
famosos, apesar da nossa escolha óbvia em destacar um episódio associado à Orpheu, acima) na vida de Pessoa. Tudo passa, vem e vai com a mesma intensidade,
apenas um contínuo de momentos iguais. Poder-se-ia dizer que a cena da morte,
no final, é abrupta. Mas a morte é sempre abrupta. E não estava ela desde o
início a espreitar por trás das cortinas?
Ao
longo da narrativa, multitextual e atenta a tantas dimensões, o autor da banda
desenhada aceita as explicações que o
próprio Pessoa deixou nos seus escritos, cartas e apontamentos. A génese do
poema Abdicação, por exemplo (pg.
101), segue tal qual o mito que o poeta deixou lavrado, e na banda desenhada
surge como mais um passo ao desdobramento verdadeiramente heteronímico futuro.
E as recorrentes cenas de Pessoa escrevendo em pé a sua poesia, ortónima ou
heterónima, na sua alta cómoda, recordam o mito da génese de Alberto Caeiro na
famosa carta a Casais Monteiro, que não corresponde a alguma da arqueologia
textual que viria ser efectuada mais tarde, no acesso ao seu famoso baú, quase
de infindável produção mas de dificultosa navegação. Moreira dá caso dessas
hesitações nas datas possíveis do surgimento do poeta bucólico (pgs. 112 e
seguintes), num contínuo exercício de re-combinações de temas e símbolos
visuais e comportamentos da personagem, mas reforça-se essa dimensão mítica (ou
mesmo mistificadora).
Em termos estritamente narratológico-estruturais, Miguel
Moreira faz construir a sua narrativa de acordo com a lógica retórica da tira
de banda desenhada. Cada episódio é um “bloco” unitário, com um título próprio,
e lavrado a partir do princípio formal das duas tiras de três vinhetas cada,
operando depois variações desse ponto de partida. Há uma espécie de punchline,
mas essa conclusão não é de forma alguma nem humorística (ou não de um modo
claro e convencional) nem totalmente satisfatória (do ponto de vista ainda da
convenção). Há uma coerência nesse ritmo, mas é um ritmo desconjunto, cuja
acumulação linear não leva tampouco a uma organização clássica. O livro deve
ler-se de seguida, e há bastos “blocos” que iniciam um movimento de ideias e
acontecimentos que desembocam nos seguintes, mas tanto se podem ver essas
alianças como necessárias quanto como contingentes. Se a forma original se
poderia prestar a uma leitura ritmada à medida da sua publicação na internet
(blog do projecto, que merece ser lido por não apenas desvendar o processo da
criação do livro como das decisões e textura poética, cultural, e política, de
Miguel Moreira, reforçando todas as leituras), a sua colação num livro permite múltiplas escolhas de leitura
(se bem que a leitura contínua e ininterrupta seja, talvez, difícil de
alcançar). Mas a intersecção entre episódios da vida trivial do poeta,
interrompendo a poesia, e os fragmentos textuais todos se cruzando, criam uma
impossibilidade de, mesmo numa leitura linear, ser-se linear.
O desenho de Miguel Moreira apresenta toda uma série de
limitações e simplificações, que o autor burila, do interior delas, de forma a
libertar daí a mais variada prestação. Não há grandes variações em termos de
escalas de planos, ângulos e composição, salvo mínimas excepções (que na
verdade revelam a “fórmula” do seu desenho), recordando de certa forma um
“gosto” da tira dos jornais norte-americanos do princípio do século XX, em que
havia uma abordagem ao mundo diegético como se um proscénio se tratasse – reforçado
pelas cortinas que se dobram, revelando um “por trás” que jamais veremos, e de
onde espreita por vezes a Morte -, o que não deixa de ser adequado a este
complexo psicodrama. O Pessoa de Moreira é desenhado de uma maneira quase
minimal, senão num “toque infantil”, límpido (uma linha de espessura uniforme
para todos os objectos, e que as cores de Catarina Verdier corroboram, nas suas
prestações planas e vivas, delicadas e manuais, feitas à moda antiga da
animação e separação de cores) tornando-o algo distinto das demais personagens,
muitas vezes mais próximas, na assinatura do artista, dos seus rostos reais.
Pessoa surge assim como um “boneco” ultra-simplificado, de olhos arregalados,
grandes, e todos em oval branca com a pequena pupila. Mesmo quando passa a usar
óculos, estes ganham apenas forma nas hastes, desaparecendo as lentes nas
linhas que compõe os olhos. Pessoa é uma cifra, portanto, e continuamos num
território adequado à sua vida e obra.
Essa simplificação, porém,
permite deixar de modo mais claro os mecanismos da repetição e variação.
Associada portanto essa estrutura com a realidade cheia das informações visuais
e os grandes blocos de texto do livro, estão criadas essas formas plenas que melhor traduzirão aquele “estado de
rapidez ideativa tão intenso” de que Pessoa falara numa carta (a Mário Beirão).
Já no no seu Impressões do
Crepúsculo, Pessoa escrevera “O Mistério sabe-me a eu ser
outro”. As aventuras de Fernando Pessoa, escritor universal... desvelam
parte desse mistério, precisamente mostrando os Outros de Pessoa.
Nota final: agradecimentos aos
autores e à editora, pela oferta do volume. As imagens foram colhidas do blog
do livro.
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