4 de abril de 2016

La colère de Fantômas, 3 vols. Olivier Bocquet e Julie Rocheleau (Dargaud)



É bem possível que tenha sido em relação a Fantômas que Freud se referia, no seu ensaio “Sobre o narcisismo: uma introdução”, quando escreveu a seguinte passagem: “…mesmo os grandes criminosos e os humoristas, conforme representados na literatura, atraem nosso interesse pela coerência narcisista com que conseguem afastar do ego qualquer coisa que o diminua. É como se os invejássemos por manterem um bem-aventurado estado de espírito - uma posição libidinal inatacável que nós próprios já abandonamos”. Ora, será precisamente esse “bem-aventurado estado de espírito” que informaria, antes e depois, as personalidades de todos os heróis (no seu sentido literário, não moral) que alimentariam os ribeiros da cultura popular? Encontramos neles algum tipo de prazer (“posição libidinal”) que não poderíamos nutrir, enquanto cidadãos de uma civilização imbuída dos seus valores simbólicos (“já abandonamos…”)? (Mais) 

Desses super-homens, que estão para além da moral, não há um perigo mais acutilante em nos apaixonarmos e seguirmos os “vilões”, mesmo quando não há dúvida alguma, na economia da narrativa, de que são os “maus da fita”? É isso o que nos parece acontecer, de Arsène Lupin a Darth Vader, de Fantômas a Hannibal, todos eles absolutamente seguros de si, “narcisisticamente coerentes”. A passagem deste prazer para uma certa categoria de heróis não é difícil de imaginar. O escritor destes livros, Olivier Bocquet, na sua introdução ao primeiro volume, avança a ideia de que Fantômas seria o “avó secreto” de todos os super-heróis, criando uma filiação directa entre esse vilão mascarado e de nome tremendo e o aventureiro de Lee Falk, primeiríssima personagem da banda desenhada norte-americana a adoptar um uniforme colado ao corpo, justo e colorido (baseando-se em muitos dos trajes dos artistas circenses, homens-fortes e de outros truques fantásticos, da época), e de uma justiça acima das dos homens e marcadamente máscula. O Fantasma surgiu em 1936, e recordemo-nos que seriam 3 anos depois que surgiria a primeira personagem com capacidades físicas realmente “super”, mas o modelo havia já sido experimentado noutros géneros e territórios.

Fantômas foi criado em 1911 e daria início de modo directo a toda uma progenitura imensa, que na banda desenhada teve as suas dimensões nos fumetti gialli (Diabolik, Demoniak, etc.), versões femininas (da admirável-detestável versão de Victor Mora e Annie Goetzinger, Felina, à infanto-juvenil Fantômette , já com  François Craenhals) e até experimentações contemporâneas artísticas, como é o caso do Démoniak de Alagbé. E ainda houve uma versão mexicana nos anos 1970 que levaria a um dos objectos literários não-identificados mais agudos de sempre, Fantomas contra os vampiros multinacionais, de Júlio Cortázar (editado cá pela Teorema, e de cuja recente edição norte-americana teremos oportunidade de falar). Todavia, a sua fortuna foi maior cinematograficamente, onde terá sobrevivido na sua versão de cara azul, tal como protagonizado por Jean Marais em três filmes entre 1964 e 1967, criando uma visão bem distinta daquela prevista quer nas novelas originais, que fariam as delícias de tanto leitores populares como de intelectuais da época (veja-se a colecção de citações no final logo do primeiro volume, entre as quais Blaise Cendrars o chama de “Eneida dos tempos modernos”), como também uma das primeiras obras-primas do serial francês, o Fantômas de Feuillade de 1913. O Fantômas de Marais, tal como aquele das historietas mexicanas, eram mais informadas por um desejo de o aproximar de figuras tais como as de James Bond, Batman ou outros paradoxais Robin Hoods empregando a tecnologia para levar a cabo os seus crimes “limpos”.

Se bem que tenham existido algumas adaptações directas da obra de Pierre Souvestre e Marcel Allain, como aquela cumprida por Luc Delisse e Claude Laverdure nos anos 1990, que tentava seguir com instrumentos mais modestos as novelas originais, é La colère de Fantômas aquela que pretende re-apresentar a personagem, a um só tempo bem ancorada na sua época própria e no seu preciso contexto original literário como fortalecida por estratégias de representação, estruturação e visualidade do século XXI. No que diz respeito à primeira parte dessa afirmação, referimo-nos à utilização das intrigas, personagens e “complementos circunstanciais” dos escritos dos anos 1910, mas concantenando-nos numa única linha de desenvolvimento, criando uma superfície contínua e coerente.

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Esta trilogia é-o, portanto, verdadeiramente. Isto é, não se trata somente de um conjunto de três livros em que existiriam as mesmas personagens e triangulações entre elas, apresentando-se três aventuras debuxadas. É uma história coesa, em que todos e quaisquer elementos se encadeiam entre si, criando um arco que dura décadas (de um breve prólogo em 1895 à “resolução” depois de 1911), agregando e separando em linhas paralelas as personagens quando necessário, e nos é simplesmente apresentado em três volumes (ditados pelos formalismos convencionais do mercado clássico franco-belga). Repare-se como as três capas, alinhadas, criam uma pequena narrativa e um arco de desenvolvimento quase claro. Mesmo que haja aspectos em que se poderá dizer que é uma história irresolúvel, pelo menos do que fiz respeito ao “caso de polícia” central, não existindo propriamente um final feliz (imitando precisamente os mecanismos originais de Souvestre e Allain), os autores constroem ainda assim uma linha fechada. E apenas no fim se atrevem a retirar ligeiramente a última máscara ao Rei do Crime, ao líder dos “apaches”, ao campeão dos disfarces, para revelar – não a origem, não as razões, mas apenas e tão-somente a possibilidade – o laivo trágico da personagem.

Todos os elementos clássicos se encontram aqui. O implacável, cruel e facínora Fantômas, de identidade desconhecida – ou até pouco importante, já que ele é Fantômas -, o inspector Juve, o jovem Fandor que começa a trabalhar no jornal, apoiando a polícia, os nomes Beltham, Gurn, Rambert, esgrimidos ao longo da intriga. Os disfarces, as reviravoltas rocambolescas, as cenas de acção, o uso da tecnologia (então) de ponta, o frisson e a violência sem limites espraia-se nestas páginas. O profundo desprezo por qualquer tipo de autoridade – excepto aquela ditada pela vontade própria, o narcisismo desabrido do grão-criminoso -, namorando um anarquismo, mas sem a mesma consciência política ou visão utópica. Não estamos perante uma obra que tente dourar a pílula da qualidade violenta das novelas de Souvestre e Allain, que tanto seduziriam os leitores da época. Bem pelo contrário, devolvem-na.

As imagens de Rocheleau são de uma estilização quase extrema, ainda que mantenha a legibilidade das suas marcas. Está próxima de um Bézian, se bem que mais espectacularizado, numa abordagem em que Sylvain Chomet e Filipe Andrade poderiam ser outros termos de comparação: corpos estendidos, aparentemente desarticulados (precisamente por haver uma super-articulação), uma expressividade que os atravessa a todas as linhas. É a sua qualidade dinâmica, riscada, corroborada por cores vivas, nada naturais, contrastantes e drásticas que incutem uma espécie de urgência e ligeireza apropriada à trama rápida (assim como o uso alternado de fundos brancos e negros).

As escolhas que Rocheleau (a solo ou com Boucquet) faz a nível da composição são algo clássicas, é certo, mas o que se procura é antes de tudo uma aproximação legível e equilibrada. Seguindo aquilo que Peeters chamaria de “uso convencional” e Chavanne de “semi-regular”, as vinhetas vão procurando as alterações necessárias para melhor representar a cena que encerram. Existem assim algumas páginas felizes, em termos de ritmo, sobretudo quando aliadas em particular à velocidade e dinamismo que se pretende nos momentos mais plenos de acção. Apenas em momentos-chave, com parcimónia e justeza, a artista canadiana espoleta o uso de estratégias mais dramáticas: planos oblíquos, perspectivas através de objectos, onomatopeias atravessando os planos, vinhetas maiores, splash pages, etc.


Os autores também tiram partido quanto baste de pequenas referências da época para tornar mais complexa a rede intertextual e cultural possível: Méliès e Feuillade participam da acção, Proust é referenciado, há aspectos tecnológicos sistematicamente empregues pela sua novidade. Essa é uma estratégia de densificação referencial que se tem verificado como uma tendência crescente há umas duas décadas (Le diable amoreux seria uma boa comparação), e não estando os autores a alterar essa textura, fazem-no com exactidão. Os dois estudiosos da personagem que prefaciam o segundo volume recolocam-no no seu tempo, e alertam para o facto de que estamos a falar de uma violência anterior àquela que seria experienciada na Europa por duas guerras mundiais. Fantômas não é uma personagem delicada. É negro e crudelíssimo o prazer que ele nos proporciona, mesmo que estejamos a torcer por ele. E essa verve é-nos devolvida em Colère. 

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