É bem possível que
tenha sido em relação a Fantômas que Freud se referia, no seu ensaio “Sobre o
narcisismo: uma introdução”, quando escreveu a seguinte passagem: “…mesmo os grandes
criminosos e os humoristas, conforme representados na literatura, atraem nosso
interesse pela coerência narcisista com que conseguem afastar do ego qualquer
coisa que o diminua. É como se os invejássemos por manterem um bem-aventurado
estado de espírito - uma posição libidinal inatacável que nós próprios já
abandonamos”. Ora, será precisamente esse “bem-aventurado estado de espírito”
que informaria, antes e depois, as personalidades de todos os heróis (no seu sentido literário, não
moral) que alimentariam os ribeiros da cultura popular? Encontramos neles algum
tipo de prazer (“posição libidinal”) que não poderíamos nutrir, enquanto
cidadãos de uma civilização imbuída dos seus valores simbólicos (“já
abandonamos…”)? (Mais)
Desses super-homens,
que estão para além da moral, não há um perigo mais acutilante em nos
apaixonarmos e seguirmos os “vilões”, mesmo quando não há dúvida alguma, na
economia da narrativa, de que são os “maus da fita”? É isso o que nos parece
acontecer, de Arsène Lupin a Darth Vader, de Fantômas a Hannibal, todos eles
absolutamente seguros de si, “narcisisticamente coerentes”. A passagem deste
prazer para uma certa categoria de heróis não é difícil de imaginar. O escritor
destes livros, Olivier Bocquet, na sua introdução ao primeiro volume, avança a
ideia de que Fantômas seria o “avó secreto” de todos os super-heróis, criando
uma filiação directa entre esse vilão mascarado e de nome tremendo e o
aventureiro de Lee Falk, primeiríssima personagem da banda desenhada
norte-americana a adoptar um uniforme colado ao corpo, justo e colorido
(baseando-se em muitos dos trajes dos artistas circenses, homens-fortes e de
outros truques fantásticos, da época), e de uma justiça acima das dos homens e
marcadamente máscula. O Fantasma surgiu em 1936, e recordemo-nos que seriam 3
anos depois que surgiria a primeira personagem com capacidades físicas
realmente “super”, mas o modelo havia já sido experimentado noutros géneros e
territórios.
Fantômas foi criado
em 1911 e daria início de modo directo a toda uma progenitura imensa, que na
banda desenhada teve as suas dimensões nos fumetti
gialli (Diabolik, Demoniak, etc.), versões femininas (da
admirável-detestável versão de Victor Mora e Annie Goetzinger, Felina, à infanto-juvenil Fantômette , já com François Craenhals) e até experimentações
contemporâneas artísticas, como é o caso do Démoniak de Alagbé. E ainda houve uma versão mexicana nos anos 1970 que
levaria a um dos objectos literários não-identificados mais agudos de sempre, Fantomas contra os vampiros multinacionais,
de Júlio Cortázar (editado cá pela Teorema, e de cuja recente edição
norte-americana teremos oportunidade de falar). Todavia, a sua fortuna foi
maior cinematograficamente, onde terá
sobrevivido na sua versão de cara azul, tal como protagonizado por Jean Marais em
três filmes entre 1964 e 1967, criando uma visão bem distinta daquela prevista
quer nas novelas originais, que fariam as delícias de tanto leitores populares
como de intelectuais da época (veja-se a colecção de citações no final logo do
primeiro volume, entre as quais Blaise Cendrars o chama de “Eneida dos tempos modernos”), como
também uma das primeiras obras-primas do serial
francês, o Fantômas de Feuillade de 1913. O Fantômas de Marais, tal como aquele
das historietas mexicanas, eram mais informadas por um desejo de o aproximar de
figuras tais como as de James Bond, Batman ou outros paradoxais Robin Hoods
empregando a tecnologia para levar a cabo os seus crimes “limpos”.
Se bem que tenham
existido algumas adaptações directas da obra de Pierre Souvestre e Marcel Allain,
como aquela cumprida por Luc
Delisse e
Claude Laverdure nos anos
1990, que tentava seguir com
instrumentos mais modestos as novelas originais, é La colère de
Fantômas aquela que pretende re-apresentar a personagem, a um só tempo bem
ancorada na sua época própria e no seu preciso contexto original literário como
fortalecida por estratégias de representação, estruturação e visualidade do
século XXI. No que diz respeito à primeira parte dessa afirmação,
referimo-nos à utilização das intrigas, personagens e “complementos
circunstanciais” dos escritos dos anos 1910, mas concantenando-nos numa única
linha de desenvolvimento, criando uma superfície contínua e coerente.
Adicionar legenda |
Esta
trilogia é-o, portanto, verdadeiramente. Isto é, não se trata somente de um
conjunto de três livros em que existiriam as mesmas personagens e triangulações
entre elas, apresentando-se três aventuras debuxadas. É uma história coesa, em
que todos e quaisquer elementos se encadeiam entre si, criando um arco que dura
décadas (de um breve prólogo em 1895 à “resolução” depois de 1911), agregando e
separando em linhas paralelas as personagens quando necessário, e nos é
simplesmente apresentado em três volumes (ditados pelos formalismos
convencionais do mercado clássico franco-belga). Repare-se como as três capas,
alinhadas, criam uma pequena narrativa e um arco de desenvolvimento quase
claro. Mesmo que haja aspectos em que se poderá dizer que é uma história
irresolúvel, pelo menos do que fiz respeito ao “caso de polícia” central, não
existindo propriamente um final feliz (imitando precisamente os mecanismos
originais de Souvestre e Allain), os autores constroem ainda assim uma linha
fechada. E apenas no fim se atrevem a retirar ligeiramente a última máscara ao
Rei do Crime, ao líder dos “apaches”, ao campeão dos disfarces, para revelar –
não a origem, não as razões, mas apenas e tão-somente a possibilidade – o laivo
trágico da personagem.
Todos
os elementos clássicos se encontram aqui. O implacável, cruel e facínora
Fantômas, de identidade desconhecida – ou até pouco importante, já que ele é Fantômas -, o inspector Juve, o jovem
Fandor que começa a trabalhar no jornal, apoiando a polícia, os nomes Beltham,
Gurn, Rambert, esgrimidos ao longo da intriga. Os disfarces, as reviravoltas
rocambolescas, as cenas de acção, o uso da tecnologia (então) de ponta, o
frisson e a violência sem limites espraia-se nestas páginas. O profundo
desprezo por qualquer tipo de autoridade – excepto aquela ditada pela vontade
própria, o narcisismo desabrido do grão-criminoso -, namorando um anarquismo,
mas sem a mesma consciência política ou visão utópica. Não estamos perante uma
obra que tente dourar a pílula da qualidade violenta das novelas de Souvestre e
Allain, que tanto seduziriam os leitores da época. Bem pelo contrário,
devolvem-na.
As imagens de
Rocheleau são de uma estilização quase extrema, ainda que mantenha a
legibilidade das suas marcas. Está próxima de um Bézian, se bem que mais
espectacularizado, numa
abordagem em que Sylvain Chomet e Filipe Andrade poderiam ser outros
termos de comparação: corpos
estendidos, aparentemente desarticulados (precisamente por haver uma
super-articulação), uma expressividade que os atravessa a todas as linhas. É a sua qualidade dinâmica,
riscada, corroborada por cores vivas, nada naturais, contrastantes e drásticas
que incutem uma espécie de urgência e ligeireza apropriada à trama rápida
(assim como o uso alternado de fundos brancos e negros).
As escolhas que
Rocheleau (a solo ou com Boucquet) faz a nível da composição são algo clássicas,
é certo, mas o que se procura é antes de tudo uma aproximação legível e
equilibrada. Seguindo aquilo que Peeters chamaria de “uso convencional” e
Chavanne de “semi-regular”, as vinhetas vão procurando as alterações necessárias
para melhor representar a cena que encerram. Existem assim algumas páginas
felizes, em termos de ritmo, sobretudo quando aliadas em particular à
velocidade e dinamismo que se pretende nos momentos mais plenos de acção. Apenas
em momentos-chave, com parcimónia e justeza, a artista canadiana espoleta o uso
de estratégias mais dramáticas: planos oblíquos, perspectivas através de
objectos, onomatopeias atravessando os planos, vinhetas maiores, splash pages, etc.
Os autores também tiram
partido quanto baste de pequenas referências da época para tornar mais complexa
a rede intertextual e cultural possível: Méliès e Feuillade participam da
acção, Proust é referenciado, há aspectos tecnológicos sistematicamente
empregues pela sua novidade. Essa é uma estratégia de densificação referencial
que se tem verificado como uma tendência crescente há umas duas décadas (Le diable amoreux seria uma boa
comparação), e não estando os
autores a alterar essa textura, fazem-no com exactidão. Os dois estudiosos da
personagem que prefaciam o segundo volume recolocam-no no seu tempo, e alertam
para o facto de que estamos a falar de uma violência anterior àquela que seria experienciada na Europa por duas guerras
mundiais. Fantômas não é uma personagem delicada. É negro e crudelíssimo o
prazer que ele nos proporciona, mesmo que estejamos a torcer por ele. E essa
verve é-nos devolvida em Colère.
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