O surgimento, recepção e impacto de Unflattening têm sido significativos, se bem que algo confusos. O
que nós próprios cumpriremos não deixará de partilhar algumas das contradições
que a obra parece suscitar. Se bem que a leitura deste livro tenha sido feita há
algum tempo, a sua demora deve-se ao facto de esperarmos que se tornasse
pública uma entrevista que fizemos ao autor, em colaboração com Hugo Almeida. A
entrevista foi publicada no site The Comics Alternative, com quem temos vindo a
colaborar e encontra-se disponível aqui. (Mais)
O ponto que torna diferente Unflattening é o facto de se tratar do resultado da tese de
dissertação de Nick Sousanis. Não e trata de um projecto artístico que seria depois
complementado com um relatório ou defesa, não se trata de um complemento
prático ou de exemplo analisado no corpo da tese, trata-se de facto do corpo que compõe toda a argumentação da dissertação. A banda desenhada é a tese, ou a tese é em banda desenhada. Criada,
entregue, aceite e defendida como tal no final do percurso do doutoramento de
Sousanis na Universidade de Colombia. Apresenta de forma pública e fragmentada
no blog do autor, tornar-se-ia ainda mais surpreendente por ter sido convidado
a publicá-la, com pequenos acertos (v. entrevista), pela editora da Harvard.
Isto que dizer que, logo à partida, e exercendo algum poder de autoridade, este
projecto estava “defendido” por duas instituições prestigiadas e prestigiantes
da academia norte-americana.
Até certo ponto, e como é discutido por algumas pessoas, isto
tratar-se-ia de “mais uma conquista” ou “mais um passo em frente” em termos da
aceitabilidade ou respeitabilidade da banda desenhada enquanto uma forma viável
de pensamento ou transmissão de conhecimento. Na verdade, e é esse que parece
ser o âmago da pesquisa de Sousanis, Unflattening
tem como propósito discutir e demonstrar a maneira como o emprego concorrencial
e complementar de palavras e de imagens, e sobretudo da estruturação sequencial
e espacial que é permitida pela banda desenhada, ilustração ou outros
territórios contíguos, pode significar um salto qualitativo e poderoso em
relação à aquisição do que está a ser transmitido.
Porém, é precisamente por essa
mesma razão que o problema maior se começa a formar. Na contracapa, podemos ler
o blurb de Scott McCloud, indicando
como o livro se trata de uma “meditação delirante sobre tudo o que há debaixo
do sol”. Porém, não poderemos ler esta frase menos como um elogio do que na
verdade um aviso do perigo que se incorre em Unflattening?
De uma forma curiosa e algo original, o autor não emprega um
mecanismo antropocêntrico para conduzir ou articular as suas ideias, como
ocorre na esmagadora maioria dos textos de banda desenhada que terão uma
qualquer dimensão pedagógica na linha da frente. Um narrador semi-participante,
ou uma focalização associada a um protagonista que serve de filtro actancial,
ou até mesmo uma voz que, “desincorporada” da narrativa (sob a forma de
legendas, por exemplo) ainda assim assume esse mesmo “corpo” visível e
separado. É possível que se possa argumentar que existe, ainda assim, aqui e
ali, um uso fantasmático desse dispositivo, mas ele não é sustentado ao longo
da obra toda. Todavia, o preço a pagar por essa escolha é que o esforço para
manter uma coerência ao longo do livro é maior e nem sempre essa coerência é
alcançada.
A banda desenhada pode de facto ser lida ou interpretada como
tendo uma série de dimensões empilhadas.
Não apenas no que diz respeito à sua estrutura entre representação,
simbolização e diegese – em que existe o mundo diegético, os balões de fala
(“buracos brancos”, como lhes chama Groensteen), as molduras, etc. – como as
possíveis discrepâncias entre as “faixas” da imagem e do texto, o que
simplifica desde logo as relações entre os elementos presentes na
prancha/página, etc. Mas igualmente a outros níveis, em termos ontológicos,
políticos, sociais, de recepção e “uso”, na sua acepção dos estudos culturais,
etc. Sousanis deseja que se olhe para esses territórios e se compreenda que as
dimensões visuais não existem apenas de forma subsumida, enquanto ilustrações
ou confirmações de algo que já se havia exposto verbalmente, mas em que elas
têm um papel preponderante, senão decisivo.
Sousanis utiliza um exemplo muito premente. Para todos aqueles
com dois bons olhos, a visão binocular apresenta uma síntese de dois campos
visuais distintos, criados pelo cérebro entre o que é captado pelos nossos
olhos. Coloquemos o nosso polegar, de braço esticado, à frente de um objecto
qualquer com o olho esquerdo fechado. Sem mexer o braço ou o dedo, se abrirmos
o olho esquerdo e abrirmos o direito, haverá a sensação de ter havido algum
movimento. Nenhum deles mostra a “verdadeira” relação entre olho, dedo e
objecto, o que ocorre é antes uma síntese superior. A ideia, de acordo com
Sousanis, e que vai sendo explorada com outros exemplos, metáforas e fontes, é
que existem sempre várias perspectivas concorrenciais que devem ser combinadas
para se conseguir aproximar de uma qualquer ideia superior em relação a um
determinado objecto, ou até mesmo á relação ela-mesma com esse objecto.
Tudo isto é muito certo, mas parece-nos que poderá haver aqui
um erro de categorização. Em primeiro lugar,
a ideia de que as imagens não são meros complementos subordinados a confirmarem
a informação textual existente é algo que já foi bastas vezes discutido em
áreas tais como a história da arte, do cinema, o estudo da ilustração e, claro,
a própria teoria da banda desenhada. John Berger, por exemplo, discutiu o
desenho como sendo algo não tanto enquanto mera representação de um objecto (o
exemplo é uma árvore) mas de “uma árvore a ser olhada”, implicando toda uma
experiência de observação acumulando-se nesse acto (“Drawn to that moment”). Ou
seja, uma experiência.
E se pode ser verdade que a civilização ocidental é sobretudo
verbocêntrica, muitas vezes em detrimento da ocularidade, há já décadas que
isso não é assim tão explícito. Longe estão os anos da iconofobia, ou
iconoclastia. E a desconfiança das imagens não é necessariamente um aspecto
negativo, se tivermos em conta lições que se estendem e Althusser a Sontag,
descobrindo nelas instrumentos de mais eficaz doutrinação ideológica do que
aquela prevista num discurso verbal (se bem que este também possa ser
estruturado nesse sentido). É claro que todas estas dimensões são complexas
demais para expor num brevíssimo artigo de blog sobre um livro, a questão é que
o livro também não entra em contacto com essas dimensões verdadeiramente
histórias, sociais e filosóficas até.
Cada capítulo, cada página, cada frase até, suscitaria um
desenvolvimento crítico que não pode ser explorado aqui. Há uma sensação,
todavia, de que não se chega a desenvolver cabalmente uma dimensão antes de
saltar para outra, incorrendo-se num risco de maior distracção e fascínio do
que de burilar um propósito recto. Quando se cita um
qualquer pensador num trabalho académico, a cadeia do mecanismo argumentativo
que se faz é usualmente o seguinte: num lugar da argumentação que pede por uma
nova faceta teórica, cita-se uma fonte. Depois, explica-se, por exemplo, o
conceito arrolado, de forma a fazer compreender o leitor que se conhece bem
esse mesmo conceito, e que ele é apropriado. Finalmente, aplica-se esse mesmo
conceito no novo contexto, demonstrando a sua adaptabilidade. Como bónus, se
for possível, demonstrar-se-á que essa nova aliança (conceito preexistente +
novo objecto de estudo) redimensiona o próprio conceito, expande-o, torna-o
mais claro, etc. Ora, Sousanis emprega ou cita filósofos como Herbert Marcuse
ou Deleuze & Guattari, assim como escritores tais como Italo Calvino, mas
muitas vezes parecem somente surgir como abrilhantadores, já que não se escavam
as implicações dos pensamentos citados. O mesmo ocorre até em relação à teoria
da banda desenhada citada aqui e ali, mas nem entrando em controvérsia nem as
tornando particularmente excitantes.
Sejamos claros, Unflattening não deixa de
ser um contributo para os discursos existentes em torno da teoria-pela-prática,
uma forma de entender o que é que o desenho permite enquanto actividade
cognitiva em acção, como é que essa prática molda o próprio acto de observação
e, consequentemente, de compreensão. Michael Taussig, um antropólogo
australiano que tem um magnífico pequeno livro sobre desenho, I Swear I Saw This:
Drawings in Fieldwork Notebooks, Namely My Own, discute a relação do desenho com a dimensão do tempo, explicando como
aqueles fluem e habitam o tempo de uma maneira especial, pela sua
espacialização da imagem, a um só tempo congelando e fazendo fluir o tempo. Mas
esta, parece-nos, é uma outra qualidade relativamente ausente de Unflattening,
ou melhor, aflorada somente, mas depois não escavada até às suas maiores
consequências teóricas.
Em todo o caso, a figuração relativamente pedestre, quase
pedagógica, de Sousanis, aliada a composições que se pretendem livres e espectacularmente
significativas, as mais das vezes são algo subservientes ao próprio propósito
do significado. Não esperávamos, de maneira alguma, que se instituísse um
princípio ficcional, como afirmámos acima, que depois ajudaria a “transmitir”
as ideias-chave, mas a secura,
digamos assim, do veículo, torna o ritmo e o tom da obra um tanto ou quanto
menos eficiente do que imaginaria. E apesar dos argumentos empregues pelo
autor, quer explicitamente no livro quer fora dele (como na entrevista), a
verdade é que muitas das imagens acabam por funcionar de um modo metafórico,
isto é, ilustrativo para com o que é “rezado” no texto. Vejam-se as “teias de
aranha”, as ideias de “prisão”, a maneira como demonstra a conectividade e
unidade das pranchas de banda desenhada teorizadas por Groensteen sob a forma
de Buddha sentando-se frente a um mangue, etc.
É Unflattening uma
conquista? Em termos de presença, abertura de discussão, impacto em círculos
não-especializados, expositivos? Sem dúvida alguma. No que diz respeito, porém,
a uma alteração do modo como podemos observar estas áreas criativas, a atitude
para com o desenho enquanto instrumento de conhecimento, da banda desenhada
enquanto espaço de pensamento… Depende. Se a referência ainda continuar a ser
apenas a de McCloud (o que ocorre de uma maneira extremamente preocupante ainda
hoje no mundo académico), é possível. Se se estiver enquadrado num contexto
mais alargado, diversificado, matizado e complexo, é possível que o
“desempacotamento” previsto tenha um alcance menor.
Nota final: agradecimentos ao
autor, pela entrevista e ajuda nos contactos, e à editora, pela oferta do
volume; igualmente a Hugo Almeida, interlocutor na leitura deste livro. Muitas
das ideias (as melhores) esgrimidas aqui foram por ele buriladas.
2 comentários:
Oi Pedro! Acho porreira a referência que fazes à nossa discussão do livro, mas aquilo que te mostrei foram umas notas avulso que de maneira nenhuma estavam com o nível de aprofundamento do teu texto; por isso, as melhores ideias foram certamente tuas!
Quanto ao livro, continuo completamente convencido de que as imagens do livro e o uso que se faz delas não só não corroboram as ideias mais ou menos elaboradas no texto do livro, como as contradizem. Pela razão que apontas: as imagens são meramente ilustrativas do texto. Muito raramente apresentam dimensões adicionais, amplificam a interpretação do texto, etc. Por isso, não sei se concordo que esta publicação poderá iluminar as perspectivas mais populares sobre a banda desenhada, ou sobre a importância da imagem. Parece-me que poderá ser usado mesmo como exemplar das supostas limitações do meio por quem está menos por dentro da coisa ou tem uma agenda específica a defender (e este caso, reflecte não uma limitação do meio, claro, mas desta execução em particular).
Bom, não vamos começar a trocar cromos. Ajudaste muito a pensar quase todas as questões. É óbvio que eu tento acreditar que os aspectos positivos desta obra são possíveis, sobretudo se aproximarem dois mundos que por vezes podem estar de costas voltadas, mas concordo que nalguns momentos pode até acabar por confirmar ideias que deveriam antes ser exploradas de outra maneira. No fundo, ocorre o mesmo que aconteceu (acontece!) em relação ao livro do Scott Mccloud: a maneira como ele descreve uma questão parece tão clara e tão exaustiva que não dá espaço a dissensões, e se as houver são vistas como negativistas, em vez de expansivas em relação ás mesmas questões. Por outras palavras, concorrem a tornarem-se autoridades incontornáveis e indesmentíveis, o que é sempre preocupante...
Pedro
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