Graças aos esforços da Levoir, a
entrada de vários títulos da banda desenhada espanhola
contemporânea no mercado português é uma realidade. Ainda que não
haja, aparentemente, uma política concertada e ritmada dessa mesma
entrada, a colecção das Novelas Gráficas, que vai na sua terceira
fornada (à qual voltaremos), e volumes soltos, como é este caso,
assegura essa oferta (corroborada, pelo menos, pela Arte de Autor;
mais, o mesmo se poderia dizer da banda desenhada brasileira, pelas
mãos da Polvo, por exemplo, e de nenhuma outra editora, maior ou
menor que estas). Seria, mais uma vez, discutível qual o espectro
dessa mesma oferta dada a pluralidade de produção do nosso país
vizinho, que neste caso não se pode chamar irmão dado o
largo desconhecimento do público geral do que tem surgido em Espanha
(e nem encetaremos a relação contrária), mas estamos em crer que o
foco da Levoir é, em si mesmo, coerente: autores interessados em
discursos contemporâneos, autorais, muits vezes de narrativas
pessoais e quotidianas, e menos interessados em géneros clássicos
ou mesmo espectaculares, e atreitos a formas narrativas convencionais
e acessíveis a um público alargado, não necessariamente fãs de
“bd de género”, mas de toda uma sorte de literatura (o que
incluirá outras formas mediáticas). (Mais)
Nesse campo, Roca é um cultor de
livros que preenchem esse espaço quase na perfeição. Não quer
dizer que não existam outros autores merecedores da nossa atenção,
que não tenham circulado em português, como Pablo Auladell (mais
atreito a uma abordagem artística e experimental) ou David Rubín
(num registo mais mainstream), mas repetimos aquele
“intervalo” de acessibilidade a que aventámos atrás. A casa
é um livro que, num primeiro nível, apresenta uma narrativa
familiar, em torno da herança da casa de férias depois da morte do
pai. Mas a herança, como se descobrirá, não é apenas de um bem
imobiliário, ou sequer de uma fortuna material, mas antes um
catalizador das memórias das vivências deles naquela casa, da
relação com o pai, mas acima de tudo, de uma maneira de
re-descobrir (ou descobrir pela primeira vez?) o carácter do pai.
Roca gere de uma maneira muito
inteligente o modo como o leitor vai ganhando acesso aos significados
que não são expressamente contados. Se por um lado, poderemos
imaginar um pai austero, silencioso e até exigente demais com os
seus filhos, por outro, entender-se-á que são talvez apenas as
ferramentas com que o velho Antonio conseguia comunicar com os
filhos, sobretudo a alegria que significava para ele a construção
paulatina daquela casa e os pequenos trabalhos que ela exigia (na
horta, nos consertos, nos aumentos e melhoramentos). Há muitas
dimensões sociais presentes neste livro idênticas àquelas que se
atravessaram em Portugal, no que diz respeito às mudanças
sócio-económicas que diferenciaram de maneira quase brutal, e por
vezes antagónica, aquelas gerações que viveram as respectivas
ditaduras e o lento e doloroso crescimento económico, que tantos
sacrifícios exigiu, e as seguintes, nascidas já num cadinho de
democracia e bem-estar. As incompreensões mútuas traduziam-se no
afastamento progressivo dos desejos de cada geração, e isso é tema
em A casa, mesmo que não seja escarrapachado no texto. O
esforço está do lado do leitor de reconstruir as impressões e
emoções em causa.
Roca é um autor que cria os seus
projectos em banda desenhada, e não como uma “narrativa
literária” que por acaso tem de surgir neste meio, ou como um
conjunto desenhos, também por acaso arranjados estruturalmente numa
narrativa. Tudo canta em conjunto. O livro é construído não
somente a partir do conceito, ou argumento ou história,
nem tampouco de uma dimensão visual ao nível da figuração, mas
sim com uma ideia muito precisa de unidades de composição por cada
página ou sequência de pranchas. Arriscar-nos-íamos a afirmar que
a “escrita” deste projecto foi ditada pelas soluções visuais
que se vão sucedendo a cada virar de página. Algumas das páginas
não seguem somente transições “naturais” dos acontecimentos e
gestos das personagens, mas procuram estruturar-se a partir de outro
tipo de relações que sublinham movimentos espaciais, focalizações
específicas das personagens e/ou em relação a um objecto, já para
não falar das possibilidades de abertura e cruzamento entre os
tempos distintos do presente da perceção e o passado da memória
(sendo a página 72 um exemplo premente).
Eis alguns exemplos: na página 12, as
vinhetas à direita, da fuga de água do autoclismo, pode ser lida
tanto no seguimento das tiras com as personagens como apenas na sua
sequência final ou ainda, o mais apropriado, como dizendo respeito à
percepção do casal ao mesmo tempo das outras acções. Na
página 43, as duas vinhetas mostrando os figos maduros cria uma
espécie de âncora e obsessão não apenas à expectativa do jovem
Antonio mas depois da sua decisão. E na 92 apresenta-se um diálogo
linear mas dois eixos espaciais-visuais.
São famosas as composições de Frank
King, nas páginas de Domingo de Gasoline Alley, em que uma
casa foi sendo construída, permitindo uma organização
estruturalmente linear e até convencional das vinhetas, mas depois
uma gestão dos movimentos das personagens que seguia outras
direcções. Chris Ware faria muitas homenagens dessa solução.
Teria sido fácil, talvez, para Roca, ter seguido o mesmo caminho,
mas com a excepção da página 58, em que se revela um diagrama
imaginativo da casa por vir (e alguns outros poucos), e o início
dessa ideia na 86, o autor prefere manter-se ao nível da realidade
em curso (mesmo tendo em conta as memórias “intrusivas”, que
não são irreais, mas sim tão tangíveis quanto o que se observa no
momento).
O livro tem uma abordagem da cor
particularmente interessante, ainda que convencional. Procura navegar
por entre soluções diversas que tanto têm a ver com a temperatura
e a luminosidade do dia como com a tal gestão dos tempos
cronológicos, reforçando e esclarecendo as emoções das
personagens ou da situação de uma maneira que dispensa explicações
verbalizadas. Não sendo propriamente impenetráveis ou densas, essa
rede de emoções é competente e variegada. Esse aspecto
estrutura-se ainda mais pelo facto da história, apesar de no início
parecer gerida pela experiência e focalização do irmão escritor,
José (avatar de Paco Roca nesta auto-ficção), rapidamente ir
navegando pela perspectiva pessoal de cada um dos outros irmãos,
Vicente e Carla, levando a novos momentos na história da família,
e, finalmente, quando todos se juntam para uma acção e refeição
finais, terminando a narrativa numa nota tão melancólica quanto
celebratória.
O trabalho de linha de Roca, neste
livro, é menos sólido do que em, por exemplo, O inverno do
desenhador, onde se mostravam soluções muito próximas à da
clássica linha clara. Menos sólido não significa menos competente,
mas simplesmente quer endereçar-se às figuras lançadas de um modo
mais leve e célere, por vezes minimalista (à la Julian Opie),
apesar da dedicação aos pormenores. Isso aumenta esta espécie de
urgência de um livro que, afinal de contas, é um álbum de memórias
pessoais, quase-autobiográfico, e até apresentado num formato que
convida menos ao gesto da leitura, que já é em si um acto íntimo,
do que ao do folhear de um álbum de família.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do volume; imagens colhidas da internet.
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