17 de agosto de 2017

A casa. Paco Roca (Levoir)

Graças aos esforços da Levoir, a entrada de vários títulos da banda desenhada espanhola contemporânea no mercado português é uma realidade. Ainda que não haja, aparentemente, uma política concertada e ritmada dessa mesma entrada, a colecção das Novelas Gráficas, que vai na sua terceira fornada (à qual voltaremos), e volumes soltos, como é este caso, assegura essa oferta (corroborada, pelo menos, pela Arte de Autor; mais, o mesmo se poderia dizer da banda desenhada brasileira, pelas mãos da Polvo, por exemplo, e de nenhuma outra editora, maior ou menor que estas). Seria, mais uma vez, discutível qual o espectro dessa mesma oferta dada a pluralidade de produção do nosso país vizinho, que neste caso não se pode chamar irmão dado o largo desconhecimento do público geral do que tem surgido em Espanha (e nem encetaremos a relação contrária), mas estamos em crer que o foco da Levoir é, em si mesmo, coerente: autores interessados em discursos contemporâneos, autorais, muits vezes de narrativas pessoais e quotidianas, e menos interessados em géneros clássicos ou mesmo espectaculares, e atreitos a formas narrativas convencionais e acessíveis a um público alargado, não necessariamente fãs de “bd de género”, mas de toda uma sorte de literatura (o que incluirá outras formas mediáticas). (Mais)

Nesse campo, Roca é um cultor de livros que preenchem esse espaço quase na perfeição. Não quer dizer que não existam outros autores merecedores da nossa atenção, que não tenham circulado em português, como Pablo Auladell (mais atreito a uma abordagem artística e experimental) ou David Rubín (num registo mais mainstream), mas repetimos aquele “intervalo” de acessibilidade a que aventámos atrás. A casa é um livro que, num primeiro nível, apresenta uma narrativa familiar, em torno da herança da casa de férias depois da morte do pai. Mas a herança, como se descobrirá, não é apenas de um bem imobiliário, ou sequer de uma fortuna material, mas antes um catalizador das memórias das vivências deles naquela casa, da relação com o pai, mas acima de tudo, de uma maneira de re-descobrir (ou descobrir pela primeira vez?) o carácter do pai.

Roca gere de uma maneira muito inteligente o modo como o leitor vai ganhando acesso aos significados que não são expressamente contados. Se por um lado, poderemos imaginar um pai austero, silencioso e até exigente demais com os seus filhos, por outro, entender-se-á que são talvez apenas as ferramentas com que o velho Antonio conseguia comunicar com os filhos, sobretudo a alegria que significava para ele a construção paulatina daquela casa e os pequenos trabalhos que ela exigia (na horta, nos consertos, nos aumentos e melhoramentos). Há muitas dimensões sociais presentes neste livro idênticas àquelas que se atravessaram em Portugal, no que diz respeito às mudanças sócio-económicas que diferenciaram de maneira quase brutal, e por vezes antagónica, aquelas gerações que viveram as respectivas ditaduras e o lento e doloroso crescimento económico, que tantos sacrifícios exigiu, e as seguintes, nascidas já num cadinho de democracia e bem-estar. As incompreensões mútuas traduziam-se no afastamento progressivo dos desejos de cada geração, e isso é tema em A casa, mesmo que não seja escarrapachado no texto. O esforço está do lado do leitor de reconstruir as impressões e emoções em causa.

Roca é um autor que cria os seus projectos em banda desenhada, e não como uma “narrativa literária” que por acaso tem de surgir neste meio, ou como um conjunto desenhos, também por acaso arranjados estruturalmente numa narrativa. Tudo canta em conjunto. O livro é construído não somente a partir do conceito, ou argumento ou história, nem tampouco de uma dimensão visual ao nível da figuração, mas sim com uma ideia muito precisa de unidades de composição por cada página ou sequência de pranchas. Arriscar-nos-íamos a afirmar que a “escrita” deste projecto foi ditada pelas soluções visuais que se vão sucedendo a cada virar de página. Algumas das páginas não seguem somente transições “naturais” dos acontecimentos e gestos das personagens, mas procuram estruturar-se a partir de outro tipo de relações que sublinham movimentos espaciais, focalizações específicas das personagens e/ou em relação a um objecto, já para não falar das possibilidades de abertura e cruzamento entre os tempos distintos do presente da perceção e o passado da memória (sendo a página 72 um exemplo premente).

Eis alguns exemplos: na página 12, as vinhetas à direita, da fuga de água do autoclismo, pode ser lida tanto no seguimento das tiras com as personagens como apenas na sua sequência final ou ainda, o mais apropriado, como dizendo respeito à percepção do casal ao mesmo tempo das outras acções. Na página 43, as duas vinhetas mostrando os figos maduros cria uma espécie de âncora e obsessão não apenas à expectativa do jovem Antonio mas depois da sua decisão. E na 92 apresenta-se um diálogo linear mas dois eixos espaciais-visuais.

São famosas as composições de Frank King, nas páginas de Domingo de Gasoline Alley, em que uma casa foi sendo construída, permitindo uma organização estruturalmente linear e até convencional das vinhetas, mas depois uma gestão dos movimentos das personagens que seguia outras direcções. Chris Ware faria muitas homenagens dessa solução. Teria sido fácil, talvez, para Roca, ter seguido o mesmo caminho, mas com a excepção da página 58, em que se revela um diagrama imaginativo da casa por vir (e alguns outros poucos), e o início dessa ideia na 86, o autor prefere manter-se ao nível da realidade em curso (mesmo tendo em conta as memórias “intrusivas”, que não são irreais, mas sim tão tangíveis quanto o que se observa no momento).

O livro tem uma abordagem da cor particularmente interessante, ainda que convencional. Procura navegar por entre soluções diversas que tanto têm a ver com a temperatura e a luminosidade do dia como com a tal gestão dos tempos cronológicos, reforçando e esclarecendo as emoções das personagens ou da situação de uma maneira que dispensa explicações verbalizadas. Não sendo propriamente impenetráveis ou densas, essa rede de emoções é competente e variegada. Esse aspecto estrutura-se ainda mais pelo facto da história, apesar de no início parecer gerida pela experiência e focalização do irmão escritor, José (avatar de Paco Roca nesta auto-ficção), rapidamente ir navegando pela perspectiva pessoal de cada um dos outros irmãos, Vicente e Carla, levando a novos momentos na história da família, e, finalmente, quando todos se juntam para uma acção e refeição finais, terminando a narrativa numa nota tão melancólica quanto celebratória.

O trabalho de linha de Roca, neste livro, é menos sólido do que em, por exemplo, O inverno do desenhador, onde se mostravam soluções muito próximas à da clássica linha clara. Menos sólido não significa menos competente, mas simplesmente quer endereçar-se às figuras lançadas de um modo mais leve e célere, por vezes minimalista (à la Julian Opie), apesar da dedicação aos pormenores. Isso aumenta esta espécie de urgência de um livro que, afinal de contas, é um álbum de memórias pessoais, quase-autobiográfico, e até apresentado num formato que convida menos ao gesto da leitura, que já é em si um acto íntimo, do que ao do folhear de um álbum de família.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume; imagens colhidas da internet.

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