21 de agosto de 2017

Platinum End; vols 01 e 02. Tsugumi Ohba e Takeshi Obata (Devir)


De certa forma, podemos ler Platinum End como uma espécie de reverso de Death Note. Uma vez que um certo grau de maniqueísmo é uma assinatura dos autores, não nos admira que aqui haja uma transformação para o pólo “contrário” à famosa saga anterior. Em vez dos demónios ou deuses da morte, temos agora hierarquias de anjos em torno de (um) deus. Em vez da feiúra dos primeiros, temos a beleza etérea dos segundos (e que devem algo da sua forma física às personagens fantásticas do Cremaster de Matthew Barney). O seguimento mais ou menos próximo de vários sistemas de angeologia são muito secundários, tirando algumas referências básicas, já que a própria “moralidade” destas criaturas é tão matizada ou até indiferente como o era nos shinigami de Death Note: não são “más” nem “boas”, simplesmente têm papéis e tarefas a cumprir. E em vez de um jovem (Light Yagami) que ganha um artefacto de poderes sobrenaturais (um caderno escolar) interessado numa ideia de justiça que passa pela sua decisão pessoal em matar outras pessoas – ou seja, uma acção moralmente repreensível de acordo com os melhores princípios societais –, sublinhando um ego que vai crescendo, no caso de Platinum End seguimos outro jovem (Mirai Kakehashi) que ganha um artefacto de poderes sobrenaturais (as “asas” e as “espadas”), por ter sido seleccionado, mas que prefere a inacção do que interferir na vontade pessoal dos outros, mesmo que isso lhe custe a sua própria “vitória”. (Mais) 

Usamos este último vocábulo pois a estrutura de Platinum End lança Mirai numa espécie de concurso. “Deus” quer abandonar o céu, incumbindo então doze anjos de encontrarem doze mortais que possam herdar o seu poder e papel. A escolha não repousa (pelo menos no que se revela até agora) em qualquer plano divino e de significado último, mas tão-somente no acaso e na indiferença. Os próprios anjos seleccionam morais na beira do suicídio (estranhamente, apenas no Japão, por ter uma taxa de suicídio significativa, continuando o mito de ser o país com a maior taxa mundial de suicídios, mas sem tornar isso num tema explorável politicamente no livro), desesperados, e que possam transformar esta benesse numa redenção de si mesmos, mas sem qualquer aparente carga moral. Apenas o tempo revelará se há algum destino ulterior, mas parecemos estar somente ao nível de um jogo básico, de reduzir todos os “rivais” (como diz mesmo um dos detentores destes poderes, que se dá a conhecer publicamente como uma espécie de super-herói, Metrópolis, por vezes lançando a série em "segmentos" de géneros distintos) a um vencedor... Neste sentido, tem tanto de Highlander como de Mirai Nikki (séria de mangá com a qual Platinum End tem muitas afinidades estruturais e conceptuais) ou Gantz.


De certa forma, e um pouco ao arrepio do que dissemos a propósito de Monstress, Platinum End é uma série que vive de um edifício cheio de acções novas, múltiplas personagens e uma geometria de relações em constante revisão. O primeiro capítulo estabelece de imediato toda a premissa básica da intriga, e no primeiro volume conseguiremos estar munidos de todos os princípios necessários para compreender, até certo ponto, que tipo de expectativas ter no seguimento da acção (duvidando que se possa adivinhar com exactidão o desfecho da saga ou mesmo os preços a pagar ao longo dela). Isto inclui a “novela interior” do próprio Mirai, a sua vida familiar, a vingança, a herança emocional e filosófica dos pais mortos, e que se congela numa espécie de moto que servirá seguramente ao protagonista em todos os seus passos e que oferece à aventura uma dimensão, simples mas bem-vinda, de uma maior gravidade. Já no segundo volume o universo narrativo expande-se, precisamente para permitir a entrada de novas personagens e de necessárias novas relações, e até mesmo complexificações nas “regras” do “jogo”, que vamos descobrindo aos poucos... assim como uma inclinação para começarmos a preocuparmo-nos menos com o desenvolvimento interno de Mirai do que a forma como ele gerirá os conhecimentos das outras personagens.

A insistência neste tipo de vocabulário não deveria ser surpreendente nem chocante. Afinal de contas, a “mecânica” de todo o processo promete ser tão complexa, multifacetada e “móvel” como as de jogos de computador contemporâneos. Há um objectivo claro e finito (um deles tornar-se-á o novo “deus”), mas nada nos poderá ajudar a compreender com antecedência como é que esse objectivo será alcançado, por quem e influenciando de que maneira o mundo circundante. De acordo com algumas tipologias de descrições de jogos, dir-se-ia que o que Platinum End nos oferece é um jogo de “controle mutável por nível de experiência”, o que significa que através da interacção dos concorrentes uns com os outros, e com a conquista dos objectos ou mesmo de conhecimento, a natureza dos próprios jogadores é alterada ao longo dos processos. E que as regras são topológicas, isto é, poderão ser alteradas conforme as circunstâncias de todos os factores, fazendo impedir que todo e qualquer gesto possa levar sempre ao mesmo resultado...

Todavia, estamos numa narrativa de banda desenhada, e haverá elementos que não estão nas mãos dos jogadores, mas dos leitores. Temos uma perspectiva vagante que nos permite, de quando em vez, sair do foco limitado do protagonista para ter acesso a discussões, desenvolvimentos ou pensamentos de outras personagens, tudo dimensões às quais Mirai não poderia aceder de forma alguma, o que nos dá uma vantagem narrativa sobre ele.


Em termos visuais estamos naqueles territórios em que leitores que não tenham sido já conquistados para esta linguagem não encontrarão uma assinatura diferente o suficiente para os convencer a segui-la. São muitas as convenções respeitadas em termos de figuração (quase todas as personagens são belas e jovens, as personagens femininas são absolutamente secundarizadas e até esvaziadas face aos protagonistas masculinos, e os próprios anjos parecem servir uma função de “tabela de informações”), de composição e registo (interrupções do registo “normal-naturalista” por “chibis”, imagens icónicas de tempo suspenso numa acção espectacular, vários “efeitos visuais”, etc., que são, afinal de contas, os elementos intrínsecos deste tipo de banda desenhada japonesa shonen. Cada volume (tankobon) reúne três capítulos, os quais foram publicados mensalmente. Daí que seja natural que se siga uma estrutura episódica tipificada, com cliffhangers explosivos e dramáticos, que contribuem menos para uma leitura fluída e unitária do que a de compreender e integrar essa mesma suspensão como parte integrante do seu storytelling. Tudo isto para dizer, então, que ela deve ser desfrutada no interior desse género e expectativas e, nessa perspectiva, é um óptimo exemplo.

Apenas o tempo dirá se esta série será tão efectiva e empolgante como foi Death Note, uma vez que o efeito de surpresa de todas as reviravoltas, as tramas densas de acções e contra-acções, alianças e traições entre personagens, surpresas e suspenses, poderá ser “familiar” ao se pensar na série anterior. Todavia, nada nos leva a crer que será menos conseguida que essa outra série; e uma vez que segue um caminho mais “luminoso” do que Death Note, poderá mesmo ter uma recepção mais interessante.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta dos volumes. 

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