De certa
forma, podemos ler Platinum End como uma espécie de reverso
de Death Note. Uma vez que um certo grau de maniqueísmo é
uma assinatura dos autores, não nos admira que aqui haja uma
transformação para o pólo “contrário” à famosa saga
anterior. Em vez dos demónios ou deuses da morte, temos agora
hierarquias de anjos em torno de (um) deus. Em vez da feiúra dos
primeiros, temos a beleza etérea dos segundos (e que devem algo da
sua forma física às personagens fantásticas do Cremaster de
Matthew Barney). O seguimento mais ou menos próximo de vários
sistemas de angeologia são muito secundários, tirando algumas
referências básicas, já que a própria “moralidade” destas
criaturas é tão matizada ou até indiferente como o era nos
shinigami de Death Note: não são “más” nem
“boas”, simplesmente têm papéis e tarefas a cumprir. E em vez
de um jovem (Light Yagami) que ganha um artefacto de poderes
sobrenaturais (um caderno escolar) interessado numa ideia de justiça
que passa pela sua decisão pessoal em matar outras pessoas – ou
seja, uma acção moralmente repreensível de acordo com os melhores
princípios societais –, sublinhando um ego que vai crescendo, no
caso de Platinum End seguimos outro jovem (Mirai Kakehashi)
que ganha um artefacto de poderes sobrenaturais (as “asas” e as
“espadas”), por ter sido seleccionado, mas que prefere a inacção
do que interferir na vontade pessoal dos outros, mesmo que isso lhe
custe a sua própria “vitória”. (Mais)
Usamos
este último vocábulo pois a estrutura de Platinum End lança
Mirai numa espécie de concurso. “Deus” quer abandonar o céu,
incumbindo então doze anjos de encontrarem doze mortais que possam
herdar o seu poder e papel. A escolha não repousa (pelo menos no que
se revela até agora) em qualquer plano divino e de significado
último, mas tão-somente no acaso e na indiferença. Os próprios
anjos seleccionam morais na beira do suicídio (estranhamente, apenas
no Japão, por ter uma taxa de suicídio significativa, continuando o
mito de ser o país com a maior taxa mundial de suicídios, mas sem
tornar isso num tema explorável politicamente no livro),
desesperados, e que possam transformar esta benesse numa redenção
de si mesmos, mas sem qualquer aparente carga moral. Apenas o tempo
revelará se há algum destino ulterior, mas parecemos estar somente
ao nível de um jogo básico, de reduzir todos os “rivais” (como
diz mesmo um dos detentores destes poderes, que se dá a conhecer
publicamente como uma espécie de super-herói, Metrópolis, por vezes lançando a série em "segmentos" de géneros distintos) a um
vencedor... Neste sentido, tem tanto de Highlander como de
Mirai Nikki (séria de mangá com a qual Platinum End
tem muitas afinidades estruturais e conceptuais) ou Gantz.
De certa
forma, e um pouco ao arrepio do que dissemos a propósito de
Monstress, Platinum End é uma série que vive de um
edifício cheio de acções novas, múltiplas personagens e uma
geometria de relações em constante revisão. O primeiro capítulo
estabelece de imediato toda a premissa básica da intriga, e no
primeiro volume conseguiremos estar munidos de todos os princípios
necessários para compreender, até certo ponto, que tipo de
expectativas ter no seguimento da acção (duvidando que se possa
adivinhar com exactidão o desfecho da saga ou mesmo os preços a
pagar ao longo dela). Isto inclui a “novela interior” do próprio
Mirai, a sua vida familiar, a vingança, a herança emocional e
filosófica dos pais mortos, e que se congela numa espécie de moto
que servirá seguramente ao protagonista em todos os seus passos e
que oferece à aventura uma dimensão, simples mas bem-vinda, de uma
maior gravidade. Já no segundo volume o universo narrativo
expande-se, precisamente para permitir a entrada de novas personagens
e de necessárias novas relações, e até mesmo complexificações
nas “regras” do “jogo”, que vamos descobrindo aos poucos...
assim como uma inclinação para começarmos a preocuparmo-nos menos
com o desenvolvimento interno de Mirai do que a forma como ele gerirá
os conhecimentos das outras personagens.
A
insistência neste tipo de vocabulário não deveria ser
surpreendente nem chocante. Afinal de contas, a “mecânica” de
todo o processo promete ser tão complexa, multifacetada e “móvel”
como as de jogos de computador contemporâneos. Há um objectivo
claro e finito (um deles tornar-se-á o novo “deus”), mas nada
nos poderá ajudar a compreender com antecedência como é que esse
objectivo será alcançado, por quem e influenciando de que maneira o
mundo circundante. De acordo com algumas tipologias de descrições
de jogos, dir-se-ia que o que Platinum End nos oferece é um
jogo de “controle mutável por nível de experiência”, o que
significa que através da interacção dos concorrentes uns com os
outros, e com a conquista dos objectos ou mesmo de conhecimento, a
natureza dos próprios jogadores é alterada ao longo dos processos.
E que as regras são topológicas, isto é, poderão ser
alteradas conforme as circunstâncias de todos os factores, fazendo
impedir que todo e qualquer gesto possa levar sempre ao mesmo
resultado...
Todavia,
estamos numa narrativa de banda desenhada, e haverá elementos que
não estão nas mãos dos jogadores, mas dos leitores. Temos uma
perspectiva vagante que nos permite, de quando em vez, sair do foco
limitado do protagonista para ter acesso a discussões,
desenvolvimentos ou pensamentos de outras personagens, tudo dimensões
às quais Mirai não poderia aceder de forma alguma, o que nos dá
uma vantagem narrativa sobre ele.
Em termos
visuais estamos naqueles territórios em que leitores que não tenham
sido já conquistados para esta linguagem não encontrarão uma
assinatura diferente o suficiente para os convencer a segui-la.
São muitas as convenções respeitadas em termos de figuração
(quase todas as personagens são belas e jovens, as personagens
femininas são absolutamente secundarizadas e até esvaziadas face
aos protagonistas masculinos, e os próprios anjos parecem servir uma
função de “tabela de informações”), de composição e registo
(interrupções do registo “normal-naturalista” por “chibis”,
imagens icónicas de tempo suspenso numa acção espectacular, vários
“efeitos visuais”, etc., que são, afinal de contas, os elementos
intrínsecos deste tipo de banda desenhada japonesa shonen.
Cada volume (tankobon) reúne três capítulos, os quais foram
publicados mensalmente. Daí que seja natural que se siga uma
estrutura episódica tipificada, com cliffhangers explosivos e
dramáticos, que contribuem menos para uma leitura fluída e unitária
do que a de compreender e integrar essa mesma suspensão como parte
integrante do seu storytelling. Tudo
isto para dizer, então, que ela deve ser desfrutada no interior
desse género e expectativas e, nessa perspectiva, é um óptimo
exemplo.
Apenas o
tempo dirá se esta série será tão efectiva e empolgante como foi
Death Note, uma vez que o efeito de surpresa de todas as
reviravoltas, as tramas densas de acções e contra-acções,
alianças e traições entre personagens, surpresas e suspenses,
poderá ser “familiar” ao se pensar na série anterior. Todavia,
nada nos leva a crer que será menos conseguida que essa outra série;
e uma vez que segue um caminho mais “luminoso” do que Death
Note, poderá mesmo ter uma recepção mais interessante.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta dos volumes.
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