23 de agosto de 2017

Bruxas/Wytches. Scott Snyder e Jock (G. Floy)

A ideia de que toda uma sociedade sacrifique parte da sua felicidade momentânea e sempre imperfeita em nome de uma fortuna consequente, e por isso sempre “melhor”, não é de todo nova. Ainda que o famoso conto de Shirley Jackson, “The Lottery”, de 1946, se centre mais na ideia do bode expiatório, conta-se aí igualmente na ideia do preço, que se encontra no coração deste livro. Mas o bode expiatório convidaria à ideia de um pecado original e de uma forma de o expiar. Em Bruxas, explora-se antes a entrega total a um crime em nome de um ganho egoísta.

Como todo e qualquer bom projecto, e que permita com efeito leituras múltiplas a partir dos seus elementos (não basta dizer, contra a ideia popular, que qualquer obra de arte tem sentidos múltiplos, é preciso identificá-los e explicá-los), Bruxas pode ser lido, em vez de uma simples e empolgante novela em torno de uma família e o seu confronto com criaturas primais, como um livro sobre desejos, promessas e a capacidade dos seres humanos viverem com as suas fantasias mais negras. Mas também coloca o amor filial, a paternidade, a superação de obstáculos pessoais, na linha da frente. (Mais)
A banda desenhada norte-americana parece ter estado a revitalizar o género do horror nos últimos anos, como já havíamos discutido, fazendo-o afastar-se de muitas das estratégias formulaicas que haviam sido herdadas desde a década de 1950. Colocando de lado as narrativas que envolvem “monstros” de uma estirpe ou outra (de Hellboy a Walking Dead, as quais as mais das vezes são antes sobre o desenvolvimento emocional dos seus protagonistas do que sobre os “mistérios” retratados), estamos a pensar em títulos tanto alternativos, de Black Hole de Charles Burns à obra de Josh Simmons, como em séries do mainstream tais como Outcast (também publicado em português há recente pela G. Floy), Harrow County (idem), Black Magick, Locke & Key, The Clean Room, The Beauty, Survivor's Club, Winnebago Graveyard, The Black Monday Murders, House of Penance, Providence, e American Vampire, do próprio Snyder, que recolocam os elementos do género do horror em contextos completamente distintos (The Black Monday Murders é uma análise do capitalismo selvagem por via de rituais satânicos, Black Magick é uma série de investigação policial com traços de Wicca) para atingir nova consequências e alcances.

Bruxas mistura ao horror um outro tipo de enquadramento genérico: o da familiar história da adolescente que muda de cidade para facilitar um novo começo na sua vida, e tudo o que isso implica em termos de dinâmicas sociais, a herança do passado, a nova maneira de distribuir os hobbies. Sailor Rooks vem de uma outra cidade onde algo sucedeu de terrível: vítima de bullying, a pessoa que a atormentava acaba por ser consumida por forças misteriosas na floresta. Isto traz a Sailor uma patina de rapariga perigosa e misteriosa, que tanto lhe traz elementos de atracção como de repulsa juntos aos demais colegas na escola nova. Mas mesmo fazendo esta descrição, é preciso notar como isso não é assim tão explorado pelos autores, fora breves cenas. O foco, no fundo, é mais conduzido pelo pai de Sailor, Charles Rooks, autor de uma série de livros de banda desenhada para leitores mais jovens. Na verdade, alguns dos momentos de maior cumplicidade entre pai e filha, e as considerações do pai sobre o que isso significa são os mais fortes na escrita de Snyder, que incute nos seus diálogos sempre uma patina de impressões mais profundas sobre as percepções do mundo pela parte das suas personagens, mesmo nos seus trabalhos mais mainstream (Batman, acima de tudo).

Muitas das personagens não são particularmente desenvolvidas, ou apenas cumprem o estritamente necessário para cumprir a função que lhes foi indicada. As personagens sacrificadas, por exemplo, nunca ganham um peso mais articulado no grande planos dos acontecimentos, e talvez a morte mais gratuita e emocionalmente menos resolvida seja a de Regie, o amigo de Charles. Os autores tentam jogar com uma estrutura temporal não-linear para desembrulhar uma trama maior, mais complexa e que se imaginaria com maior sentido, mas nem sempre isso funciona a favor da fortuna diegética do livro. Depois de um breve prólogo num passado remoto que apenas o desfecho explicará e integrará, começamos num momento “presente” e depois temos acesso a episódios pretéritos da perspectiva de Sailor (que não é tida como certa por outras personagens), e depois do pai dela, e a partir daí temos uma estrutura que cria menos elos cronológicos e explicativos entre as cenas distintas do que pontes conceptuais e emocionais entre cada uma dessas partes (como o discurso do pai quando do lançamento do livro e que ilumina a relação com a filha). Há mesmo uma espécie de “episódio extra” que parece escapar das malhas daquela unidade familiar dos Rooks, mas serve somente para dar uma ideia de um universo que poderia continuar a estender-se indefinidamente. Apesar da história ser auto-conclusiva, recuperar a cena do início e explicar o tal “preço” e “sacrifício”, acaba por não ser muito eficiente no seu choque emocional e não resolver todas as linhas (deixadas) abertas.

Comparações com o filme de Robert Eggers, The VVitch, serão quase inevitáveis, não apenas pela proximidade do seu lançamento (começando a circular comercialmente no início de 2016, pouco depois de ter sido lançado o trade paperback desta série nos Estados Unidos), e do tema, mas pelo desejo de querer focar-se menos em aspectos psicológicos das figuras principais – as “bruxas”, o que lhes daria um tratamento passível da proximidade humana – e mais na bruta e indomável natureza primal das forças que as animam, mas igualmente por algumas das facetas que exploram a dimensão feminina, também ela reduzida aqui a uma temível força telúrica e negra. Não será por acaso que o título utiliza um “y”, de certa forma aparentado com formas alternativas, quer afectas ao feminismo de segunda geração quer ao recrudescimento/renascimento Wicca. Todavia, suspendamos as interpretações feministas de Wytches/Bruxas, que nos convidaria a desdobramentos mais problemáticos, que não têm aqui e agora lugar.


Quando falámos de Superman: American Alien (num momento em que tínhamos lido os dois ou três primeiros capítulos desta série), referimo-nos ao trabalho de Jock como constituído de “linhas nervosas e excedentárias”, o que se mantém ou também verifica em Bruxas, se bem que maior grau de paroxismo. O trabalho de cor de Matt Hollingsworth, como e pode verificar nas páginas finais do volume, utiliza uma técnica de entrosamento por transparências a arte da linha a preto original com interferências de cores em aguarela (manchas, gotas, padrões irregulares, etc.). Se existem momentos em que essa abordagem intensifica as imagens (como o spread que mostramos em que Sailor acende um fósforo nas trevas assustadoras do covil), na esmagadora maioria dos casos essas intervenções são apenas excesso e distração, bem diferente do trabalho equilibrado e competentíssimo do colorista. Recorda um pouco um realizador de cinema ou um produtor de música que fica tão empolgado com o uso de uma determinada técnica de movimento de câmara (Michael Bay e a câmara que roda), efeito de iluminação (J.J. Abrams e os flares) ou efeito/som dramático, que o usa ao desbarato, de forma totalmente independente do que a cena em questão pede ou até do seu papel na economia geral da narrativa e do significado. Aliado ao desenho de Jock, o qual, sendo errático, expressivo e angular, prefere abandonar-se aqui em composições e figurações dramáticas mas nem sempre consistentes, estamos perante um livro algo “flamejante”....

Os editores optaram por um formato ligeiramente maior do que o usual para séries de comic books, permitindo que a arte se estenda um pouco mais em área, o que parece porém realçar esse excesso.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.

1 comentário:

Kasovitz disse...

Gosto muito do Blog obrigado por partilhar o amor que tem pelos comic e deve ser como o meu :)
Quando tiver tempo por dar uma vista de olhos neste projecto?

https://spark.adobe.com/page/OgqNUkJ3J49kP/

Muito obrigado