Monstress é uma bateria ou
amálgama de géneros que, não tendo, possivelmente, um elemento
propriamente original, produz uma combinação equilibrada e curiosa.
Steampunk, fantasia épica e negra, histórias de monstros,
Bildungsroman, ficção científica, ficção feminista, são
os tijolos que montam a sua estrutura, sendo a argamassa uma pesquisa
sobre a individualidade perante a cruel e abjecta injustiça da
escravatura e do racismo provocadas pela guerra. Mas ao mesmo tempo
espraia-se uma história centrada na senda de uma protagonista em
torno de respostas sobre a sua família, que poderá ter
consequências para o seu mundo em geral. (Mais)
O título remete para uma dimensão
feminina da monstruosidade, revelando desde logo que se trata de um
mundo que, apesar de poder enveredar por géneros consabidos da
cultura popular, fá-lo-á no interior de uma maneira que será mais
impactante para as mulheres no que diz respeito à sua representação,
número, presença e, mais importante, agência. Isto não significa
que não seja acessível ou legível por leitores masculinos
(fiquemo-nos pelo binarismo), claro, mas tão-somente que providencia
figuras identificáveis ao público feminino. Não deixa de ser
desequilibrado que histórias com protagonistas masculinos, quando se
trata de géneros de acção, ficção científica, fantasia, sejam
vistos como “universais”, e que aqueles protagonizados por
figuras femininas seja entendido como “de interesse particular”,
mas compreende-se a estratégia, se se acreditar nas questões de
identificação, ou pelo menos, da criação de modelos sociais.
Monstress, portanto, pertencerá a esse grupo de textos que, a
mal ou a bem (isto é, da total responsabilidade da sua força
intrínseca estética e política), que pode cumprir esse papel de
ofertar um modelo feminino de acção.
Maika Halfwolf não é humana, mas uma
arcânica, um ser de aspecto humano e possuindo características
extraordinárias. Por pertencer a essa espécie, a sua sorte é a de
ser escravizada e estar exposta a toda uma série de infortúnios,
devido à estratificação social deste mundo, o qual, se difere do
nosso em muitos aspectos, noutros tematiza a violência e racismo que
nasce de distribuições distintas de poder. Sendo a protagonista e,
como veremos, no interior de uma visão maniqueísta, ela não é
apresentada como uma personagem perfeita e sempre correcta, mas antes
mostrada nas suas fragilidades idiossincráticas.
Marjorie Liu parece ter um foco muito
particular de personagens, seja a X-23 da Marvel ou as das suas
novelas: mulheres jovens guerreiras com aptidões extraordinárias, e
cujos feitos de acção as tornam “personagens feminas fortes”. O
cinismo das “vilãs” e o “idealismo” das heroínas torna toda
a estrutura relacional de Monstress algo expectável e
convencional, que afinal parte de um maniqueísmo quase simplista
entre as duas “partes”: por um lado, as criaturas fantásticas de
Arcânia, que seriam vistas como “naturais”, “genuínas”, em
harmonia com o mundo, etc., e as Cumea, uma sociedade matriarcal de
feiticeiras que está interessada em questões de poder dominador e
pureza. Não será preciso grande esforço para, ao fim de umas
quantas páginas, estarmos do lado dos oprimidos face aos
opressores, dos bons versus os maus. Tratando-se
de uma novela para leitores mais jovens (adolescentes, já que os
temas, episódios de violência extrema e linguagem colocam a fasquia
fora do alcance de um público infantil), joga-se com expectativas de
fantasias simplificadas, e nem sempre as personagens emergem, pelo
menos no primeiro volume, como completas ou redondas (o que pode ser
propositado, em termos de crescendo narrativo).
Dito isto, Marjorie Liu aposta
substancialmente na interacção entre as personagens, através dos
diálogos, para lançar as teias que sustentam o mundo ficcional a
que diz respeito. Nesse sentido, há algo de muito orgânico na
maneira como se avança na história, coincidente, claro, com o
próprio movimento da protagonista na sua senda. Monstress é
aquilo que se chamaria um slow burner, exigindo uma leitura de
longo hausto e dedicação para recolher os seus frutos prometidos,
tanto ao nível do desenvolvimento das personagens como de progressão
das acções e compreensão do mundo ficcional (nesse sentido, e
incorrendo numa dicotomia insustentável e até tola, diríamos que
estaria em consonância com uma divisão clássica de textos para
leitores adolescentes do sexo masculino e feminino, opondo “acção
e progressão” a “desenvolvimento emocional”).
A arte de Sana Takeda emerge, no que
diz respeito à figuração, claramente da mangá contemporânea,
sobretudo da shonen, com o seu intuito de acção de alta
octanagem, se bem que com alguns apontamentos advindos antes da shoju
mangá, dada a delicadeza da maior parte das personagens, usualmente
belas e jovens como adolescentes idealizados. E, claro, as
personagens que servem de elementos “kawaii”, mas sem as
hipérboles visuais mais tipificadas da mangá comercial. No entanto,
estamos a falar de banda desenhada norte-americana, notável
sobretudo ao nível da composição de página, mais utilitário do
que qualquer outra coisa, e da cor. Esta última nem sempre contribui
para a legibilidade das imagens. Inscrevendo-se nestas novas
matizações proporcionadas pelas ferramentas digitais, as cores
seguem aquela paleta da Marvel e da DC a que alguém chamou de
“oleosas” e “escuras”, e realmente, mesmo em cenas diurnas,
há algo de glauco que atravessa todos os planos. As cores não
coincidem com a linha, antes existindo manchas difusas de verdes e
azuis que vão atravessando os objectos, criando um efeito de luz
bastante curioso, mas não particularmente feliz. Os grandes planos
gerais e de conjunto são aqueles que sofrem mais, pois outra das
assinaturas de Takeda é a pormenorização intrincada que lavra nas
suas páginas, em malhas apertadas de maquinarias e texturas e
padrões, que recordará Kentaro Miura, até certo ponto, pois Takeda
não atinge o mesmo nível de suavidade. Quando as cores são mais
controladas (como é o caso das capas), surgem imagens icónicas
impactantes, que nascem do sentido de design e de inventabilidade da
artista, mas no decurso da história, na sua arregimentação para a
leitura, nem sempre há a fluidez necessária.
Nova oferta, ao lado de Nimona,
da Saída de Emergência no campo da banda desenhada em Portugal,
esta é uma adição bem-vinda na diversidade da oferta, quer no que
diz respeito aos géneros quer no que diz respeito ao tipo de
público.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do volume.
Sem comentários:
Enviar um comentário